Quando acontece um qualquer crime, os polícias e os jornalistas vão interrogar vizinhos e conhecidos. E, salvo raras excepções, verifica-se que foram todos colhidos de surpresa. O suspeito é quase sempre uma pessoa reservada, tida como boa pessoa, nunca se soube de problemas, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, por vezes até acontece que ia tomar um café e cumprimentava toda a gente, alguém dirá que era amigo de seu amigo.
Alguém lembrará que um dia em que chovia e ventava com força, o viram a ajudar a Dona Adelina que, coitada, já velhinha, quase ia levada pelos ventos, a chuva batendo-lhe em todas as direcções. E, ao ouvir lembrar esse gesto delicado, outro se lembrará que, noutra vez em que ardeu um bocado de mato nas traseiras do Vizinho Manuel Coelho, ele foi dos primeiros a aparecer com um balde e uma pá para ajudar no que fosse preciso. Prestável mas acanhado, concluirão.
Mais tarde as televisões mostrá-lo-ão a sair do carro da polícia à entrada no tribunal. Irá de cara baixa, tentando encobrir-se do olhar dos outros, talvez vá envergonhado, talvez arrependido. Ou talvez apenas não queira sentir a rejeição que os seus actos provocaram.
Geralmente é assim.
Neste caso não sei pois, do que averiguei, pouco se sabe. Mas não me admiraria.
O nome não foi divulgado. Sabe-se apenas que tem 62 anos.
Vivia sozinho em Biar, um lugar no sopé das montanhas de Alicante. Pouco mais se sabia dele. Era normal. Reservado.
Teve que ser a equipa contratada pelos novos donos para renovar a casa a remover o lixo. E foi então que descobriram o que continham os sacos: cerca de vinte mil cartas, muitas ainda seladas, incluindo facturas, documentos oficiais.
Ao que parece, o carteiro acidental ia aos Correios buscar a correspondência e, em vez de distribui-la pelos destinatários, guardava-a em casa. Durante um ano aconteceu isto até que, por irregularidades mal explicadas, foi demitido.
Ainda pouco mais se sabe. Será que lia as cartas? Será que construía histórias a partir do que lia? Será que as palavras dos outros lhe faziam companhia? Ou será que não sabia ler e não sabia a quem deveria entregar as cartas?
Um dia saber-se-á. Para já está preso.
Talvez um dia as cartas venham a chegar aos seus destinatários. Ou talvez já não façam qualquer sentido, talvez a vida das pessoas tenha seguido por outro caminho.
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Já agora, um outro carteiro que sempre me enternece: o Carteiro de Pablo Neruda
Fotografias de Nick Knight na companhia de La Petite Fille De La Mer (Vangelis)
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Desejo-vos um bom dia
Poesia. Beleza. Tolerância. Generosidade. Afecto. Paz.