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domingo, junho 08, 2014

Andam escritores por aí (e nem sequer me estou e referir à Feira do Livro porque passei a tarde na Gulbenkian) e andam pianos debaixo das pontes






Hoje fui almoçar a um restaurante a que nunca tinha ido. Costumo ir a um que lhe é gémeo e que é um pouco mais afastado do local para onde íamos a seguir. A comida deste é a igual, muito boa, o pessoal eficiente, mas este é enorme o que o torna um pouco inóspito.

Olho para o lado e vejo a Gabriela Ruivo Trindade com o marido e os filhos. Espanto-me sempre um pouco como, de uma pessoa normal, normalíssima, saem depois histórias, palavras que se juntam de uma maneira diferente, provando que, afinal, se trata de uma pessoa muito pouco normal. O meu marido inibe-me logo, não te ponhas agora a olhar com esse sorriso embevecido. Ela estava ocupada a escolher o que ia comer e a esperar a escolha do marido e filhos, nem reparou em mim, claro (e ainda bem que eu detesto fazer papel de palerma). Contive, portanto, a minha curiosidade. E porque era esse sorriso...?, perguntou o meu marido que nunca há-de perceber este meu lado pacóvio. E eu nem tinha dado por que estivesse a sorrir mas depois apercebi-me de que sim, estava mesmo a sorrir. É da admiração que referi. Expliquei-me, Uma pessoa é normal, tem atitudes normais, conversa com marido e filhos como qualquer outra mulher e depois senta-se num canto e da sua cabeça e dos seus dedos desatam a sair histórias... Acho extraordinário.

Claro que o meu marido aproveitou logo para me pregar das suas lições de moral, E se calhar até é capaz de escrever durante o dia, quase aposto que não espera que seja meia noite para começar a escrever.

Nem lhe dei troco.

Dali seguimos para a Gulbenkian onde tínhamos combinado encontrar-nos todos. Antes deles chegarem, entrei na loja da Fundação. Há sempre alguma coisa que desperta a minha atenção. Contudo, desta vez não foi um livro, não foi um catálogo, não foi um saco, uma caneta, um lenço. Não. Foi o Manuel da Silva Ramos, esse grande castiço.

O meu marido estava sentado no átrio e estava a fazer-me mais alguma das suas recomendações quando me viu a fixar um ponto (como sou míope, para focar a vista para ver ao longe, tenho que fechar um pouco os olhos o que faz com que, aos olhos de quem me conhece, não passe despercebida quando estou a cuscar alguma coisa), perguntou-me logo, Quem é que é agora? Eu disse, É o Manuel da Silva Ramos. Ele olhou e reconheceu, É. Aquele maluco. E eu disse, Deste, a gente imagina facilmente que saiam aquelas maluqueiras. Mas esta das 'maluqueiras' não é depreciativa. Gosto do que ele escreve. Acho até que merecia maior atenção.

Depois chegou a minha turminha e acabou o sossego. 

Quando contei que tinha almoçado na mesa ao lado da Gabriela Ruivo Trindade, a minha filha disse que ela ia, este sábado, receber o prémio Leya 2013. Agora fui confirmar e foi mesmo. Cá está na fotografia tal como a vi no restaurante.


E, então, lá fomos todos para a festa do costume: os quatro pimentinhas na maior alegria nos Jardins da Gulbenkian.

Provavelmente dentro de pouco tempo estarão no mesmo sítio com os seus próprios filhos, tal como eu estou agora com os meus filhos que agora estão com os seus. O tempo passa a correr.

Um dia, há pouquíssimo tempo, eu estava de jeans, blusa de algodão às riscas azul marinho e branco, óculos escuros. E eles, pequenos, a brincarem ao pé dos patinhos. Tenho fotografias desse dia.

Hoje a minha filha estava vestida exactamente da mesma maneira, acho que até os óculos são iguais aos que eu usava nesse outro dia - mas já não tem quatro ou cinco anos e já está com os seus próprios filhos. 

