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domingo, fevereiro 21, 2021

Björn Andrésen não morreu em Veneza

 

Tenho um amigo cinéfilo. Pelo menos, assim se define. Durante anos consumiu compulsivamente filmes. Agora consome séries. E memoriza argumentos, realizadores, intérpretes. Por vezes pergunta se vi isto ou aquilo e, desmiolada como sou, geralmente não me lembro. Só quando dá detalhes, acabo por reconhecer e, muitas vezes, fico aborrecida comigo pois até tinha gostado... e tinha-se-me varrido. 

Uma vez fiz-lhe aquela pergunta que acho absurda e à qual não consigo responder quando ma fazem: qual o seu filme preferido? Pensei que iria dizer que era impossível escolher, que são muitos os muito bons, os preferidos. Mas não. Para meu espanto, convictamente, respondeu: Morte em Veneza

E, a seguir, em estado de um deslumbramento quase hipnótico, começou a falar da beleza daquele miúdo, na obsessão do homem mais velho pela juventude sedutora do rapaz. Eu disse: Uma beleza tentadora. Ele confirmou: sim, uma beleza tentadora.


Não me esqueço da forma como ele recordou a cena da praia e outras... e de como o seu olhar quase estava alheado da minha presença ao pensar nessas cenas. 

Contou-me que não sabe quantas vezes já viu o filme. 

Também gostei muito do filme. Não li o livro pelo que não sei avaliar se, em palavras, a rendição do homem é tão absoluta e, por vezes, tão patética ou se beleza tentadora do rapaz é tão cativante -- ou se são as figuras de Dirk Bogarde e Björn Andrésen que tornam a história de Thomas Mann tão erotizada, tão bela, tão intemporal. Claro que Visconti e toda a equipa não terão sido de somenos no sucesso do filme mas, seja como for, o rosto de anjo atrevido e o corpo juvenil e apelativo de Björn Andrésen no papel de Tadzio não serão jamais esquecidos.

No entanto, tendo sido alguém tão marcante não tenho ideia de se ter voltado a falar nele. Ainda será vivo? Será ainda um homem com uma beleza invulgar?

Fui saber. E, como tantas vezes quando um jovem é tão idolatrado pela sua beleza na juventude, parece que lhes fica colada ao corpo uma espécie de maldição. Neste caso até parece que os dramas por que passou não terão tido a ver com a profissão mas com a morte súbita de um filho, bebé. Contudo, a carreira cinematográfica, ao que parece, não evoluiu substancialmente. E a beleza... bem... a beleza obviamente foi perdendo aquele viço que a inocência virginal acentuava. Mas é a vida. Só permanecem para sempre jovens e belos os que cedo se desprendem da vida terrena. 

Björn Andrésen tem 66 anos, é actor e músico, tem uma filha e dois netos.


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Desejo-vos um feliz dia de domingo.
Saúde. Ânimo. Paciência.

sexta-feira, novembro 20, 2020

Uma criatura em decomposição

 

Um colega meu, ao princípio, dizia que, quando eu tomava alguém de ponta, coitada dessa pessoa. Agora já não diz o mesmo porque, em relação às poucas pessoas a quem ele achava que eu não podia ver nem pintada, também ele está na mesma, acabou a dar-me razão.

Só para dar um exemplo. Havia um que eu dizia que era uma lesma traiçoeira e ele gozava, dizia que lá estava eu a ser mazinha. Uma vez, numa daquelas coisas maravilhosas que dá pelo nome de avaliação 360º, esse meu colega teve uma avaliação desgraçada pois um dos colegas que o tinha avaliado lhe tinha dado 1 a tudo numa escala de 1 a 5. As avaliações são anónimas mas a pontuação dele foi tão má que ele, coitado, fez tudo para perceber quem o tinha apunhalado pelas costas. Com espanto, descobriu que tinha sido a 'lesma traiçoeira', por sinal um que ele tinha por seu amigo. Quando antes ele ainda achava que eu é que embirrava com o outro, se eu dizia alguma coisa em seu desabono, ele passava o indicador sobre o pulso da outra mão e eu já sabia que ele estava a dizer-me que aquilo era para mim uma questão de pele, não racional. 

Essa dita lesma era beijoqueira. Mal me via, vinha direito a mim. Eu tentava evitar, fazendo um aceno de mão que era mais um adeusinho que um olazinho. Mas nada o demovia: 'Dê cá um beijinho'. Toda eu me encolhia. Tinha a boca sempre gelada o que me deixava na cara a sensação de estar babada. Tinha que me conter para não passar logo as costas da mão para limpar a baba. Por isso, a partir de certa altura passei a referir-me a ele por lesma babosa. o meu colega, volta e meia, quando via o outro, avisava-me logo: cuidado, vem aí a lesma babosa. E toda eu me encolhia, antecipando a horrível sensação de ficar com uma gosma fria colada à cara. No entanto, aqui entre nós, acho que não me babava, apenas tinha os lábios nojentamente gelados.

