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quinta-feira, fevereiro 28, 2019

O meu vício





Sempre ouvi dizer que os alcoólicos nunca deixam de sê-lo: conseguem é ter força de vontade para deixar de beber. Contudo, têm que manter uma disciplina férrea. Por exemplo, não podem aproximar-se do álcool pois sabem que, se abrirem uma brecha, logo a oportunidade voltará a transformar-se em necessidade e o caldo lá voltará a entornar-se. 

Com o tabaco é capaz de ser a mesma coisa. Deixei de fumar e nunca mais toquei num cigarro. Não sei como seria se abrisse uma excepção. Até pode ser que me soubesse mal e me arrependesse para todo o sempre. Contudo, não arrisco. Na altura, quando a memória estava mais fresca e os gestos mecanizados ainda inseridos na habituação, sentia a falta de levar o cigarro à boca, sentia aquela falta de, em determinadas situações, aliviar a tensão através das longas inspirações e expirações. Mas não cedi. Todos os dias, quando entro ou saio no escritório, passo por pessoas que estão num recanto ao ar livre junto à porta que separa o edifício do estacionamento. Fumam. Uns estão sozinhos, meditando, soltando longas baforadas, outros estão aos pares, conversando. É inevitável que aspire algum do fumo que paira no ar. Não me desagrada aquele cheiro embora me incomode um pouco a perspectiva de estar a inalar ar poluído. Nunca me senti tentada a pegar num cigarro e matar saudades. Penso que, se calhar, nunca fui verdadeiramente viciada no tabaco. 

Tenho ideia que isto de uma pessoa ter vícios é coisa genética, uma propensão para se ficar agarrado e, se não for isto, é aquilo. Uma adicção, uma tendência inelutável para a dependência.


E é isto que sinto com os livros. Sei que, para mim, a solução é não me aproximar das livrarias. Sei que, estando eles por perto, caio na tentação, cedo ao vício.

Penso que talvez seja como com os cigarros: eu dizia e sentia e tinha a certeza de que no dia em que decidisse deixar de fumar o conseguiria e que seria para sempre. Só que esse dia levou trinta anos a chegar. Talvez o dia em que ficarei indiferente aos livros ainda esteja para chegar.

Mas reparem nos meus mixed feelings em relação a isto. Parece que digo uma coisa e o contrário. Não consigo ter certezas. E isto porque com os livros não consigo ter opiniões muito racionais e, na verdade, não tenho claro que esta dependência seja demolidora para mim e que fará sentido cortar de vez com a vontade de ter novos livros.

Quando comprei as últimas estantes e reorganizei a biblioteca, deixei aqui, ao meu lado, fora das estantes, uns quantos livros, uma meia dúzia. Entretanto, já se transformou numa pilha bastante jeitosa e, um dia destes, ficará arriscado continuar a pôr os novos em cima dos outros.


Andei de umas para outras, hoje, com música boa na antena 2 enquanto conduzia, momentos tranquilos. Mas, nos entretantos, cenas agitadas, aquele stressezinho macaco que só não é maior porque, com o tempo, aprendi a cultivar um saudável distanciamento. Mas, à hora de almoço, tombei. A culpa foi do Jorge Carreira Maia que veio trazer notícia de um livro novo de Mathias Enard. Em tempos o Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes tinha-me cativado. Com a referência dele a este livro, fiquei curiosa. Fui à livraria só mesmo para ver, para folhear. E para ver se o tradutor era o Pedro Tamen. Pedro Tamen a traduzir um livro é atestado de coisa boa.

Fui. Não estava no escaparate. Procurei na estante, na devida ordem alfabética. Lá estava. Fui conferir. Não escondo a decepção. Não era Pedro Tamen, era Ana Cristina Leonardo. Fiquei na dúvida porque nunca avaliei a qualidade dela nesta vertente mas, enfim, muito má não haverá de ser, sosseguei-me. Ou seja, resolvi apostar. E jurei: só este.