(A diferença é que eu estava com um chapéu de palhinha, aba larga e à minha filha não lhe dá para chapéus). 

Quem deve vir a ser dada a chapéus deve ser a minha bonequeninha mais linda. No dia dos anos da mãe vou pintar uma unha de cada cor, conta-me ela toda vaidosa. O pai, que nunca foi de coquetices, começa a desistir de evitar estas manifestações agudas de feminilidade da filha.

O que eles brincam e correm uns com os outros...! Adoram estar juntos o que é uma alegria enorme para mim.

Jardim, peixinhos, portas secretas, bosques, pedras grandes que servem de cavalo, aviões e mais aviões que vêm a levantar voo ali do aeroporto quase ao lado e vão para muito longe (para o Pôtcho, diz-me, com ar entendido, o ex-bebé - para ele, o Porto é um país longínquo), rios que correm no meio de canaviais, piu-pius que passeiam ao pé de nós, folhas secas que se apanham para pôr num montinho porque na brincadeira de faz-de-conta são batatas para fazer uma papa. 

Há agora muitos patinhos bebés. Estão nos lagos, estão nos relvados, andam no meio de nós, quase nos vêm comer à mão. Uma ternura. 

Os patinhos bebés devem ser recém-nascidos, a penugem ainda é um pêlo incerto e andam inseguros, junto às mães. Andam debaixo das asas da mãe, disse eu, metaforicamente falando. O ex-bebé ficou admirado, Patos tem ajas? Expliquei que o pato é um piu-piu grande e que, por isso, tem asas, e estive a mostrar-lhe que, quando estão a andar, as asas estão encostadas ao corpo e, por isso, ele não as via. E que andam na água e que por isso têm umas patinhas especiais, com uma pele entre os dedos, para poderem nadar melhor. Esteve a ver e ouvir com muita atenção. A minha filha fotografou-nos nessa altura e ele está sentado no chão, entre as minhas pernas e eu estou com os meus braços à volta do corpo dele. As minhas asas envolvendo o meu amorzinho mais querido.

Levámos pão e os meninos dão-lhes bocadinhos. O pior são os pombos. O meu filho irrita-se com eles, Já começam a aparecer os ratos. Os pobres dos pombos, coitados, por ali andam, mal-amados. Todas as atenções se concentram nos patinhos emplumados e toda a gente afasta os pombos, com ar incomodado.

O bebé está enorme e fala pelos cotovelos. Não só fala por si como repete tudo o que ouve, quase como uma catatua. Fala, fala. Não há palavra que o faça hesitar e, quando não sabe, inventa uma palavra qualquer, inexistente. Brinca com os mais crescidos, apanha folhas e vem a correr Batata!, imitando o primo mais novo e a irmã, e trepa pelas pedras, pelos pequenos muros, salta, cai, levanta-se, nunca se atrapalha. E dá uns abracinhos mais bons... é meiguinho, meiguinho (excepto quando o contrariam que aí é logo à dentada. Ainda hoje a maninha andava com um penso no dedo, um penso azul, e ela toda vaidosa pelo penso e já nem se lembrando da dentada que o maroto lhe deu).

O primo mais crescido vai à pesca para a beira do rio, depois sobe à rocha onde está o irmão a dizer que é o rei e diz-lhe, Não, não és o rei, o rei sou eu que sou mais crescido. O irmão protesta, Não! Eu! Ele arranja uma solução, Tu és o sub-rei. O rei sou eu. O outro acata, não deve perceber o que significa sub, às tantas ainda acha que ser sub-rei é melhor que ser rei.

Achei graça a esta do sub-rei. Pensei cá para mim, Vou passar a chamar ao Portas o sub-primeiro-ministro. Mas não disse porque isto foi apenas um breve afloramento - quando estou com os meus meninos, a politiquice tuga está mais distante de mim do que esse país longínquo para onde vão todos os aviões.

