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sexta-feira, maio 06, 2022

Estou quase contente com a minha aparência

 

Dias muito aloucados, cheios de muito trabalho e preocupações. Como se não bastasse, acordei com uma dorzinha na perna. Tento lembrar-me do que possa ter sido. Muitas idas e vindas com o regador grande? Idas e vindas do supermercado, os sacos pesados demais? Muitas horas de reuniões? Tenho sorte em não ter que fazer quilómetros a pé. Ou estar dias seguidos encolhida debaixo da terra. Tenho sorte.

Ao fim da tarde, fomos até à praia e trouxemos de lá sushi. Não deu para andar muito, estava meio coxa. Só que a minha coxidão melhora à medida que ando. Ainda assim não abusei, estava a melhorar mas não a ficar boa. Mas bem o sei: quando os músculos dão de si, melhor mesmo é não abusar. Mas sei: pior mesmo é estar sentada, horas sentada. Só que não dá para evitar. Só se passar a fazer reuniões de pé.

Já tomei um comprimido a ver se amanhã me aguento toda a manhã a resolver, sentada, os grandes problemas da humanidade.

A seguir ao almoço, fui num bocado espreitar o calor da rua. A pequena fera cabeluda veio comigo. Somos unha com carne. Enquanto eu estou a trabalhar, ele deita-se ao pé de mim. Quando há sossego, ele gosta de dormir. Se vou à rua, ele vem. Se regresso, ele corre para me acompanhar. Tem receio que o deixe na rua. Já o enganei vezes de mais, por isso já não se fia. Compreendo-o.

Agora na casa grande aqui do lado, há dois cães. Um deles é um pastor-alemão gigante, com um vozeirão daqueles. O ursinho peludo, que é todo territorial, fica possuído. Ladra, corre ao longo do muro, põe-se de pé. Do lado de lá, o outro faz o mesmo. Não se vêem mas pressentem-se. O meu felpudinho já anda nas patas de trás. Põe-se de pé e anda em duas patas. Também, várias vezes por dia, põe-se de pé, abraça-me, dá-me beijinhos. Juraria que sorri. Retribuo com carinho e mimo todo esse afecto.

Há dois dias, também fomos os dois até ao jardim. Ele deitou-se na relva. Eu deitei-me ao lado dele. Ele pôs-me uma patinha por cima do meu pescoço. Fiquei a descansar, deitada, ele abraçado a mim, eu abraçada a ele. Quando me soergui, estava um pintor encavalitado no muro do outro lado, do lado dos outros vizinhos. Fiquei atrapalhada e acho que ele também disfarçou.

Gostava de saber se o esquilinho ainda anda in heaven. Gostava que aqui também os houvesse. Um lugar que os animais escolhem para viver é um lugar abençoado. 

Gosto cada vez mais de animais. Gosto da natureza. Venero a natureza. 

E, no entanto, passo grande parte da minha vida fechada entre quatro paredes a resolver problemas e a enfrentar gente que só me traz complicações, mal me deixando respirar.

Há bocado estive a ver as notícias do dia e a ver vídeos. O meu marido queria ouvir qualquer coisa na televisão e disse para eu baixar o som ou me deixar disto, diz que eu devia ver menos coisas sobre a bárbara e inqualificável infâmia que a Rússia não se cansa de levar a cabo na Ucrânia. Muitas vezes durmo mal por causa disto, tenho pesadelos, acordo.

Então fiz-lhe a vontade e pus-me a ver o último episódio das Avós da Razão. São sempre engraçadas. Divertem-se a conversar e a relembrar o passado. E são todas pr'à frentex. Não há ali saudosismos, arrependimentos tal como não há baias nem medos. Entre risotas, não apenas batem bolas como, na maior das alegrias, chutam à baliza. Três mulheres que se alimentam da amizade, do riso e do futuro que têm pela frente.

Ao ouvi-las lembrei-me de no outro dia a minha mãe nos ter perguntado se uma conhecida, uma que até há alguns anos era do mais jetset, com vários editoriais e reportagens em família, ainda era viva. Há algum tempo que não ouvimos dela. A minha filha disse que sim e contou que a tinha ido ir ver ao hospital. Ao chegar, pensou que estava a dormir e disse à acompanhante que voltaria mais tarde. E que, para grande surpresa, da cama, ela exclamou: 'Não 'tou nada a dormir! 'Tou acordada, atão não vê...? Sente-se aqui, querida.' Diz a minha filha que estava tão esticada, tão repuxada, que nem se percebia onde estava a boca, onde acabava o nariz e começavam as bochechas e em que paravam os olhos. Diz que parecia que estava a dormir. Afinal estava era tão repuxada que não se lhe dava por sinais de vida. 

Foi como noutra vez, já aqui o contei, um amigo ao mostrar-me a reportagem fotográfica de um evento a que tinha ido e ambos, na fofoca, comentando este e aquele. Até que ele disse: 'Olhe, a sua amiga'. E eu, a olhar para um grupo em que estavam dois casais a conversar e sem conhecer as mulheres. Os homens eu conhecia, e bem, mas não as mulheres. 'A minha amiga...?', eu, sem ver qualquer amiga. E ele: 'Olhe bem. Atão não 'tá a conhecer?'. E eu, vista apurada: 'Não...'. Até que ele disse o nome dela. E eu: 'Nãããooooo...'. Por mais que olhasse não me parecia nada ela. E ele: 'Atão não vê...? Repuxou-se outra vez. Ela e a mãe estão quase iguais.'. Nem uma ruga, nem uma pelezinha mais flácida. Tudo em cima. Irreconhecíveis face ao que eram antes. Viciadas em plásticas.

Mas é lá com elas, claro.

O que me espanta é que não têm medo de anestesias nem do desconforto pós-operatório. Há quem faça preenchimentos e choques vitamínicos na pele e raspagens na pele e sei lá que mais. Mas há quem vá mesmo à faca e opte por retirar vários anos de cima. O pior é que, no acto, perde-se a expressão. 

Mas, se calhar, é preconceito meu. Se calhar, se houvesse uma maneira fácil, indolor, caseira e eficaz de eliminar rugas ou de eliminar os vestígios da idade, se calhar eu até tentava. Mas tinha que ser coisa pouca, ao de leve, que não me descaracterizasse. Uma coisa como fazer depilação em casa. 

Mas, enfim, passemos ao que interessa: a conversa aqui das minina. Não há tabus, não há nada disso: só espontaneidade e graça.

