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segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Elegante demais para viver




(...)

Nestas páginas vemos bem, como uma sombra clara, a figura desse rapaz elegante demais para viver.

Eu vi-o pela primeia vez, num sofá de hotel, em França, penso que foi. Tinha um ar infantil e doce de quem espera protecção. O cachecol branco acentuava a requintada pose sem ser pedante. 

Vinha de casas grandes, avós ríspidos e ricos, férias no parque, qualquer coisa assim. Era tão bonito e apaixonado que se via logo que nada daquilo ia ter qualquer arranjo com a realidade.

Para mais, faza poesia.

O espelho que o acompanhava sempre era como o caixão que a Sara Bernardt levava para toda a parte. Servia-lhe de moldura para a morte.

Há pessoas que contratam um suicídio logo que nascem. Há um prazo para comparecerem, seja pelo efeito duma doença, ou dum desastre. Não pensam sequer em faltar, dar desculpas, atrasar o relógio. Vê-se-lhes nos olhos que obedecem a um prognóstico perigoso, o prognóstico da infância perdida.

Basta ler os relatos de Al Berto, tão bem acentuado na biografia-tese feita por Golgona Anghel, para ver que a pele dele ficou em partículas arrancadas pelos espinhos das flores daquele jardim da avó inglesa. O que restou foi um corpo em carne viva que teve que suportar o crescimento e a idade adulta. Mas trouxe com ele as brutais alegrias da criança, as curiosidades obsessivas que o fazem seguir passo a passo o vulto de Genet, de quem ele esperava revelações obscuras, febres de desejos obscuros, práticas de um sexo alvoroçado e sedento. 

Essa infância persegue Al Berto, enrola-se-lhe nas pernas como um cão que corre doido de prazer. Ele não pode viver como um homem; não tem lugar no mundo, nem carreira, nem amor para com nnada; é um especto de si próprio, um espelho sem reflexo nenhum. É um Dorian Gray por dentro.

Eu própria fico aflita de o ver tão feliz chegar ao jardim inglês. A felicidade é uma coisa que começa mal; não pode ser servida em quantidades tão grandiosas, ter os perfumes das rosas e dos lilases, o sol nos olhos, nas tardes frutuosas de segredos como Al Berto viveu. Aí está tudo; depois é o caminho ligeiro para a morte.

(...)

Cativante e errante num mundo sujeito a outras versões da felicidade que lhe não serviam e que ele ignorou.


[Excerto do Prefácio de Agustina Bessa-Luís ao livro 'Eis-me acordado muito tempo depois de mim', uma biografia de Al Berto, de Golgona Anghel]

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eis-me acordado
com o pouco que me sobejou da juventude nas mãos
estas fotografias onde cruzei os dias
sem me deter
e por detrás de cada máscara desperta
a morte de quem partiu e se mantém vivo



[De Al Berto, O Medo]






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[Fotografias feitas este domingo in heaven]

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quarta-feira, janeiro 25, 2012

Moralismos numa hora destas? E outro plano de resgate para Portugal? ... O ano está a começar bem, está... Valha-nos a poesia de Golgona Anghel e a fotografia de Jeanloup Sieff


Andei na catequese até aos 9 anos.

Fiz a primeira comunhão quando devia ter uns 6 anos, aperaltada com um vestidinho curto, rodado, de renda branca e devia ir toda enfeitada de florzinhas (ou, então, era a capela que estava toda enfeitada de florzinhas e cheirava a rosinhas e a velas derretidas e a soalho encerado e eu adorava aquele cheiro).


Depois continuei na catequese até à comunhão solene à qual compareci vestida de freira, uma veste singela de um tecido espesso branco sujo, um cordão à cintura, um véu do mesmo tecido cobrindo o cabelo comprido. Vejo-me numa fotografia tirada por um fotógrafo profissional a olhar para o alto, de lado, aparentemente compenetrada. Mas lembro-me dessa sessão, de como me senti parvinha, a trocar de roupa para a sessão, o fotógrafo a querer que eu me empertigasse, a ajeitar-me pelos ombros para ficar a três quartos, a rodar-me a cabeça, a levantar-me o queixo (e tinha a mão fria, ele), e a minha mãe a observar, a querer que eu ficasse bem.

Enfim, momentos incompreensíveis da nossa existência.

De facto, nunca percebi nada daquela cena. Porque é que para a primeira comunhão ia radiosa, rendinhas brancas, vestidinho curto e para a outra já fui naqueles preparos, armada em ascética freira?

Mas a questão nem é essa, a questão é que nunca me identifiquei com o que lá aprendia. Era pequena e tudo aquilo me parecia forçado, muito drama para ser ensinado a crianças pequenas, muita culpa, muita punição. Já uma vez aqui falei nisso. Todas as sextas feiras íamos à capela (ou seria só em alturas especiais?) e tínhamos que nos confessar. E eu lembro-me de ficar sentada no banco cá atrás a puxar pela cabeça e a ver o que é que, daquilo que eu tinha feito, poderia ser considerado pecado – e achava que tudo era uma coisa pouco natural, sem lógica nenhuma, e depois, como desde pequena que tendo para a criatividade, chateava-me ter que ser repetitiva e, se na semana anterior confessava que tinha feito alguma maldade, na seguinte já me sentia compelida a descobrir algum pecado de natureza diferente. Depois, se tinha aprendido os pecados capitais, sentia-me ridícula por ir maçar o padre com minudências insignificantes em vez de aparecer a confessar coisa que se visse. E, então, ali ficava a dar a vez aos outros, contrariadíssima, a ver se, entretanto, me ocorria alguma coisa de que me sentisse culpada. 