O lanche foi bom como sempre, sandes, bolos, sumos, cup, iogurtes, leite com chocolate, salada de fruta. Cada um pede sua coisa, mexem em tudo, tiram as coisas dos tabuleiros e, às tantas, vão a correr com as coisas para a esplanada - e o senhor da caixa, aflito, já meio perdido, a pedir-nos que confirmássemos a conta não fosse ele ter registado alguma coisa incorrectamente. Curiosamente estava tudo certo.

E assim foi a minha tarde. Viemos de lá às seis e tal; quando cheguei a casa, mudei de roupa, deitei-me no sofá, peguei na crónica semanal do Pedro Mexia no Actual do Expresso e, uma vez mais, nem o título todo devo ter lido. Acordei passava das oito, já o telejornal tinha começado.

Agora passa das duas da manhã e já li o Expresso de ponta a ponta. E já passei as fotografias para o computador e já aqui estive a rir, embevecida com eles, tão felizes, tão amigos uns dos outros. E daqui a nada, quando sorrateiramente me for enfiar na cama, só espero que o meu marido não dê por mim para não ouvir mais um dos seus remoques, Lindas horas.

Mas são lindas estas horas, sim, estas horas em que aqui, neste meu canto, ouvindo as variações Goldberg, escrevo estas palavras que não tarda vão voar por esse mundo fora até chegarem até vós.


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A música é de J.S.Bach - Goldberg Variations. BWV 988. Aria, numa interpretação a cargo do pianista Evgeni Koroliov que actuou esta semana na Gulbenkian.


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A propósito de pianistas, li há pouco uma coisa que me deixou empolgada, com vontade de escrever sobre isso, de inventar uma história, qualquer coisa. Mas depois pus-me a escrever o que acima puderam ver e agora já não são horas para começar com divagações.

Por isso, vou directa ao assunto: junto à ponte de Brooklyn apareceu um misterioso piano de cauda. Ninguém sabe quem o lá pôs nem porquê. Quando a maré sobe, o piano fica quase submerso. 


Transcrevo:


Um piano de cauda deixado por baixo da ponte que liga Brooklyn e Nova Iorque está a intrigar os moradores, que não conseguem explicar como o objeto foi ali parar.


Segundo a Reuters, o piano está junto ao rio há vários dias, perfeitamente posicionado por baixo da ponte, e não parece servir um propósito especial.


Coisas destas fazem-me pensar que o mundo é, afinal, um lugar fascinante. Um piano abandonado à beira rio...? Será que as sereias, à noite, sobem do fundo do mar para virem ouvir sonatas ao luar tocadas por guerreiros alados?

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo. 

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segunda-feira, maio 05, 2014

'Aníbal e as elefantas' - ou 'Perfumes Eróticos em tempo de Vacas Magras' [post com bolinha vermelha no canto, vou já avisando]


No post abaixo já cumpri o meu quinhão de serviço cívico diário. Já falei de gente malvada, mal vestida, malcriada, que fala de saídas limpas quando não tem feito outra coisa desde que entrou senão porcaria - mas, apesar do mal que têm feito, ainda deixei alguns comentários que lhes poderão ser úteis numa próxima ocasião que se apresentem em público. Por contraste para com estes, mostrei um animal decente e bondoso, um cão. 

Aqui, agora, parto para outra e dou a palavra a um sátiro bestial, alguém que não encaixa bem no género usual de escritor português, a começar logo pelo estranho penteado que usa.

Volto a avisar: quem quiser guardar de mim a ideia de uma dondoquíssima bem comportada, deve saltar o que se segue. Poderia desculpar-me, pardon my french e coiso e tal, mas seria estultícia já que a prosa seguinte não é de minha autoria. Seja como for, feito o aviso, a partir daqui, lê quem quiser.


Música, por favor





Enquanto a mulher dormia cheia de rolos na cabeça, ele, do lado direito da cama, folheava o Mundo das Aventuras à procura do sono. (...)