Mas, ainda assim, já que lá estava, até pareceria desconsideração não prestar uma atenção ao que por ali chamasse por mim. Mas sempre bem comportada, selectiva, superior -- ceder a tentações nem pensar. Com a Bússula na mão, melhor orientada não podia estar.

Até que vi Uma lágrima que cega. Na contracapa: 'o vinho sem ti é água' e 'sem ti a água não arde'. Senti que começava a salivar. Folheei. Aquela coceirinha boa da atracção. Casimiro de Brito armado em prosaico. Peguei. É só mais este.

Depois vi o Kaiser icónico em black e white. Paris Photo by Karl Lagerfeld. Folheei. Bom demais. Impossível deixar para trás. Uma coisa mesmo na base do dever.

Já com os três livros, pensei que tinha que fechar o espírito e sair de lá. Mas, no caminho, ainda um outro: Photographers A-Z. Conferi. Útil demais.

E, portanto, aqui os tenho comigo e tenho estada encantada como se tivesse ganho o melhor presente do mundo, como se tivesse descoberto um tesouro raro com jóias muito preciosas. Livros tão bons. Uma companhia tão boa, tão gratificante, uma sensação tão boa. Uma fotografia especial, uma conjugação de palavras tão perfeita.


Penso: se isto é vício, porque é que não me curo? Porque é que não me arrependo?

Mas não sei responder. Quando era ainda muito pequena descobri a emoção que pode vir dos livros e essa emoção não se esbateu ao longo do tempo. É a mesma. É maior.

E é total: não são apenas as palavras ou as imagens. É também a elegância da paginação, é o toque do papel, é o cheiro do papel impresso, é a beleza da capa. É a infindável magia das palavras mas é também o prazer de ver, de tocar o objecto livro.

Gostava de poder partilhar convosco um pouco destes livros mas não é fácil pois um livro é um todo, não um excerto. Se fosse mais cedo talvez, apesar de tudo, o fizesse mas, assim, não o farei.

São caros os livros e percebo bem que, quem não tem muitas posses, não pode dar-se ao luxo de gastar tanto dinheiro neles. Mas depois penso: quantas pessoas não podem comprar livros mas conseguem ter dinheiro para os cigarros? E não faço ideia mas imagino que devem estar bem caros. Portanto, vício por vício talvez seja preferível este dos livros: não faz mal à saúde e fico com preciosidades ao meu dispor.


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As fotografias fazem parte das melhores do The Sony World Photography Awards 2019

E a música é de Max Richter - Mercy 

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Um dia feliz a todos

quarta-feira, abril 13, 2016

A corrupção. A blogosfera.
Em noite de chuva e trovoada, prefiro dar a palavra a quatro escritores:
Mathias Énard, Ian McEwan, Philip Roth, Agustina Bessa Luís


Abaixo já partilhei um poema que me estava a apetecer ouvir. Nunca fui de apetites avulsos, nem sequer quando estava grávida, altura em que tudo me seria permitido, mas volta e meia tenho umas lembranças que puxam por mim. Palavras que têm uma delicadeza dentro de si e que soam como uma dançante toada, nesta noite em que, de vez em quando, uma forte bátega de água bate na janela ao meu lado, estavam a apetecer-me: She walks in beauty. E apetecia-me tê-las entre cores e árvores, nesta noite fria e escura -- é no post a seguir a este.



Depois, estive aqui a ver os jornais. Corrupção, detenções. Parece que todos os dias se descobre um novo foco de infecção.

E eu interrogo-me: será que somos um país de gente corrupta? Tendo a crer que não, que são apenas pequenos focos, insignificantes. Mas, face ao que se vem sabendo, já não digo nada.

Até hoje ainda não foi detido alguém que eu conhecesse pessoalmente. Penso que me dou com gente séria, gente que não corrompe nem se deixa corromper. Contudo, vejo tanta gente sob suspeição que tenho medo de um dia descobrir que alguém que tenho por pessoa decente se deixou tocar pela doença de corrupção. Temo. Do que me conheço, não perdoaria. Penso que não há atenuantes.