VALE TUDO PARA SE SENTIR JOVEM | Avós 182


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Fotografias de Cho Gi-Seok na companhia de Sarah Vaughan que interpreta Tenderly

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Desejo-vos uma happy friday
Alegria. Saúde. Paz.

sábado, abril 30, 2022

O sentido da vida e outras questões profundas

 


Uma das amigas da minha mãe está hospitalizada. Estávamos a falar dela, da sua permanente calma perante todas as situações da vida, da sua incrível resistência perante as doenças que tem tido ou perante as perdas que sofreu. Dizia-me a minha mãe que nunca a viu enervada ou preocupada e que deve ser por ser assim que tem a idade que tem e ainda vive sozinha e na boa. Fisicamente faz-me lembrar a Helena das Avós da Razão que é um ano mais nova que ela. Eu estava a aconselhar acompanhamento, a minha mãe que a convencesse a ter alguém em casa que a ajudasse, e a minha mãe dizia-me que ela é muito independente, não quer ninguém em casa. E acrescentou: deve pensar que se cair em casa e morrer, qual é o problema?

E eu disse que, vendo as coisas sob essa perspectiva, cair e morrer, até que não é coisa má de todo. Pior é quando se anda a sofrer. A minha mãe concordou mas disse que, quando pensa nisso, pensa que tem pena de morrer. Eu disse que temos que ter presente que ninguém fica cá para sempre, isto é uma passagem, chegamos, estamos e depois vamos. Ela disse que eu digo isto porque ainda sou nova. Ri-me. Nova? Está bem, está. Mas, nova ou velha, é isto mesmo: é bom enquanto dura. E um dia acaba e está acabado -- e é mesmo assim. 

Por acaso estava a falar enquanto estava a andar lá em baixo, no meio das árvores, sozinha. Se o meu marido estivesse por perto passava-se. Este tipo de conversas tira-o do sério. Conversas da treta. 

Mas, por acaso, acho mesmo que não devemos apegar-nos à vida como se acreditássemos que ela fosse eterna. Acho justamente o contrário: devemos apreciar e agradecer cada momento por sabê-lo efémero. E, tirando isso, gosto de me sentir desapegada, sempre pronta a partir. E não gosto de me despedir. Gosto de pensar que nada é definitivo, mesmo que o seja. Saio de alguns lugares sabendo que provavelmente lá não voltarei e, ainda assim, não me despeço, penso que sabe-se lá. E, mesmo que pense que não voltarei a ver aquelas pessoas, também não me importo. Saem uns da minha vida, entram outras. É um contínuo. E se já deixei para trás pessoas importantes na minha vida a verdade é que guardo em mim memórias boas, que não se degradam.

E estou com estas conversas quando temas assim devem é estar reservados a almas que se movem bem nas profundezas, sei lá, filósofos, segismundos, literatos, almas torturadas. (E, calma, o que atrás enunciei não são sinónimos)

Eu, como é sabido, sou uma dondoca que gosta é de dizer coisas e que tem uma certa queda por maluquices. Por exemplo, vi estas imagens que aqui estou a colocar de uma pessoa que dá pelo nome de Varkey e achei um piadão. Não têm nada de nada a ver com o que para aqui estou a escrever mas assim é que está bom, nada a ver com nada e tudo a ver com tudo.

Enfim. Nada mais tendo a acrescentar, cedo o passo a quem sabe. Que entrem as Avós da Razão


SENTIDO DA VIDA E A MORTE | Avós 181


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sexta-feira, dezembro 03, 2021

As moçoilas do cabelo às cores dizem: escute os sinais e respeite seu momento.
E eu não posso estar mais de acordo.
E claro que a culinária aqui vem completamente a despropósito. Mas fazer o quê...?]

 


Estes dias estão a transbordar. Muito trabalho e, em cima de uma agenda demasiado preenchida, há a campainha a tocar com entregas, telefonemas das mais diferentes proveniências, o urso cabeludo a precisar de atenção -- e eu sozinha em casa. 

Chego ao fim do dia com a cabeça feita em água. Por vezes, aqui à noite, penso que, no dia seguinte, deveria pensar nos presentes de natal. Uns já despachei mas, na verdade, uma ínfima minoria. Mas depois, durante o dia, falta o tempo. Claro que agora, em vez de estar para aqui feita carpideira, bem podia estar a puxar pela cabeça e a navegar, de site em site, escolhendo presente para um, presente para outro. Só que esta cabeça aqui, a esta hora, já não deita sumo, só palavras desasadas. E escolher presentes sem inspiração nem energia não é boa coisa. A escolha de presentes requer uma boa vibe, uma boa onda, a good mood, senão vira burocracia, coisa falha de validade.

Há-de aparecer a vontade. Portanto, adiante.

Ao fim da tarde, num ápice, fui até ao supermercado. Não tinha bananas em casa e isso é coisa que não pode faltar. Desde que me lembro, ao pequeno almoço, uma banana não me escapa (entre outras coisas). E não sabia o que fazer para o jantar. Então vi um lombo de salmão à provençal, congelado. Fiz como recomendado e acompanhei com um arroz com muitos legumes. Ficou bom. Vou dizer como fiz o arroz:

Num tacho, coloquei azeite, uma cebola aos bocados, um alho francês, uma folha de louro e salsa em boa quantidade. Refogou ao de leve. Quando estava tudo molezinho, juntei três tomates maduros aos bocados, um molho de feijões verdes também cortados aos bocados, metade de uma courgette cortadas aos bocadinhos, um pouco de sal, pouco, sempre pouco. Ficou tudo a cozinhar devagarinho. Quando estava tudo bem cozinhadinho, juntei um bocadinho de abóbora também aos cubinhos. Juntei dois copos de água, deixei ferver, Juntei um copo de arroz basmati. Quando ficou quase sem caldo disponível, desliguei e deixei o tacho tapado a apurar. Modéstia à parte, estava bem saboroso. Saborosinho. Inho, inho (que isto hoje está a dar-me para os inhos -- deve ser do frio, uma pessoa até encolhe, incluindo das ideias).

O salmão foi assim: claro que, primeiro, descongelou. E a seguir:

Numa frigideira coloquei um pouquinho de azeite e cobri o fundo com uma cebola grande cortada aos bocados. Sobre essa cama generosa coloquei o lombo que tinha cortado às postas.  A pele do peixe ficou para baixo. Para cima a parte com as ervas aromáticas. Ficou para ali em fogo leve e brando, até que a cebola quase caramelizou, o peixinho cozinhou e o perfume a boa comidinha encheu a cozinha.

Quando o jantar já estava ao lume recebi um telefonema da empresa, o último do dia. Ao contrário do que é costume, boas notícias. Várias boas notícias num único telefonema. Fiquei toda contente. De repente, parece que todas as situações complicadas do dia se tinham dissipado.