Olhou para o despertador. Eram quatro da manhã. A mulher ressonava agora do lado da parede. Pegou no volume dois (tinha toda a colecção encadernada até 1973, isto é, 1252 números) e pôs-se a ler ao acaso, como ele gostava de fazer. Maldito sono, que não vinha!

Lembrou-se de repente da viagem que fizera ao Norte do país dois dias antes. Uma mulher do povo, que confeccionava um prato típico (um sarrabulho) num panelão monstruoso, tinha-se roçado nele, mas o que mais lhe interessara fora a filha, que ajudava e tinha uns seios magníficos, acobreados, combustíveis. O rego dos seios - um autêntico mistério. Tinha havido na rua uma pequena manifestação de desagrado pela sua visita à cidade, mas ele não se importara. Estava habituado à hostilidade, mas não estava era habituado ao rego dos seios. A esse rego impetuoso. Como é que se chamava a senhorita? Sílvia. Bonito nome. Se não fosse a chata da mulher transitando ao lado, tinha avançado uma conversa sub-reptícia. Sempre fora sub-reptício o seu carácter...

Levantou-se e a sua grande altura dirigiu-se para a retrete. Urinou e enxaguou a boca no próprio copo onde estava a sua dentadura. Regressou à cama e adormeceu.

A Sílvia vinha com um açafate de pão e convidou-o a ver o seu forno. Gostava das padeiras de Aljubarrota. Todas heróicas. E de cu grande. Quando ela pegou na longa pá para tirar os pães, os vestidos caíram-lhe aos pés e ficou nua. Tinha um corpo forte, duro, apetecível. Aproximou-se dela e levava uma erecção monstruosa. Há anos que não tinha uma assim.

Lembrou-se de repente da mulher frígida, perdera os ovários numa operação e ele dissera definitivamente adeus ao sexo. Penetrou Sílvia, que logo começou a bambolear-se com o pau entrado até aos colhões. Ejaculou quando a comparsa tirou o último pão do forno. Acordou, estava todo molhado, e de um olho desperto viu as horas. Eram sete e quarenta e nove. Às oito os guardas acordavam-no.

- Então, senhor Presidente, dormiu bem? - perguntou-lhe um guarda gordo, que o conduziu à sala do Dr. Mariz, o director.

- Não foi mau. O povo hostilizou-me no Norte, mas isso não me impediu de comer um belo sarrabulho.

- Pensei que fosse uma padeira sem útero e com rolos na cabeça!

- Ó senhor Dias, isso foi anteontem...

"Como os dias passam rápido", pensou Aníbal, que via já no corredor as elefantes virem ao seu encontro.

Os Alpes esperavam-no.

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O conto até poderia chamar-se 'Os sonhos molhados do senhor Presidente' ou 'Aníbal e o açafate de Sílvia' mas teve razão o autor ao evitar os títulos a puxar à pornografia de 5ª categoria, escolhendo, ao invés, um título a puxar ao erudito: 'Aníbal e as elefantas'.

[Provavelmente, é o único conto do livro que, apesar de tudo, aqui consegui reproduzir. Os outros são bem mais cabeludos - e é preciso não esquecer que os meus filhos lêem isto.]

Faz parte do livro 'Perfumes eróticos em tempo de vacas magras' da autoria de Manuel da Silva Ramos, com ilustrações de João Pedro Lam, numa edição Parsifal. 


Finalmente um livro para se oferecer a um desconhecido - pode ler-se na capa. 

Finalmente um livro divertido escrito por um português - digo eu.

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O palhaço que ali em cima puderam ver não é um qualquer, não senhor: trata-se da obra de Paula Rego intitulada 'The last feed', de que já aqui falei em tempos.

A música lá em cima é Que bello na interpretação dengosa de Carla Morrison y La Sonora Santanera.

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Recordo: se quiserem saber o que penso da saída Passos Coelho, limpa, limpinha, e que espero bem ocorra muito em breve, deverão descer até ao post seguinte. Se não for por ele, que seja então pela cadela Himalaya, uma criatura muito decente.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda feira!

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