Tenho desempenhado funções em que era fácil deixar-me corromper. Aliás, já uma vez fui abertamente aliciada para tal. Ficaria muito rica num instante. Reagi de forma rápida e definitiva: essa empresa nunca mais fez negócio com aquela em que eu, na altura, trabalhava, e mudei os procedimentos em certas áreas, chamando a mim responsabilidades que, até aí, estavam descentralizadas. E disse para que se ouvisse distintamente: a partir de agora ninguém mais dirá que, nesta empresa, alguém recebe dinheiro; a partir de agora, quem tiver alguma a coisa a dizer, não falará em abstracto: acusar-me-á a mim. Foi remédio santo. Mas não há só corrupção em dinheiro: há a outra, a corrupção miúda: as viagens, os almoços. Digo-o muitas vezes: se eu quisesse, almoçava todos os dias à borla, se eu quisesse conhecia o mundo inteiro 'à pála'. Mas não quero. Assuntos de trabalho, não os trato à hora de almoço e, se quero passear, não aproveito convites para participar em conferências ou para visitar fornecedores estrangeiros, pago eu as minhas viagens. Mas, enfim, não me creio a única incorruptível nem melhor que os outros. Espanto-me é por haver tanta gente a ser apanhada nas teias destas sujeiras. Penso sempre que devem ser pessoas que se julgam imortais, que pensam que nunca vão ser descobertas e que acham que vão viver para sempre para poderem desfrutar pela eternidade afora do fruto dos seus maus actos.


Mas estar à noite a falar nisto... Não me apetece, tenho tido uns dias complicados, chego à noite a precisar de paz de espírito.

Então pus-me, durante um bocado, a circular pela blogosfera. Vou sempre à procura de aprender alguma coisa ou de me divertir a sério ou de ficar a pensar no que li -- ou por uma ideia inesperada ou por um ponto de vista inusitado -- ou de reconhecer o génio, ou de me enternecer com a delicadeza. No entanto, não sei se sou eu que ando mais impaciente ou se é deste tempo incerto e cinzento, mas a verdade é que, depois de andar a espreitar, aconteceu-me sentir uma grande saturação disto. Não quero ser injusta, talvez a amostra não fosse significativa, não foi certamente. Mas, do que vi, que tédio e agastamento senti. Há muita gente a dizer coisas que me parecem fúteis, inúteis, e muita gente a criticar-se entre si, e há muitos ecos -- um fala de uma coisa e logo dez vão atrás ou para dizer o mesmo ou para complementar ou para parodiar ou, até, para censurar -- e, tudo somado, espreme-se e não dá em nada. E há pessoas que a gente lê e não percebe qual a ideia, percebe-se que é gente inteligente mas parece que baixam a potência da inteligência para escrever de forma comezinha, vulgar. E depois verifico que a escrita rudimentar travestida de sensível ou viril atrai uma comunidade de fãs que, numa azáfama, produzem comentários igualmente nulos a que os autores respondem também com afirmações nulas embrulhadas em faz de conta. Cansa-me isso.


E, escrevendo isto, tenho vontade de parar, de apagar o que escrevi, penso que sou mais uma voz nesta imensa cacafonia, em que ninguém acrescenta nada. Hesito. Hesito. Já apaguei e voltei a escrever. Tenho vontade de me calar também. Uma imensa poluição em que parece que os rasgos de génio ou a genuína simpatia são uma ínfima minoria, em que generosidade ou a delicadeza se perdem num mundo obscuro e em que o imenso espaço sideral parece estar preenchido por ruído cacafónico, lixo, partículas depressivas, exibicionismo ridículo, provocações gratuitas, arrogâncias dirigidas que mais parecem amarguras sem destino, solidões agressivas, ou, então, palavras de plástico, letras repetidas e pouco mais.