E agora aqui, ao ver os vídeos do dia, uma vez mais, o das Avós da Razão chamou a minha atenção. Falam de períodos da nossa vida em que parece que estamos num impasse, improdutivas, desinspiradas, abúlicas. Uma mulher de trinta e quatro anos perguntava se as Avós já se tinham sentido assim e, em caso afirmativo, o que fizeram. E a resposta que elas deram é a que eu daria: claro que sim. Quem nunca? E, numa situação assim, não se faz nada. Espera-se que passe. A menos que a pessoa esteja doente -- com uma depressão, por exemplo, e aí deve tratar-se -- passa sempre.

Falo por mim. Sou avessa à monotonia. Essa coisa da velocidade cruzeiro não funciona comigo. Prefiro mar encapelado sem saber bem o que fazer com ele. Gosto de me sentir a desbravar caminho, a construir, a enfrentar as dificuldades do que se faz de raiz, a criar coisas, a formar equipas, a deitar obstáculos abaixo. Depois, quando está feito e apenas há que manter, eu começo a roer-me de impaciência, doida por saltar para outra. Mas nem sempre há para onde saltar. E, nesses compassos de espera em que me sinto sem pachorra para o mar flat e sem saber se me vai aparecer lugar para onde me pirar, sinto-me a aboborar, a criar raízes quando gosto é de sentir as asas a romperem das costas, impacientes por me levarem nem eu sei bem para onde.

Mas, com o tempo, aprendi. Nessas alturas, não vale a pena fazer nada. Um dia tudo se vai resolver por si. O melhor é arranjar um qualquer entretenimento mental para ajudar a aguentar. Porque é apenas uma questão de tempo. Não vale a pena forçar. Tenho para mim que o que tem que ser será. Mas só o é na altura que tiver que ser. 

A nível profissional ou pessoal sempre me aconteceu isto: depois de estar como que em hibernação mental, o próprio corpo a pedir descanso, um belo dia, sem saber porquê, acordo e aparece-me uma decisão que me vira a vida noutra direcção. Por vezes, uma ideia anda por aqui a pairar, indefinida, inconcreta, impalpável, vaga, vaga, como uma ilusão longínqua. E, do nada, aparece a cola que liga as peças, une as pontas. E, aí, é só ir atrás que a coisa se dá.

Mas eu sou eu e pouca graça tenho para falar das coisas. Agora as moçoilas aqui abaixo têm toda uma sabedoria, graça, irreverência e cabelo às cores que é impossível a gente não pensar que quando for grande quer é ser como elas. 

[Relembro: Gilda tem 79 anos, Sonia 83 anos e Helena 92 anos] 

E mais nada. O resto é conversa.

Avós da Razão: Escute os sinais e respeite seu momento


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Ao longo do texto, fotografias e montagens de Grete Stern na companhia do violinista Augustin Hadelich a interpretar Dvořák: Humoresque No. 7 in G-Flat Major

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E bora lá curtir mais uma sexta-feira
Boa disposição, boa sorte e boa saúde.

quarta-feira, novembro 24, 2021

Estes nossos queridos tabus

 

Quando eu era pequena a minha mãe gozava com um perfume chamado Tabu. Dizia que era intenso, vulgar. Na minha cabeça um tabu era isso, uma coisa vulgar mas, porque intensa, algo violenta. 

Aos poucos fui reconhecendo alguns. Não saberia definir: talvez preconceitos que nos tolhiam. 

A primeira vez que o senti e me fez sentir muito revoltada aconteceu teria eu uns quinze anos, por aí. 

Tinha um namorado e tinha um grupo de amigos de quem era inseparável. Por vezes, quando tinha aulas de manhã, almoçava e depois voltava ao convívio. Podíamos passear, ir para o parque da cidade, voltar ao recreio do liceu caso houvesse jogo de futebol a que assistir ou podíamos ir para a beira mar. Sempre fui chegada a água, mar ou rio. Mas, na altura, era mais o ambiente de largueza e a tranquilidade. 

Nada de mais. Conviver e descobrir o prazer da amizade eram coisas boas e inocentes. 

Até que um dia a minha mãe chegou ao pé de mim, toda cheia de censura, ares de recriminação, e disse que lhe tinham contado que eu ia passear para a beira-mar. E disse-o como se a beira-mar fosse lugar de perdição e como se, por eu lá andar, estivesse a conspurcar-me. Aquilo ofendeu-me de uma maneira profunda. Em especial não consegui aceitar que a minha mãe desse ouvidos a quem lhe foi contar isso e viesse acusar-me nem eu sei bem de quê. Lembro-me que chorei de fúria. Queria que ela me dissesse quem tinha ido denunciar-me por coisa tão absurda. Não disse. Não sou, nunca fui, de armar zaragatas. Mas sou de tomar decisões irrevogáveis. 

Passear à beira-mar era um tabu. E eu e os tabus nunca convivemos amistosamente. 

Quando acabei o liceu, tornou-se muito claro para mim que tinha que sair de sob o jugo dos tabus. Resolvi que iria ficar numa residência de estudantes. Foi uma luta. Os meus pais não percebiam tal obstinação. Desculpei-me com o tempo que perderia em transportes e que seriam preciosos para estudar. Foi muito difícil. Mas consegui. Tinha dezassete anos acabados de fazer. Voltava a casa à sexta-feira e saía à segunda. O doce sabor da liberdade sempre foi imprescindível para mim.

Também quando deixei um namorado e comecei a namorar outro, a minha mãe preocupava-se com o que as pessoas iriam dizer. Outro tabu. Uma rapariga não podia ter mais do que um namorado e, muito menos, ser adepta do lema de rei morto, rei posto

E eu sempre me estive nas tintas para o que pensavam ou deixavam de pensar. A opinião censora e preconceituosa dos outros nunca foi coisa que entrasse nas minhas equações. Nunca me ocorre sequer recear o que pensem. Visto-me, penteio-me, faço o que quero, como quero, quando quero, com quem quero. Não tenho que dar satisfações a quem quer que seja sobre coisas que apenas a mim dizem respeito.

Ou, já quando trabalhava, ainda novinha, quando tinha que ir apresentar projectos à sala de direcção (com acetatos que se colocavam num retroprojector) e me recomendavam que fosse vestida de uma forma mais austera. Era coisa que, obviamente, me entrava por um ouvido e saía por outro. Nunca achei que uma mulher tivesse que se tornar menos feminina para progredir num mundo de homens. Nunca alterei a forma como me vestia, calçava, penteava, falava ou comportava. A toilette de fato completo cinzento com camisa branca nunca fez o meu género. Pelo contrário, vestia-me como me sentisse simultaneamente mais bonita e mais confortável. 

Uma vez uma colega mais velha disse-me: uma mulher aqui só progride na horizontal. Primeiro, nem percebi. Depois quis que me explicassem: porque dizia isso se não havia uma única mulher na direcção, muito menos na administração. Explicou-me que nem como chefe de secção. Disse-lhe que ela deveria passar a dizer: aqui, nem na horizontal, uma mulher consegue progredir. 