Outra vez, foi admitido um alemão para um cargo relevante. Toda a gente se derretia com a eficiência e o charme do dito cujo. Era, de facto, uma simpatia. Tratava-me pela inicial do meu nome, era divertido, dizia piadas com muita graça. Mas eu, vá lá saber-se porquê, achava que era um embuste. Na volta é aquele sexto sentido coisa que sempre irritou os meus colegas quadradamente racionais. Tudo o que o alemão dizia, e com que segurança o dizia, me soava a banha da cobra. Mas ele era um animal de palco, as suas apresentações punham o resto da malta a rir, a beber-lhe a prosa. Era convincente. Conseguia usar palavras dúbias. Quando, em privado, eu o confrontava com as suas mentiras, ele demonstrava-me que não tinha mentido, tinha apenas dito aquilo que nós queríamos ouvir. Eu passava-me. Ele dizia que havia ali pessoas que não lhe perdoariam se ele falasse verdade. E dizia-o como se falasse com o coração nas mãos. Era hábil. Fazia o que queria. Correu mundo, ficou nos melhores hotéis, viveu à grande e à francesa, tudo à conta. Às tantas, ocorreu-me que aquela formação dele parecia feita à medida para a função. O meu colega bonzinho dizia que lá estava eu de embirração, que não tinha motivo, que o alemão era topo de gama, presa de head hunter internacional, coisa fina, bife do lombo. E, a julgar pelas excelentes condições, devia mesmo ser bife do lombo. Resolvi ver os cursos daquela universidade. Não tinha nem nunca tinha tido aquele curso, coisa nenhuma. Tinha inventado um curso universitário. Contei ao meu colega. Disse que era melhor eu ficar calada, que quem acabaria mal vista seria eu. Fiquei. Tempo depois veio a descobrir-se que trabalhar não era com ele, as viagens eram mesmo só passeio e rica vida. Veio a saber-se também que a formação dele era outra, nada a ver. No seu último dia lá, veio ter comigo, despediu-se, e com ar malicioso, disse-me: vou trabalhar na minha área... E riu. Sabia que eu desconfiava. Era, na realidade, um oportunista e um tratante de primeira.

E esta conversa vem a despropósito do que aconteceu esta quinta-feira a uma execrável criatura. O meu colega bonzinho, se aqui estivesse, talvez agora passasse o dedo pelo pulso oposto a dizer-me que o problema não estava na execrável criatura mas na brotoeja que, volta e meia, brotava da minha pele. Mas não. Talvez haja quem, perante o estado de decomposição em que a fétida criatura se encontra, o desculpe, pensando que já foi uma pessoa em condições. Pois. Mas não vem ao caso. Não é disso que estou a falar. Estou a falar do presente. Da falta de moral, da falta de escrúpulos, da falta de tino, do cliente que representa e da forma como o representa. Fétido. 

Pois bem. Numa daquelas sessões macacas em que tudo parece uma comédia de quinta categoria, mais concretamente uma conferência de imprensa em que defende que as eleições foram uma fraude, uma fraude na qual participaram a China, Cuba e Venezuela, acusação da qual, como sempre, não apresentou qualquer evidência, Rudy Giuliani, advogado de Donald Trump, desatou a suar a bom suar, a transpiração cobrindo-lhe a testa, a cara. Até aqui, nada de mais. O que teve de extraordinário é que a tinta do cabelo começou a escorrer-lhe pela cara. De cada lado, um escuro fio escorrente, uma coisa meio estranha. Claro que era tinta do cabelo. Mas parecia que lhe estava a sair um sangue negro, prutefacto, neurónios dissolvidos em sangue estragado.

Depois daquela cena ordinária, a mão dentro das calças, deitado numa cama de hotel e apanhado em flagrante pelo Borat, agora isto. Há qualquer coisa de fim de linha nesta desonrosa derrota de Trump, a avançar para os tribunais com queixas absurdas e a ser acompanhado por um advogado decrépito, ordinário e a escorrer tinta escura pela cara 'abaixo'. Chega a ser triste. O meu colega bonzinho estaria a dizer: embirra com ele, não lhe perdoa nada. Mas não é uma questão de embirrar, é que isto é mesmo deprimente. Mau demais para ser verdade. O advogado do presidente dos EUA ainda em funções não pode ser isto.

Sweaty Rudy Giuliani suffers hair malfunction in latest bizarre press conference

Rudy Giuliani appears to sweat hair dye as he makes election claims without evidence


Rudy Giuliani borat 2 scene everyone needs to see


Como é que tudo isto vai acabar?