Então, quando isto acontece, ponho-me a ouvir música do youtube, a passar fotografias da máquina para o computador, a ver as folhinhas secas, as hastezinhas que crescem, as florzinhas do campo, tão perfeitas, tão belas na sua garrida simplicidade, o meu heaven tão bom, que vontade de lá estar, de passar as mãos pela pele molhada das flores, pela pele húmida e fria das rochas, de ouvir os pássaros, de sentir o musgo macio e tão verde.


Mas isso parece-me tão distante, aqui nesta noite invernal, a chover e a trovejar aqui mesmo ao meu lado (agora um trovão tão grande que a casa toda estremeceu e eu dei um salto na cadeira, assustada). Como não posso estar no meu heaven tão acolhedor, procuro, então, blogues de fotografia, fotografias do outro lado do mundo, ou ponho-me a ouvir poemas, entrevistas. Com preguiça de desligar isto e ir pôr-me a ler ou a fazer tapetes. Tenho vontade de voltar a fazer tapetes, ou pintar. Ou desligar-me da internet, ligar a aparelhagem e pôr-me a ouvir CDs. Gostava de tentar escrever a sério. Um dia vou tentar.

(Devia conseguir ter aqui também cheiros para que pudessem sentir o perfume limpor e fresco das flores de laranjeira)

Por isso, enquanto a preguiça não me deixa afastar-me do computador e não me passa esta sensação de esmagamento sob um infinito manto de resíduos, restos, ruídos, tenho estado aqui a ouvir escritores. Gosto de ouvir escritores.


Mathias Énard -- Parle-leur de batailles, de rois et d'éléphants



 

Ian McEwan e o seu processo de escrita 




Philip Roth - um senhor 

 



Agustina Bessa-Luís - Um documentário

 

Nasci adulta e morrerei criança


 ....

Lá em cima era o Ensemble vocale Ricercare a interpretar La bocca onde l'asprissime parole
do II libro dei madrigali (Venezia, 1590) de Claudio Monteverdi
.....

E desçam, por favor, se quiserem ouvir  She walks in beauty.


sábado, maio 03, 2014

Verão no meu país desaparecido coisa diferente do que era na realidade, os nossos sucessores colar-lhe-ão as suas histórias, os seus mundos, os seus desejos. Nada nos pertence. Descobrirão beleza em terríveis batalhas, coragem na cobardia dos homens, tudo entrará na lenda.


Para afugentar os maus espíritos que nos desgovernam (ver post abaixo deste), para tentar distrair-me desta gente sem alma, sem moral, sem piedade, que tomou conta dos nossos destinos e maldosamente destrói a esperança num futuro melhor, desço aos meus refúgios, socorro-me das palavras que se encostam a mim, mornas, silenciosas, da música que vem de dentro de seres misteriosos, dispo a roupa, a pele, os pensamentos e fico só eu, eu sem matéria, e, no fim, fecho os olhos e deixo-me ir. Depois, já sou apenas as palavras que outros inventaram, a toada leve, a voz que vem nem sei de onde. E o silêncio branco e puro que tanto procuro. 


Mysteries of Love




A escuridão é quase completa.

Apenas uma vela no exterior projecta alguma luz pela porta entreaberta.

Miguel Ângelo adivinha, mais do que vê, os contornos daquele corpo esbelto, esguio e musculado, que deixa deslizar a roupa para o chão.

Ouve o tilintar das braceletes quando a sombra escura se aproxima dele, antecedida de um perfume de almíscar e de rosa, de suor morno.

O escultor vira-se, enrodilha-se à beira da cama.

Ela, aquela sombra, cantou para ele, ei-la a seu lado, e não sabe que fazer; tem vergonha e muito medo; ela estende-se encostada a si, tocando-lhe; ele sente-lhe o hálito e estremece, como se o vento da noite, vindo do mar, o gelasse de repente.