Quando tinha que ir a outros locais da empresa, ia muitas vezes com algum colega. Só tinha colegas homens pelo que só ia com homens. Mesmo ao estrangeiro. Uma vez, tínhamos ido a Zurique, o meu director da altura disse que a mulher lhe tinha dito para ele se portar bem. Fiquei espantada. Mas com quem poderia ele portar-se mal? Comigo não era com certeza. 

Progredi e nunca tive que me colocar na horizontal. Se calhar quebrei um tabu. Mas, se calhar, foi-me fácil porque sempre me marimbei para tabus. Não me esforcei, não alterei um milímetro da minha conduta. Simplesmente, não me intimidei. 

Os tabus são grilhetas que acorrentam a força de vontade das pessoas. Só que o mais dramático é que são grilhetas invisíveis, muitas vezes apenas existentes na cabeça das pessoas. Muitas vezes são as próprias pessoas que se acorrentam. E fazem-no apenas por medo. Medo da opinião dos outros, medo da rejeição, medo de não suportarem os olhares alheios, medo de não saberem o que fazer com a sua própria liberdade. 

Nas mulheres, medo de beber em público, medo de beijar um homem em público, medo de cortar ou pintar o cabelo de uma certa maneira, medo de receber certas pessoas em casa, medo de que não a achem um modelo de virtudes. Nos homens, medo de chorar em público, medo de receber um não, medo de errar, medo de terem que reconhecer que erraram, medo de precisarem de ajuda, medo que percebam que precisam de ajuda. 

Medos. Tabus. Barreiras intransponíveis ainda que invisíveis.

Para mim apenas desafios. Acho que o meu pequeno urso cabeludo também é assim. Se lhe digo que 'aqui não' ele faz de tudo para chegar ali, para pegar aquilo, para o arrastar para onde ele quer. Pode ser uma almofada, um soutien, uma meia, um sapato, o comando da televisão. Ultimamente é uma chávena que está na parte da vitrine que não tem porta. Eu zango-me, eu ameaço, eu digo: aqui não. E ele não desiste até levar a dele avante. É cá dos meus.

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Mas ninguém melhor do que as desempoeiradas e jovens Avós da Razão para dizerem o que fazer com os tabus. 

E para explicarem a relação entre os tabus e os sete pecados capitais (quiçá com os dez mandamentos).

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Desejo-vos uma boa quarta-feira -- sem tabus.

E com saúde, ânimo, boa disposição. Força aí.

segunda-feira, novembro 22, 2021

Saudosista eu...? Ná...

 





Não tenho propriamente saudades. Tenho recordações. Saudades no sentido de querer voltar a viver, isso não tenho. Nem há nada que gostasse de voltar a viver para fazer o que na altura não fiz ou para repetir o momento. 

Se, agora que escrevo, tentar pensar em momentos bons que gostasse de reviver apenas me ocorrem instantes. Mas não seria bem reviver o que eu gostaria, seria mais estar de novo dentro daquele momento, agora que sei que aquele momento ficou retido no passado.

Por exemplo, eu teria uns catorze anos e houve uma gincana num fim de semana. Éramos pares e a prova incluía percurso de carro, depois eu saía e tinha que fazer tiro ao alvo, depois no carro aos esses, depois andar com um ovo numa colher, depois no carro a fazer peões. E o meu par, no carro, era um jovem bem mais velho que eu (na altura eu achava que ele era bem mais velho mas se calhar tinha uns vinte ou vinte e poucos) e eu achava-o um ás do volante e aquilo era muito renhido e nós estávamos empenhados em vencer e estava a correr-nos bem, eu entrava e saía do carro quase em andamento e era muito emocionante, ouvia gritar por nós e, no fim, ganhámos. E lembro-me de ter os cabelos compridos, soltos, e lembro-me que tinhas uns calções curtinhos e uma blusinha em azul turquesa com o desenho de malmequeres. E estava sol e eu lembro-me que, naquele instante, estava tão feliz e que pensei que ia sempre lembrar-me daquele momento.

Também me lembro do dia em que já era de noite, no inverno, os dias eram curtos, e estava um nevoeiro cerrado. Teria uns quinze ou dezasseis anos, estava sozinha, devia ter vindo daquela casa onde supostamente ir ter explicações mas em que, na realidade, ia pela tertúlia, pelo ambiente de liberdade e alguma clandestinidade que ali se vivia, e ia para a paragem de autocarro, apenas se viam vultos, eu estava um pouco assustada. E, então, um vulto cruzou-se comigo e disse o meu nome mas no diminutivo. E eu olhei e já não vi ninguém. E fiquei arrepiada, trémula, no frio e nevoeiro. E não me importava de voltar a estar ali para tentar perceber quem era aquele homem. Só por isso. E também pelo ambiente cinéfilo, um suspense materializado.

Lembro-me daqueles dias em Angola, tanto calor, tanta humidade, os meus cabelos fartos e compridos ao fim do dia sempre ainda mais pesados e húmidos. Ansiava pelo banho para poder limpar aquela humidade que se colava à pele e aos cabelos. Usava blusinhas cai-cai, quanto muito com uma fita que se atava atrás do pescoço. E ele -- que tinha um perfume que, na sua pele, se tornava afrodisíaco em contacto com aquele calor africano -- a olhar-me fixamente e a dizer que os meus ombros o deixavam maluco. E eu ria e dizia que ele tivesse juízo mas, lembro-me bem, o que eu queria mesmo é que ele não tivesse juízo nenhum. Ele tinha namorada em Portugal e eu também.  Talvez fosse bom voltar a esses dias. Mas seria só para observar melhor aqueles momentos em que, de verdade, senti o que era ser mulher e como era bom estar com um homem. Não quereria voltar a revivê-los nem daria largas à vontade forte que sentia de deixar correr sem qualquer preocupação pois sei que se isso tivesse acontecido talvez a minha vida tivesse seguido outro rumo e eu gosto muito do rumo que ela seguiu. Mas não me importava nada de nos ver naqueles longos e maravilhosos dias.

E lembro-me da manhã de um dia 10 de Dezembro, dia também húmido, Lisboa branca, envolta em neblina. O primeiro dia do resto da minha vida. Não queria reviver mas fotografá-lo, fotografar-nos, aos dois, envoltos num tule branco e molhado, naquele dia em que não conseguíamos parar a torrente de beijos nem separar-nos. Gostava de saber como nos viam aqueles que se cruzavam connosco porque nós não víamos nada, apenas tínhamos olhos e mãos e bocas um para o outro.

E, claro, lembro-me de mil instantes de mil ternuras, eu e os meus filhos, bebés, depois mais crescidos, depois adolescentes, depois adultos, depois a viverem as suas vidas, a terem os seus filhos, mil momentos de amor. Mas revivê-los não, apenas revê-los. Sonho é com os momentos que estão por vir.