Mal, só pode. 

Já vi chamar a atenção para esta cena do maravilho filme Morte em Veneza mas, embora a situação da tinta a escorrer seja a mesma, a envolvência é outra. E até custa associar a ideia de um filme tão belo a um espectáculo tão deprimente. Mas, enfim, de facto, a ambos a tinta do cabelo escolhe-lhes pela cara parecendo sangue negro a sair-lhes da cabeça. Não é bonito de ver.


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Voltando a Giuliani, tal como a Trump, seria bom que poupassem ao mundo a indignidade do seu comportamento, das suas atitudes. É que é preciso saber retirar-se, preservar a dignidade.


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E que seja um dia feliz!

quinta-feira, setembro 01, 2016

Observar os outros




Dia ainda mais tranquilo que os anteriores. O meu marido tem bicho-carpinteiro, não consegue estar muito tempo sossegado. Então vai dar uma volta a pé de mais de uma hora enquanto eu fico na beira da piscina.

Quando lá chego, procuro duas espreguiçadeiras à sombra das árvores. Fico na segunda linha de espreguiçadeiras. A primeira contorna a grande piscina. Esta segunda, a boa distância da primeira, está debaixo dos pinheiros, palmeiras e sei lá que outras árvores que no outro dia andei a fotografar à noite e que hoje aqui mostro. Lá mais para trás ainda há mais, num relvado também entre árvores. Aí se juntam os adolescentes que conversam, praguejam animadamente, bebem cerveja e riem.

Tenho um livro, tenho o telemóvel, o protector solar 50, uma garrafa de água. Começo por ler mas depois ponho-me a observar os que estão no meu raio de visão. Um conhecido jornalista de televisão que, assim, de calções e óculos escuros, me deixou na dúvida se era. Depois vi que era. Passou despercebido. Eu e ele devíamos ser os únicos portugueses.


Chegou, então, um casal talvez de uns 70 anos, elegantíssimos -- invejei tudo o que ela tinha vestido: um bikini com um corte favorecedor em azul marinho, turquesa e verde esmeralda. O bikini ficou à vista depois de ter despido uma túnica nos mesmos tons, com transparências intercalando zonas de suave aveludado. Aquela túnica até na cidade ficaria linda, com umas calças justas em branco ou em preto. Os chinelos eram igualmente elegantes e o chapéu de palha ainda mais, de abas bem largas, com uma fita de corda fina e com uma espécie de contas douradas, aqui e ali, à volta. A senhora é magra, elegante, de cabelos platinados abaixo da nuca. O marido o oposto: faz lembrar o Strauss-Kahn, uma coisa na base do touro. Entroncado, peludo, calções de pano coçado acima do joelho e por baixo da barriga, boné descorado e velho, cabelos grisalhos meio compridos, apesar de careca na parte de cima. Contudo, curiosamente um homem interessante. Enquanto a mulher protegeu a pele e ali se pôs ao sol, serenamente, ele fumou, viu o telemóvel, escreveu nele, mergulhou e deu umas vigorosas braçadas e o tempo todo manteve-se sempre neste tipo de actividade. Não se deitou nem por um segundo.

Reparei também naquelas duas raparigas muito bonitas, altas, louríssimas, que andam sempre juntas. Encontrámo-las a tomar o pequeno almoço, de tarde cruzamo-nos com elas na praia. Lêem, conversam, vão buscar autênticos baldes de cerveja ao bar da piscina e vão bebendo enquanto tagarelam, depois levantam-se e vão nadar. Parecem-me novas demais para terem vindo só as duas viajar, terão talvez uns 18 anos, e ainda por cima para se alojarem num hotel deste tipo. Miúdas que vêm à descoberta ficam em hostels, coisa assim. Mas nunca as vimos com o que poderiam ser os pais. 


Mas o que me manteve presa toda a manhã -- e, quando o meu marido chegou, estivemos os dois, quase como se estivessemos a ver um filme -- foi o grupinho mesmo à minha frente. Duas inglesas muito inglesas, com muito accent, muito louras, de bikini, elegantes, quase iguais, em espreguiçadeiras ao lado uma da outra. O meu marido disse que eram gémeas mas talvez não. Ao lado da que me pareceu talvez ligeiramente mais velha, um que deve ter ascendentes directos indianos ou paquistaneses mas igualmente muito british. Um pouco mais baixo que ela, um bocado para o entroncado. Ao lado dele, dois miúdos, talvez 8 ou 9 ou 10 anos, mostrando a mistura de raças, muito bonitos, pele e feições a atirar para o pai mas ao mesmo tempo com traços da mãe.