Sente uma mão poisar-se-lhe no antebraço, e deixa de tremer, aquela carícia arde.

Não sabe qual dos dois pulsos sente bater tão forte através destes dedos.

Uma onda morna de cabelos percorre-lhe a nuca.

De olhos fechados, imagina o rapaz ou a rapariga atrás de si, dobrando o cotovelo, com a cara sobre a sua.

Permanece imóvel, hirto como um cão de caça.



Não busco o amor. Procuro a consolação. 
A verdade é que não há mais nada além do sofrimento, e que em braços alheios tentamos esquecer que em breve iremos desaparecer. 
A tua ponte ficará; talvez, com o correr do tempo, venha a assumir um sentido bem diferente do que tem hoje, tal como verá no meu país desaparecido coisa diferente do que era na realidade, os nossos sucessores colar-lhe-ão as suas histórias, os seus mundos, os seus desejos. Nada nos pertence. Descobrirão beleza em terríveis batalhas, coragem na cobardia dos homens, tudo entrará na lenda. 
Calas-te, sei que não me compreendes. 
Deixa-me abraçar-te. 
Escapas-me como uma serpente. 
Já estás longe, longe de mais para que seja possível alcançar-te.



Muito tempo depois, em fevereiro de 1564, chega a vez de Miguel Ângelo, que se prepara para desaparecer.

Espera ver Deus, e vê-lo-á sem dúvida, já que nisso acredita.

De Istambul resta-lhe uma vaga luz, uma doçura subtil mesclada de amargura, uma música distante, formas suaves, prazeres enferrujados pelo tempo, a dor da violência, da perda: o abandono das mãos que a vida não deixou segurar, dos rostos em que não mais se farão carícias, das pontes que ainda não se lançaram.





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  • O texto abaixo do vídeo é constituído por excertos um pouco ao acaso do belo livro Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes de Mathias Énard, com tradução de Pedro Tamen, livro de que antes já aqui falei antes.

  • A música é Antony & The Johnsons, Mysteries of Love

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Talvez não seja boa ideia, depois disto, descerem até à tristeza do post seguinte mas, enfim, é ao vosso critério.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um óptimo sábado.


quarta-feira, abril 16, 2014

É dança? É teatro? Ou é apenas vida?


No post abaixo já me referi à rábula O Láparo e seu devoto pet - um sucedâneo de manequim dos Fanqueiros (o verdadeiro mora num palácio em Belém) à fala com um sucedâneo de papagaio (o original habita na RTP 1) na SIC. 

Pouco a dizer a não ser que aquilo foi produto de quinta categoria. Entrevista não foi, espaço de opinião também não que aquilo não tem cabeça para tanto, número de humor também não que a gente nem se consegue rir com uma cena tão indigente. Olhem: pastiche, pechisbeque.


Sejam turcos ou romanos, os poderosos humilham-nos sempre.
Meu Deus, tende piedade.


Agora que já arrumei a casa, estou de volta para limpar o ambiente por estas bandas. Nada pior que cheiro a coelho. E, portanto, é hora de uma limpeza profunda. Já abri a janela, já estou junto ao imenso céu rodeada pelas luzes da cidade grande, o rio silencioso a vigiar-me lá em baixo. Que venham agora, portanto, os pássaros, as mulheres e os seus amantes, a música, o sonho.

Pina. Não é a primeira vez que Pina aqui vem e não será certamente a última. A beleza do movimento sem propósito, a liberdade delirante, o voo sem destino.



Is it dance? Is it theater? Or is it just life?

Love. Freedom. Struggle. Longing. Joy. Despair. Reunion. Beauty. Strenght.

Dance, Dance. Otherwise we are lost...



O filme Pina é realizado por Wim Wenders

Intérpretes: Pina Bausch, Regina Advento, Malou Airaudo, Ruth Amarante, Rainer Behr


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Deseja-se muita vez a repetição das coisas; deseja-se reviver um momento fugaz, voltar a um gesto falhado ou a uma palavra não pronunciada; esforçamo-nos por recuperar os sons que ficaram na garganta, a carícia que não ousámos fazer, o aperto no peito para sempre desaparecido. 