Não sinto, pois, vontade de regressar ao passado para o reviver. Não. Só o futuro me interessa. Tenho é muita vontade de ser surpreendida pelos momentos que o acaso e a sorte têm para me oferecer. Que nunca me faltem os bons momentos para relembrar. Gostava de ter pela frente mais muitos mil instantes luminosos cintilando na minha memória.


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E que entrem as Avós da Razão para dizerem de sua justiça sobre o Saudosismo


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Fotografias feitas este domingo aqui em casa ao som de Autumn Leaves com o Chet Baker

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Desejo-vos uma semana feliz a começar já por esta segunda-feira

sábado, novembro 20, 2021

Onde é que pega, a idade?

 


Uma vez, teria eu uns quarenta e picos, um colega disse, com ar irredutível, que quem dissesse que depois dos quarenta estava fisicamente tão bem quanto antes estava a mentir. Eu, admirada: 'A mentir?!. E ele: 'Com os dentes todos'. Na altura, bati três vezes na madeira e disse, de fininho, que, por acaso, eu não tinha tido, até ao momento, razões de queixa. Nestas coisas não gosto de me gabar. É aquilo de que não acredito em bruxas mas lá que as há, há. Nunca fiando. A gente gaba-se e, parece que não, parece que atrai. Portanto, mesmo que a gente se sinta bem, deve ir com calma na constatação.

A verdade é que, nessa altura, me sentia toda tão em igual condição ao que sempre me tinha conhecido que nem me dava conta da idade a passar. 

Quer a nível emocional, quer a nível físico sentia-me para as curvas. 

Onde é que os quarentas já lá vão... 

Havia médico na empresa e uma vez por ano havia chek up a sério e, sempre que tinha alguma coisa, constipação, dor de cabeça ou afim, eu descia até ao consultório e a coisa resolvia-se. Dizia-me sempre: Está óptima. E, como eu me sentia óptima, acreditava que estava óptima. Dava-me muito bem com o médico. Acabávamos sempre na risota. De todas as risotas, lembro-me em especial da história da tia que, depois de um AVC, acordou a falar espanhol. Portuguesíssima, sem amigos espanhóis que se lhe conhecessem, ninguém conseguia explicar o fenómeno. A imitação que ele fazia da tia era de ir às lágrimas. Dizia que a tia falava um espanhol fluente e não se espantava com o facto. Quando lhe perguntavam porque é que estava a falar em espanhol ela admirava-se como se fosse essa a sua língua nativa. Veio depois a descobrir-se que, em criança, tinha tido uma ama espanhola.

Mas isto para dizer que me sentia tão medicamente acompanhada que nem me ocorria fazer outro tipo de exames. Até que um dia uma colega apareceu com uns nódulos no seio. Quando eu disse que nunca tinha feito uma mamografia, ela insistiu que eu fosse fazer. E eu própria assimilei que o devia fazer.

Mas fui na maior descontração. Quando me deitei, em tronco nu, para o médico me fazer a ecografia mamária e ele me perguntou se tinha dores nos seios, fiquei admirada: porque pergunta? Ele tinha posto as películas junto à luz. Disse-me: é que tem alguns quistos.

Lembro-me bem. Fiquei siderada. Não fui capaz de dizer nada. Mutismo absoluto. Ele deve ter percebido o estado de pânico em que eu tinha ficado e esclareceu: eu disse quistos, não disse tumores. Perguntei se quistos não era coisa grave. Ele riu-se, disse que não. Quando levei os exames ao ginecologista e perguntei outra vez se os quistos eram pacíficos ele também se riu, disse que grande parte das mulheres os têm. E acrescentou que se os quistos fossem luminosos, as ruas iriam parecer estar com iluminações de natal. 

Como eram interiores, nunca dei por eles. Depois da menopausa parece que sumiram. Até que um levantou suspeitas. Apanhei um grande susto, teve que ser feita uma biópsia. Dolorosa, amedrontadora. Felizmente não era nada de mais. 

Depois foi um joelho. Doía-me. De vez em quando, para aí uma ou duas vezes por ano, inchava. Depois passava, passavam-se meses em que nada tinha. Em especial quando íamos para fora, eu passava os dias inteiros a caminhar pelas ruas, a ver exposições, a ver lojas, a ver a vida nas ruas. Ou, por cá, palmilhávamos cidades, vilas e aldeias. Nada me cansava, nada me doía. Até que, do nada, no ano seguinte, lá me aparecia a dor no joelho. 

O médico disse que o melhor era fazer uma artroscopia. Outros médicos disseram que não viam qualquer razão para isso. Mas, como o ortopedista me disse que aquilo era só fazer três furinhos e que no dia seguinte saía do hospital a andar, até fui na cantiga de que, já que ia ser anestesiada, espreitava era logo para os dois joelhos.

Foi um disparate. Com os dois joelhos intervencionados ao mesmo tempo, a recuperação foi complicada. Quando um mês depois fui de férias para o Algarve e caminhei na areia e andei a nadar e a mergulhar, convencida que estava curada para todo o sempre, o joelho voltou a inchar. Fiquei desiludida a triste. Afinal não deveria ter esforçado pois ainda não estava completamente bem.

E estas coisas começaram a fazer-me perceber que, se calhar, o meu corpo já não estava igual a quando tinha vinte anos.

Este ano foi aquilo do coração. Ainda há dias fiz mais um exame que durou cerca de sete horas. Li o relatório e não percebo bem. Parece-me que nada de mais mas que, se bem interpreto aquilo, qualquer coisa que não sei se é coisa, se é coisita.

Numa das vezes em que queria perceber se havia relação com a vacina (pois aconteceu no dia em que levei a vacina) disseram-me que, só por ter sido no mesmo dia, não se poderia estabelecer a correlação e que poderia ser simplesmente coisa da idade.

Num outro exame, ao ver para ali num exame o que me parecia ser uma irregularidade, outra pessoa disse que era normal pois com a idade o corpo vai-se alterando e que certamente eu não esperaria que o meu corpo estivesse sem quaisquer marcas da idade.

A minha mãe, que já está a aproximar-se dos noventa, tem as mesmas perplexidades. Quando tem alguma dor nas costas ou alguma coiseca, diz com espanto: mas o que é isto? Sempre estive tão bem e agora isto?

Aí sou eu que lhe pergunto se acha que ainda podia ter a coluna igual a quando tinha dezoito anos.

Mas é uma chatice, isto. 