Felizmente sou uma criatura destemperada e esse sentimento de culpa não deixou marcas dentro de mim.

Se tenho dúvidas, sopeso, analiso e aconselho-me antes de agir; se a minha consciência aprova, faço; se a consciência não aprova, não faço – é simples. Se verifico que errei, corrijo, se for caso disso, peço desculpa ao eventual lesado. Não pauto a minha actuação por preceitos radicados na culpa ou na potencial culpa ou no receio do julgamento por parte de terceiros (mesmo que os terceiros sejam Jesus Cristo e a Igreja católica).

Mas encontro sentimentos de culpa a toda a hora nas pessoas mais atiladas, provavelmente naqueles a quem a catequese produziu efeito.

Penso que grande parte do que se está a passar a nível das medidas para ultrapassar a crise radica aí. É como que um package punitivo. 

Quem fez dívida para além da conta tem que amargar de todas as maneiras possíveis e imaginárias: mais impostos, coisas mais caras, menos segurança, ameaças, medos, ou isto ou o apocalipse, arder no fogo eterno, e tem que rezar cem pais nossos e duzentas ave marias, ou seja, pagar mais juros, muito mais juros, e mais comissões à troika, e mais os ordenados de três mil assessores do governo e mais trezentas chibatadas todos os dias (tantas quantas as vezes que somos fustigadas com as aparições da Merkel ou, por cá, do Relvas, do Passos, do Gaspar, do pequeno Álvaro). Um kit punitivo, portanto. 


E as pessoas, coitadas, acríticas, aceitam arrependidas, esperam que após tamanho sofrimento venha o perdão.

Pois eu acho tudo isso uma carnavalada sem sentido. Mas uma carnavalada perigosa - e aí a coisa deixa de ter graça.

Quem pecou não foram os que estão a ser agora tão duramente penalizados. Quem pecou foram os especuladores financeiros, os políticos fracos e incompetentes que ao longo de anos e anos a fio não souberam governar os países, quem pecou foram os gananciosos que usufruíram de lucros fáceis e especulativos, tantas vezes criminosos. Quem pecou foram muitos dos que agora erguem bandeiras a favor dos cortes nos ordenados, nos subsídios, a favor da austeridade, da necessidade de despedir e penalizar os trabalhadores. E se muitos de nós pecámos foi por sermos tão submissos, aceitando ser governados e manipulados por tão fraca gente.

No dia em que a imprensa estrangeira refere que Portugal pode ter que recorrer a novo programa de ajuda, numa altura em que os juros alcançados atingem valores incomportáveis, numa altura em que o serviço da dívida sorve recursos que deveriam ser canalizados para a economia, num dia em que o FMI censura a forma como o Governo está a conduzir este processo mascarando o défice com medidas extraordinárias e pontuais e não efectuando medidas de fundo, num dia em que várias vozes se levantam no sentido de não se insistir numa austeridade que estrangula de morte a economia, transcrevo de um artigo de antes de ontem no Expresso: 

"Christine Lagarde, num discurso no Conselho Alemão de Relações Externas em Berlim, criticou esta segunda-feira 'uma tendência preocupante em diversos meios - de verem a política orçamental como um jogo de moralismo entre liberalidade e responsabilidade'.

Como conclusão, a directora-geral do FMI repete o seu conselho: 'medidas credíveis que impliquem e ancorem poupanças no médio prazo ajudarão a criar espaço para acomodação de crescimento hoje (sublinhado de Lagarde) - permitindo um ritmo mais lento da consolidação'.

Lagarde, num discurso que abordou extensivamente a situação na zona euro, considerada o 'epicentro' dos problemas, bem como o 'resto do mundo', salientou que estava nas mãos dos políticos evitar 'um momento do tipo dos anos 1930'. 'O que temos todos de compreender é que este é um momento de definição. Não se trata de salvar este país ou região. Trata-se de salvar o mundo de uma espiral económica descendente', referiu. 'Podemos evitar um tal cenário. Digo-o por uma razão simples: sabemos o que tem de ser feito', sublinhou ainda. Terminou citando o poeta alemão Goethe: 'Não basta saber, tem de se aplicar. Não basta querer, tem de se fazer'.

Tomara que ainda se vá a tempo.

[Face à gravidade do que está em jogo, não me apetece tecer comentários sobre o que para aí vai à volta dos dislates e da falta de jeito de Cavaco Silva. Não foi ele igual a si próprio? Claro que foi. Sempre foi assim. E quanto ao afastamento do jornalista Pedro Rosa Mendes, ao que por aí corre, a mando do inefável Relvas? Qual o espanto? Não é Relvas igual a si próprio? Quem não votou neles, não se espanta. Quem votou, porque se espanta?]

Adiante, meus amigos.

por Jeanloup Sieff

                                           (...)

                                           Quantas madrugadas,
                                           quantos passos,
                                           quantas vidas,
                                           quantos medos serão ainda precisos
                                           para que estas ruínas acabem de se despedir?


                                          (excerto de poema de Golgona Anghel in Criatura)

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Uma boa quarta-feira, meus Caros! 

E nada de desanimar que isto um dia destes vira ou este não fosse o ano do dragão (e consta que, por cá, o dragão até tem três gargantas: deve ser dos bons!)