Reyes, batallas, elefantes.
Battaglie, re, elefanti


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E depois a solidão.



Lost in Motion

Realizador: Ben Shirinian; Coreógrafo: Guillaume Côté
Bailarina: Heather Ogden


Música: "Avalanche" interpretado por Leonard Cohen 



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As citações em itálico são ínfimos excertos do livro que me encantou Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes de Mathias Énard de que já aqui falei no outro dia.

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Permitam-me, por favor: não queiram, depois da beleza dos movimentos em liberdade e das palavras dolentes como a suave música das cítaras, entrar na toca do láparo anão aqui abaixo. Não é coisa bonita de se ver.

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E, por agora, fico-me por aqui.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta feira.


terça-feira, abril 08, 2014

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes


No post abaixo já falei das duas duplas mais famosas de momento na televisão portuguesa: José Sócrates & José Rodrigues dos Santos e Marcelo Rebelo de Sousa & Judite de Sousa, tendo eu, até, sugerido a troca de casais, a ver no que dava. Uma cena de swing, não sei se estão a ver. Num comentário a esse post podereis até ver algumas outras duplas de sucesso garantido que o Leitor P. Rufino aqui nos deixou à laia de sugestão.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra. Muito outra.


Música para a Felicidade e contra a Febre e a Depressão



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Como são crianças, fala-lhes de batalhas 
e de reis, de cavalos, de diabos, de elefantes
 e de anjos, mas não deixes de lhes falar de 
amor e de coisas semelhantes.



A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degredados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pela sombra e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escondida nos recessos da alma.

Queres juntar-te a nós.

O teu medo e a confusão em que estás lançam-te nos nossos braços, procuras aninhar-te neles, mas o teu corpo duro continua agarrado às suas certezas, afasta o desejo, recusa abandonar-se.


O teu braço é duro. O teu corpo é duro. A tua alma é dura. é claro que não estás a dormir. Sei que estavas à minha espera. Há pouco reparei nos teus olhares. sabias que eu ia chegar. Tudo acaba sempre por acontecer. Desejaste a minha presença, e aqui estou. Muitos, deitados no escuro, desejariam ter-me junto deles; tu viras-me as costas. Sinto os teus músculos tensos, os teus músculos de bárbaro ou de guerreiro. Só com o manejo da espada se conseguem braços tão fortes. Da espada ou da foice. No entanto, não te imagino camponês, nem soldado, senão não estarias aqui. És áspero de mais para seres poeta como o teu amigo turco. Serás então marinheiro, capitão, mercador? Não sei. Não me olhavas como coisa que se pode comprar ou possuir pelas armas.

Gostei do teu modo de me observar enquanto cantava. A precisão dos teus olhos, a delicadeza da sua cobiça. E agora, quê? Tens medo, estrangeiro? Eu é que deveria ter medo. Não passo de uma voz na escuridão, irei desaparecer com a alvorada. 

Deslizarei para fora deste quarto quando se puder distinguir uma linha preta de uma linha branca e os muçulmanos chamarem para a oração.

Vão pagar-me, não há nada de que te possas acusar. Deixa-te levar pelo prazer. Estás a tremer. Não me desejas? Então ouve. 

Era uma vez num país distante... Não, não te vou contar uma história. Já não é tempo de histórias. A época dos contos terminou. Os reis são uns selvagens que matam os cavalos que montam; há muito que deixaram de oferecer elefantes às suas princesas.