A mim o que me preocupa quando percebo que alguma coisa já não está exactamente igual ao que estava quando eu fazia aqueles despreocupados checkups iniciais é recear que vá de mal a pior, é recear que seja qualquer coisa degenerativa. É que se for só algum desconforto menor e ocasional e que se trave ou controle com caminhadas e comida saudável, está tudo bem. Agora se uma pessoa vai para velha a sério, a sentir-se velha, com achaques, com falta de vontade de se mexer, sem disposição para se rir e mandar tudo o que é preconceito e treta para o quinto dos infernos, aí, sim, deve ser uma seca das valentes.

E é isto o que me apraz dizer sobre a idade a nível físico. Das rugas ou cabelos brancos não vale a pena falar. É secundário, irrelevante.

A nível intelectual e emocional, para já -- e deixa cá bater três vezes na madeira -- so far so good. Pelo menos que eu dê por isso. Às tantas estou toda para aqui toda optimista julgando-me ainda escorreita das ideias e, afinal, os outros já andam a cochichar pelos cantos: 'coitadinha, tão gagá que já está...'

Enfim. 

Resumindo: o importante nisto tudo é gostar de viver, é querer aproveitar o tempo e a vida que temos, é sentirmo-nos agradecidos pelo acaso que fez com que tivéssemos a oportunidade de viver esta aventura. E o resto são trocos.

Bola para a frente.

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Mas nada como dar a palavra a quem a sabe toda: as Avós da Razão

O que mais pega na velhice?


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Desejo-vos um belo sábado
Chova ou faça sol, venha daí um big smile.

sexta-feira, novembro 13, 2020

Uma experiência homossexual...?

 


Do que me conheço, em abstracto diria que seria altamente provável que eu fosse pansexual: ou seja, que gostasse de pessoas independentemente do seu sexo ou orientação sexual. Crio, naturalmente, uma forte conexão com pessoas de quem gosto. Pelo contrário, sinto repulsa, que é mesmo repulsa física, se verdadeiramente antipatizo com alguém. Não é frequente sentir uma antipatia assim, visceral: tenho que sentir, no meu mais íntimo, que é uma pessoa parva, oca, narcisista, destituída de inteligência, de genuínos sentimentos, de valor de qualquer espécie. Aí nada a fazer, só peço a todos os santinhos para nunca me aparecer à frente. Em contrapartida, se a pessoa é inteligente, se tem sentido de humor, se é generosa, simpática, se desenvolve empatia em relação aos outros, se é boa companhia, se sabe surpreender-me, então, tem a minha simpatia e facilmente me relaciono com ela.

Mas uma coisa é simpatizar, outra é sentir atracção física. Aí, nesse capítulo, sou muito selectiva. Quando eu desdenhava de muitos que toda a gente achava o máximo, havia sempre alguém que dizia: hás-de deixar-me ver o teu caixote do lixo. Para eu me sentir atraída por alguém tem que essa pessoa ser muito de muitas coisas e nada também de muitas coisas. Na atracção física sou fundamentalista. Não há meio termo, não faço concessões. Tem que fazer o pleno dos fundamentais. 

E, até hoje, isso só aconteceu com homens. Nunca me senti atraída por uma mulher. Identicamente, nunca me apercebi de que alguma mulher se sentisse atraída por mim. Que eu saiba, de entre as mulheres com quem me relaciono mais de perto apenas uma é homossexual, mas não assumida. A mim tanto se me dá. Não me faz qualquer impressão nem uma coisa nem o contrário. Simpatizo com ela por ser como é.

Se me forçar a pensar no que poderia ser a minha reacção se uma mulher se apaixonasse por mim ou pretendesse tocar-me de uma formais sexualizada, sinto incómodo. Penso que sentiria repulsa. Mas lá está: nunca aconteceu, o que pense sobre isso é em abstracto. Contudo, a verdade é que face aos antecedentes e à minha muito marcada inclinação hetero, julgo ser altamente improvável que alguma vez venha a ter alguma experiência homossexual. Para o ter, julgo que deveria haver da minha parte, a priori, alguma predisposição e não há. Ou melhor, até hoje nunca houve.

Mas, também em abstracto, uma coisa eu digo: se houvesse essa tal predisposição, não haveria da minha parte qualquer preconceito que me levasse a rejeitar, à partida, uma tentativa. Em abstracto, imagino que o melhor dos mundos deverá ser o mundo dos pansexuais: uma pessoa apaixonar-se e desejar uma pessoa só porque a pessoa nos cativa, nos dá vontade de estar próxima, abraçada a nós, bem apertadinha, nos apetece a sua companhia, nos apetece rir e conversar e passear e construir sonhos e projectos conjuntos e tudo isso pela pessoa em si e não por ser homem ou mulher ou gostar de homens e mulheres; isso parece-me um conceito irrecusável, a maravilha das maravilhas. Cá para mim, felizes os pansexuais. 

Agora que escrevi isto ocorreu-me uma dúvida: ser pansexual será a mesma coisa que ser bissexual? Deve ser, não é? Não sei se conheço alguém bissexual. Se conhecesse e se quisesse falar sobre o assunto, aproveitaria para satisfazer a minha curiosidade. 

Mas, pronto, não conheço, não sei. Não digo mais nada. Limito-me a partilhar um vídeo com as meninas mais prá-frentex de que há memória: Gilda, 78 anos, Helena, 92, e Sônia, 83.

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As fotografias são da autoria de Mario Finazzi na companhia de Portrait of a Lady on Fire (ao som de Vivaldi) e de Carol

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E tudo de bom para vocês, ok?

sexta-feira, outubro 23, 2020

Covid-19: com os casos novos a treparem assim... onde é que isto vai parar....?
E, também, o corpo dos velhos... e das velhas

 


Os números de novos infectados continuam a subir a pique e, não tendo nós pela frente um tempo propício ao ar livre nem a perspectiva de um confinamento total (dois factores que, obviamente, favoreceriam o achatamento da curva), o que temos pela frente não serão, certamente, boas notícias.

No outro dia, em comentário, o Corvo dizia que eu, lutadora e resiliente, não deveria desmoralizar. Pois não, não desmoralizo. Mas não estou relativamente tranquila como estava em Março, Abril ou Maio, isso não.

E não estou pois não apenas há aquelas duas condicionantes críticas e incontornáveis (os dois factores que acima referi) como continuo a não ver acontecer três coisas que me parecem fundamentais para tentar conter o disparo a que se assiste: 

  1. Não vejo a DGS a fazer campanhas de divulgação intensivas, assíduas, explícitas, e sobre todos os meios, sobre cuidados a ter, boas e más práticas, hábitos arreigados que têm que ser alterados, etc
  2. Não vejo o Governo a decretar que, sempre que as funções o permitam (e os trabalhadores o aceitem), o teletrabalho é obrigatório (reduzir o número de pessoas em circulação sem prejudicar as actividades é vital)
  3. Não vejo serem enunciadas regras concretas para garantir a qualidade do ar, com auditorias à qualidade do ar obrigatórias e com apoios a empresas e organizações em geral que tenham que reformular os seus sistemas de AVAC por forma a garantirem a injecção de ar novo, a desinfecção de condutas, a substituição regular dos filtros (que devem ser os indicados e não os mais baratos)

E porque o que continuo a ver são as televisões e os comentadores a olharem para o passado e a quererem encontrar culpados (como se, em Março ou Abril, quando toda a gente ainda estava a assimilar o que estava a acontecer e não havia experiência sobre a covid, os governantes portugueses devessem ser mais inteligentes que os cientistas de todo o mundo) ou reportagens a puxar à censura pública e à maledicência (como a que vi hoje no noticiário da noite da SIC) sem acrescentarem nada de concreto para resolver os problemas daqui em diante, começo a ficar apreensiva, sim, Corvo. 