A mulher, quando comecei a reparar nela, fazia meditação em posições de ioga, como se estivesse sozinha no mundo. Ao lado, a que supusémos ser irmã, lia ou via o telemóvel. Ele tomava conta dos filhos, punha-lhes protector, ajeitava o chapéu de sol para lhes fazer sombra. Depois, quando a mulher se pôs numa posição curiosa, de gatas, ele pôs-se na mesma posição, ao lado dela. Mas estavam ambos compenetrados. Se fosse eu e o meu marido não apenas não nos poríamos assim em cima das espreguiçadeiras, em público, como, se o fizessemos, desatavamos ambos a rir (especialmente eu).


Depois foram todos para a piscina. Ela e a que talvez fosse irmã brincavam ruidosamente uma com a outra, davam amonas, uma ia debaixo de água assustar a outra que gritava e ria. Noutro canto da piscina os miúdos brincavam um com o outro. Depois o pai veio buscar uns óculos e uma câmara fotográfica daquelas que funcionam debaixo de água. Ainda tirou algumas fotografias aos filhos mas depois foi fotografar a mulher e a cunhada. Todo ele se ria, encantado, com as brincadeiras efusivas daquelas duas.

Às tantas descobriram uma grande bóia que lá estava a um canto e foi vê-las como crianças ruidosas a tentarem virar a bóia, a pregarem partidas uma à outra e a rirem de gosto. O marido observava e ria mas não interferia, apenas degustava com enlevo.

Quando saíram da água, o marido deu as toalhas aos miúdos, voltou a pôr protector solar neles. Durante as horas que ali estive nenhuma das duas mulheres dirigiu uma palavra que fosse às crianças. Nem as crianças a elas, apenas ao pai.

Depois o casal pegou em raquetes e foram jogar para a piscina dos pequenos. Iam de mão dada, ele sempre sorridente, ela também bem disposta. E lá estiveram divertidos, ela sem grande jeito, ele paciente.

De volta à espreguiçadeira, deitaram-se ao sol e ele deitou a cabeça no ombro da mulher. Depois passou o braço por cima dela e ali se deixaram ficar abraçados. Depois beijaram-se.


Passado um bocado, a outra, louríssima, seios generosos quase a saltarem do curto bikini, pôs-se a besuntar-se com protector solar, tendo pedido ajuda à que talvez fosse irmã. A irmã pôs, espalhou com cuidado, com a unha raspou-lhe o que talvez fossem umas pequenas borbulhas, aproximou o rosto para ver melhor, passou com a mão a ver se sentia irregularidades. Depois inverteram, foi a outra que lhe espalhou nela o mesmo protector. As duas espalhando o creme com cuidado e vagar. A seguir foi ele que quis que a mulher lho pusesse nas costas. Sentou-se na espreguiçadeira dela, de costas para a mulher, entre as pernas dela. A mulher massajou-o com cuidado. Então ele, de repente, deu uma reviravolta e, quase em mergulho, atirou-se para cima dela, e ficou ali um bom bocado, abraçado, cobrindo-lhe o corpo. Ao princípio ela riu, depois abraçou-o e voltaram a beijar-se.

A outra, nada, continuou placidamente a ler e os miúdos também nem aí, cenas daquelas deviam ser usuais.

Eu disse, baixinho, ao meu marido que sempre tinha achado que os homens de tez mais escura são mais fogosos. Como está tisnado como um marroquino tenho a certeza que se sentiu abrangido.

Depois o homem voltou para o seu lugar. Algum tempo depois, levantaram-se e foram de mão dada buscar a ementa. Ele segredava-lhe qualquer coisa ao ouvido e ela ria. Regressaram e ele perguntou aos miúdos o que queriam; depois, como eles não soubessem, pôs-se a ler, em voz alta, a ementa. Perguntou à que talvez fosse sua cunhada o que queria. A mulher era como se não tivesse nada a ver com aquilo, via o telemóvel, ele é que geria os pedidos.


O meu marido disse: 'O gajo é que faz tudo'. E eu disse que sim, era um facto, mas que reparasse ele como o homem o fazia de bom grado, sempre sorridente e amável. Não ligou e, pelo contrário, teceu considerações sobre a colonização e outras tretas que não eram para ali chamadas.

No fim, fiquei a pensar que, tivesse eu tempo e paciência, em torno daquelas personagens, se poderia forjar um enredo bem engraçado.

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Lá em cima, e não me perguntem porquê, apeteceu-me ter o Gattopardo, Luchino Visconti,1963. O Leopardo, uum grande filme. A valsa que se ouve é de Dmitri Shostakovich .

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E queiram agora, por favor, descer até uma evocaçao a propósito do Dia do Topless para verem como  há seios que ficarão para a história do cinema.

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