Os astros desviam-se de nós; mergulham-nos na penumbra. Vai-se a luz para o outro lado da terra, quem sabe quando voltará. Não te conheço, estrangeiro. Nada sabes de mim, apenas temos a noite em comum. Partilhamos este momento, sem o quereremos. Apesar dos golpes que em nós vibrámos, apesar das coisas destruídas, estou encostada a ti no escuro. Não vou entreter-te com as minhas histórias até ao alvorecer. Não irei falar-te de génios bons, nem de vampiros aterradores, nem de viagens em ilhas perigosas. Não resistas. Esquece o teu medo, aproveita eu ser, como tu, um pedaço de carne que não pertence a ninguém a não ser a Deus. Toma um pouco da minha beleza, do perfume da minha pele. Oferecem-to. Não será nem uma traição, nem uma jura; nem uma derrota, nem uma vitória.

Apenas duas mãos agarradas, como lábios que se apertam sem nunca se unir.


A tua embriaguez é tão doce que me estonteia. Respiras suavemente. Estás vivo. Gostaria de passar para o teu lado do mundo, de ver nos teus sonhos. Será que sonhas com um amor branco, frágil, distante, tão longe? Com uma infância, com um palácio perdido? Sei que lá não tenho lugar. que nenhum de nós lá terá lugar. Estás fechado como uma concha. E, no entanto, fácil te seria abrires-te, uma minúscula fenda por onde a vida se precipitaria. Adivinho o teu destino. Permanecerás na luz, serás celebrado, serás rico. O teu nome imenso como uma fortaleza irá esconder-nos da tua sombra. Irá esquecer-se o que aqui viste. esses instantes irão desaparecer. Até tu esquecerás a minha voz, o corpo que desejaste, os teus tremores, as tuas hesitações. 

Como eu gostaria de que algo conservasses disso. Que levasses contigo uma parte de mim. Que se transmitisse o meu país distante. Não uma vaga recordação, uma imagem, mas a energia de uma estrela, a sua vibração no escuro. Uma verdade. Sei que os homens são crianças que expulsam o seu desespero com a cólera, e o seu medo para o amor; ao vazio respondem construindo castelos e templos. Agarram-se a historietas, levam-nas à sua frente como estandartes; cada um faz sua uma história para se ligar à multidão que a partilha. São conquistados quando se lhes fala de batalhas, de reis, de elefantes e de seres maravilhosos; quando se lhes narra a felicidade que haverá para além da morte, a luz viva que presidiu ao seu nascimento, os anjos que giram à sua volta, os demónios que os ameaçam, e o amor, o amor, essa promessa de olvido e de saciedade. Fala-lhes de tudo isso e hão de amar-te; far-te-ão igual a um deus. Mas, pois que estás aqui encostado a mim, tu saberás, tu, um franco malcheiroso que o acaso trouxe para te pôr ao alcance das minhas mãos, saberás que tudo isso não passa de um véu perfumado que esconde a eterna dor da noite.


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O texto é um conjunto de excertos do belíssimo livro Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes de Mathias Énard (que nasceu em 1972, estudou persa e árabe, viveu largos períodos no Médio Oriente e que é professor de árabe na Universidade de Barcelona, cidade onde vive) e que e foi traduzido por Pedro Tamen para a D. Quixote. 


Este livro ganhou o Prémio Goncourt des Lycéens, 2010, e o Prémio do Livro em Poitou-Charentes, 2011. Fala da estadia de Miguel Ângelo (Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni) na Turquia, para idealizar a ponte de Constantinopla. E não vou dizer mais nada a não ser que o livro é maravilhosamente diferente das tretas que por aí abundam.

As imagens usadas para ilustrar o texto mostram partes da obra de Michelangelo (Pietà, David, os nus da tecto da Capela Sistina, a Sibilla Delfica).

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A música é, segundo leio no texto de apresentação no youtube: 


  • Turkish Music therapy / Hüseyni Sema: for Happiness and against fever by Cantemir *1673
  • Ottoman Turkish Healing/Sufi Music - Segah Peşrev - Osman Bey *1816 - against depressive disorder
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E porque a noite já vai longa despeço-me já e só espero que isto não esteja cheio de gralhas, seria uma mácula imperdoável no texto. 

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

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