Mas não sou de me deixar afogar em apreensão pelo que, quando estou preocupada ou arreliada, depois de espingardar, apetece-me é espairecer. 

Para já vou pôr uma máscara, para dar o exemplo. Com vossa licença.

Mais máscaras adaptadas ao Halloween aqui


E agora aqui estou agora a partilhar o vídeo que acabei de ver das meninas mais doidonas do Brasil e arredores. Avós da Razão, claro está. Hoje, cada uma em sua casa, curtindo a quarentena, falam de como é quando a velhice toma conta do corpo (ou melhor, como o corpo é o que é e que se dane a velhice) 




E força aí, minha gente.
Saúde. E dias felizes.

quinta-feira, outubro 08, 2020

Nem milagres nem social-milagres.
Apenas uma cena para arrumar sapatos à entrada de casa e um vídeo sobre relações

 


Sobre as contradições e os absurdos que envolvem tudo o que se refere ao narcisista-demente hoje não me apetece falar. 

Dia inteiramente preenchido, sem tempo para esticar as pernas, descansar a cabeça ou desanuviar a vista. Ao fim do dia estou sem vontade de me atiçar. Gastei os rastilhos e cargas explosivas ao longo do dia. No entanto, estive paciente. De vez em quando, sobem-me umas impaciências que chego a julgar não conseguir controlar. Mas estava a lidar com gente bem intencionada e, portanto, por decência e generosidade, aquietei-me, deixei rolar. Ver o tempo a passar, eu a ficar com a agenda sobreposta, e a manter-me quieta, deixando que as pessoas tenham o seu momento e se alonguem até quererem. 

Penso que consigo desafiar as pessoas levando-as a acreditar que vão conseguir coisas para as quais nunca imaginaram que alguém as fosse puxar, penso que percebem que estou ali para os ajudar a serem melhores e a irem mais além. E isso a mim é o que me motiva. Acredito que modifico a vida de algumas pessoas fazendo muito pouco, apenas acreditando nelas. Mas a crença, lá está, cá para mim faz milagres.

Mas tantas vou acumulando, a tanta dose suplementar de paciência me forço, que chego à noite e estou verdadeiramente sob o efeito de um pack de efeitos secundários. Um deles é este: a energia para desferir flechadas sobre cavalgaduras criminosas falha-me. 

E, assim sendo, digamos que hesito entre dar o dia por feito e encostar a cabeça para trás, adormecendo de imediato, ou deixar-me por aqui ficar, vagueando entre coisas nenhumas.

Agora que escrevo, passa um documentário biográfico sobre o médico Sousa Martins. Há pessoas que despertam sentimentos bizarros nos outros. Não sei como se parte de um sentimento de reconhecimento agradecido para com uma outra pessoa, para um sentimento já em segunda, terceira, quarta mão, que não é senão espelhar na sua memória a imagem de um santo, seja lá o que isso for. Vejo a reportagem e há ali gente e gente e gente que nem deve conhecer minimamente o percurso de Sousa Martins e que o venera como se o senhor, que já morreu há cento e tal anos, ainda pudesse curar males que os médicos vivos não curam ou satisfazer caprichos ou conceder favores que não lembram ao careca.

Acho bizarro mas não censuro. Tenho para mim que a mente comanda a vida e se uma pessoa quer curar-se ou quer ser abençoada ou tocada por uma qualquer graça, todo o seu organismo se polariza nesse sentido -- e o bem aparece. Em contrapartida, quando uma pessoa desiste, descrê, se desinteressa e se entrega ao fatalismo, o corpo rende-se, a cabeça sucumbe -- e o mal acontece.

Por isso, é bom ter fé. Se umas pessoas têm fé no 'doutorzinho' como a extraordinária Lina da Trafaria tem, se outras acreditam na Nossa Senhora de Fátima ou no Cristo Redentor ou na Santinha do Pau Oco, se outras na grande força cósmica do universo ou na boa onda com que tantas vezes o acaso se apresenta, tanto faz. O que é preciso é acreditar, seguir em frente. Desde, claro, que se mantenha um mínimo de racionalidade. No entanto, tenho a impressão que mesmo quem tem fés e fezadas estranhas geralmente não descura os tratamentos médicos normais ou não deixa de lutar pelo que quer. 

Mas, enfim, o tema é complexo e eu não tenho competência para tanto. A pouca que tenho reservo-a para sobreviver, não para frescuras.

Por isso, vou pôr-me na sic e ver a novela da noite, uma brasileirada cheia de ternura e graça. Totalmente demais. Não posso cansar a minha beleza. Já dobrei o dia, daqui a nada recomeço. Outro dia assim. Tenho que me poupar. 

Mas dizia eu, a minha latitude mental e a hora avançada, não dão para temas elevados, só mesmo para rasteiros, assuntos que têm a ver com os pés, não com a cabeça.

Conto. Com isto do macaquinho cabeçudo dos totós cor-de-rosa veio a coisa de não andarmos em casa com sapatos da rua. Por acaso, nunca andei -- mas atravessava o hall, depois o corredor e ia deixar os sapatos na sapateira que estava num canto da varanda fechada das traseiras. Ora agora não apenas é suposto não se andar a atravessar a casa com sapatos da rua como não há cá varandas fechadas ou recantos onde fiquem à mão de semear. Ir pôr na cave sapatos de uso corrente não dá e ninguém quer exércitos de merdinhas a desfilar pelo corredor. Portanto, ando a lidar com esta dúvida. Temo-los deixado no chão, junto à porta de entrada, mas coisa mais sem jeito não há. Os meus, os dele, às tantas uma sapataria desorganizada a fazer a recepção a quem chega. Muito mau. Pois bem, dei agora com uma solução. Não é perfeita mas se puser isto atrás da porta, quando se entra, não se vê e, quando se sai, eis que ali estão, ao dispor.


And that's all Folks!

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As imagens são da autoria de um dos fotógrafos com quem eu, quando crescer, gostava de estagiar: Nick Knight. 

A Janis Joplin está ali em cima porque obviamente.

Acabo com um suplemente vitanímico. Não vitamínico mas isso mesmo que escrevi.  Um suplemento anímico com as minina, as avós da razão.



E tudo de bom para si que aí está desse lado.

terça-feira, outubro 06, 2020

5 de outubro in heaven

 



Não sou diferente do resto das pessoas. Não vivo numa bolha onde tudo e todos sorriem a toda a hora. Posso é não ter paciência ou gosto em falar de assuntos que não me agradam. Mas, como toda a gente, tenho noites mal dormidas, tenho, volta e meia, alguma coisa que me preocupa, uma dorzinha aqui ou ali, assuntos que não se resolvem, pessoas que não agem como acho que deveriam agir, ou, pior ainda, pessoas conhecidas, umas mais próximas, outras menos, que adoecem ou morrem. 

Por exemplo, se eu descrever o meu dia contarei que fomos ao supermercado e falarei do contentamento que tenho a escolher pão, pãozinho mesmo bom, uns de cereais e sementes, outros de abóbora, outros com nozes, coisas assim, e fruta, cebolas brancas, tomate alongado, feijão verde, salsa, batata doce cor-de-laranja, queijo, kefir -- coisas assim. Contarei também que fui, outra vez, a um lugar que descobri, perto de casa, onde se vendem flores de que nunca antes tinha ouvido falar. No outro dia, numa das nossas caminhadas, vi uma planta surreal. Foi devidamente fotografada e validada no plant.net. Muhlenbergia capillaris. Não tinham. Fiquei com pena. Mas não tenho urgência: se até lá não tiver melhor ideia, precisarei dela lá para maio ou junho. Claro que, se entretanto houvesse, arranjaria um lugar bonito para lhe dar visibilidade. Entretanto, queria uma flor para pôr num vaso e optei por um loropetalum chinense. E não se pense que sei estes nomes de cor. Não. Gostava mas não. De cada vez que quero escrevê-los tenho que ir em busca da informação e, mal acabo de escrever, por copy paste, já me esqueci.

Se, in heaven, quando para cá viemos, só queria plantar árvores, nesta casa nova só quero ter flores diferentes. Andei também à procura de um vaso bonito mas aqueles de que gostei iam de trinta e tal euros para cima. Aquele de que gostei mesmo custava oitenta euros. Não sei se sou eu que estive fora do mundo dos vasos desde que nasci ou se estou a procurar vasos de luxo ou a ir a lugares que se dedicam à especulação financeira em torno dos vasos. Não trouxe nenhum e tenho que ver se consigo descobrir algum lugar onde vendam vasos bonitos mas a valores mais razoáveis.

Depois, em casa, andei a regar, a fotografar flores, estas que aqui veem e outras, a lavar alguma roupa, etc. E isso conto de gosto tal como conto que andei a varrer. O vento e o outono são um permanente desafio para quem gosta de varrer.

Mas não contarei que, depois de almoço, houve que prestar despedidas a alguém que era novo demais para ter partido tão cedo tal como era bom demais para ter sido tão duramente castigado.  Não era de mim que era próximo mas perante uma situação assim, senti como se o fosse. 

Mas contarei, isso sim, que, de lá, viemos para o campo. Que saudades já sentia. Tão bem que aqui estou.

Não sei se no outro dia que aqui estive contei que, convencida que fiquei, deixei que a minha filha aplicasse nesta sala da televisão o banho de claridade que aplicou na outra casa. As cobertas que eram encarnadas, as almofadas que eram multicoloridas e os quadros que eram também uma torrente de cor, foram todos apanhar ar. Agora as cobertas são claras, em beige, as almofadas são no máximo bicolores e sóbrias, os quadros são tranquilos, em tons afins. A sala ganhou dimensão, tranquilidade. Olho em volta e não consigo deixar de sorrir. Pequenas coisas bastam para mudar tudo. Na decoração, na vida. 

Basta a gente perceber que é melhor para nós, basta estarmos disponíveis para sairmos da nossa zona de conforto - e darmos o passo. Ou deixarmos que o deem por nós.

Aqui, andei a passear, a respirar este ar limpo e perfumado, o comer os últimos figos, tão bons, a apanhar e papar medronhos madurinhos, encarnadinhos, docinhos. Depois a trocar quadros, a ouvir o meu marido a protestar, que não quer fazer mais buracos e etc, e a arrumar roupa, a fazer jantar. 

Também posso confessar que, a seguir, como sempre aqui me acontece, ajeitei-me no sofá e pimbas, tiro e queda, caí no sono. 

E posso ainda contar que, felizmente, o sono foi coisa pouca. Acordei a tempo de conferir que o cozinhado estava no ponto. Depois falei com a minha mãe, com os meus filhos, tudo em paz. E, mais tarde, voltei aqui, ao sofá. Mas o sono, tanto... Sempre assim foi: os ares do campo limpam-me a cabeça, fico de tal maneira na maior leveza que o sono pousa logo em mim. Aqui é onde melhor descanso. 

Agora, enquanto escrevo, vou vendo a televisão. Esqueço preocupações, esqueço a tristeza que senti quando ontem soube a notícia e quando passei em frente da capela e vi tanta gente, tudo gente nova, tudo gente triste, uma jovem mulher chorando entre abraços. Pensei que a covid se alimenta de momentos assim mas não era hora para isso, para juntar preocupações à tristeza. Sei bem a falta que faz um abraço quando se perde alguém a quem muito se quer. Mas, lá está, de coisas assim não vou falar. 

Bem. 

Tenho estado para aqui a escrever e, como tantas vezes acontece, escrevo sem uma linha de rumo. Por vezes penso noutras coisas mas afasto essas ideias, não são para aqui chamadas. Umas chuto para canto, outras para o alto. Sobra aqui coisa mais ligeira, coisa mais inócua, a bola para a frente. Mas que não se pense que vivo numa bolha asséptica, onde não há preocupações, momentos de saudade ou tristeza. Mas para quê alimentar coisa dessas? Eu não. Flor bonita eu rego, erva feia eu arranco ou deixo que se fine.

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E foi assim o meu dia feriado. Foi como se fosse domingo. Não vi os discursos nem os inerentes comentários. Não sou muito de festejar datas. Claro que o 5 de Outubro é mais do que importante e claro que é mais do que importante que os dias importantes sejam feriados. Mas parece que a malta festeja coisa importante como se fosse data de epitáfio, coisa saudosista, lembrança de tia-avó que a gente não conheceu, ainda por cima dia  travestido de ocasião para mandar recados. Não faz o meu género.

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O que agora anda a fazer o meu género é a boa onda destas três mininas que dizem o que têm a dizer soltando gostosas gargalhadas

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E um dia feliz a si que aí está desse lado. 
Saúde, sorte e amor.