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sexta-feira, julho 06, 2018

O meu umbigo



Dantes enfaixava-se a barriga dos recém-nascidos para que o umbigo ficasse bonito. Salvo erro, durante um mês. A minha mãe sempre se gabou da obra de arte que fez do meu umbigo. E, se via criança desumbigada, logo ela dizia com ar de censura: 'Não querem saber, deixam as crianças a chorar, a fazer força, e sem terem o umbigo apertado... Depois fica aquele lindo serviço. Coisa mais feia'. Censurava as mães que não tinham tido aquele brio de que ela tanto se orgulhava. E tanto empenho ele pôs nisso que, quando nasceram os meus filhos, claro que lhe segui o ensinamento. Por acaso, têm ambos bonitos umbigos e nunca me passou pela cabeça não o fazer até porque nunca gostei de ver umbigos de fora, bolinhas de carne a rebentarem da barriga, e muito menos quereria que eles, mais tarde, viessem a acusar-me de não me ter esmerado. Não senhor: perfeitinhos. Mas, por notória influência da minha mãe, tal a minha preocupação que, mal os miúdos choravam mais, como quem não quer a coisa, eu ia depois dar uma espreitada ao umbigo a ver se a coisa não se tinha estragado.

Foi, portanto, com espanto que, há uns anos, constatei que isso era coisa que tinha passado de moda. As crianças, mal lhes cai a tripa murcha, podem logo andar de buraquinho ao léu. Dá ideia que aquilo do enfaixamento não tem nada a ver com a perfeição do produto final. Melhor assim. Poupa-se o incómodo das crianças e o trabalho das mães.

Há uns anos resolvi adoptar um piercing numa orelha. Fui à ourivesaria e pimbas: com um revólver equipado com uma pequena bala dourada, fui alvejada no devido sítio e saí de lá logo devidamente enfeitada. Uso sempre brincos mas, num dos lados, há um outro, mais acima, geralmente uma estrelinha, uma mini-mini bolinha dourada ou um little brilhantezinho. Houve alturas em que pensei fazer mais um furinho desse lado para ficar com três. Mas, como tenho orelhinhas pequeninas, não há muito espaço e ficaria muito à ponta. Portanto, nunca cheguei a fazer. Mas uma coisa é mais do que certa: se se pudesse fazer furos em casa já há muito tempo que tinha feito um outro, no umbigo. Mas assim não faço. Não ia para a ourivesaria pôr-me de barriga ao léu com um funcionário a pistolar-me a barriga. Posso não ser lá muito boa da cabeça mas barraquinhas dessas ainda não faço.

Mas gosto de ver um piercing no umbigo. Haveria de arranjar uma coisinha linda. Talvez uma estrelinha pequenina de brilhantes. Outra vez, uma luazinha em ouro branco. Ia trocando.

As jovens mais alternativas fazem-no, por vezes, nos mamilos. Eu aí nem pensar. E nem é só pelo que deve doer, é mesmo porque acho que é poluição estética num espaço que se quer límpido, impoluto. Agora no umbigo, acho que é tema que ainda tenho que resolver.


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Já aqui esteve mas agora está a apetecer-me vê-los outra vez. Acho uma graça.
E aquela diluição final em branco, então...

E lembrei-me disto porque, cá para mim, a Trish Sie tem um piercing no umbigo. Só pode.

[Ao som dos OK Go - Skyscrapers]


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As duas fotomontagens com umbigo são da autoria de Mónica Carvalho que é filha de portugueses, cresceu na Suiça e vive em Berlim.

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PS: Às vezes digo embigo mas aqui, não fossem vocês pensarem que era erro ortográfico, coibi-me.

sábado, dezembro 05, 2015

E irei pelos teus olhos, até o mundo voltar a ter princípio





Fecho os olhos e, cega, deixo-os correrem por campos azuis, mares brancos, grutas que entram pelo fundo do mar adentro, e lá dentro há nuvens, brumas, pássaros de mil cores, sóis serenos, pedras preciosas, signos misteriosos e escadas, muitas escadas, e espelhos e lagos de águas flutuantes onde pousam mãos dóceis, flores eternas, transparentes espumas, sorrisos. Nas paredes dos céus que cobrem as grutas há palavras ditas por corações apaixonados ou escritas por outros cegos que desenharam também juras de amor eterno, beijos cintilantes, abraços apertados e ternos. E eu, de olhos fechados, cega, caminho por estes labirintos que se desenrolam neste espaço infinito que os meus olhos, mesmo se abertos, jamais alcançariam.

Se eu desço essas escadas chego a uma varanda de onde parte outro lanço de escadas. Nessa varanda, que me parece suspensa, há árvores muito verdes, flores, sombras afáveis. Quando aí chego, vem na minha direcção uma pessoa que não sou eu. Sorri como eu sorrio e no seu rosto eu vejo a minha surpresa. O seu olhar é o meu e eu procuro o espelho que reflecte assim a minha alma. Não sei do espelho e não sei de onde veio essa pessoa. Depois descemos juntos a escada e eu não sei se sou eu, cega, que o invento, se foi ele que me inventou a mim. Descemos, pois, envoltos em sorrisos, nós, anjos improváveis que pousaram um dia numa varanda solta no ar, cheia de árvores, flores, asas, brisas suaves como carícias.

Quando abro os olhos, já não o vejo, apenas vejo as suas palavras. Desapareceu mas deixou em mim o seu perfume, a sua voz gentil e as suas palavras que desde então me habitam, que se aninham no meu peito, que me abraçam muito, muito. Procuro os espelhos que me reflectem e apenas estou eu, espreito atrás do espelho e apenas vejo a ausência de luz, encosto o ouvido às flores e a respiração que ouço é a que vem da terra, não do coração daquele que um dia nasceu da minha imaginação numa varanda suspensa cheia de sombras e cores perfumadas.

Conto os dias, subo as escadas do tempo, procuro os esconderijos misteriosos onde as palavras se escondem. Fecho os olhos. Descalço-me, percorro os caminhos de terra, levanto as pedras, sinto o musgo, deito-me e cheiro o húmus e os bichos silenciosos, olho a lua, aspiro o vento. Passo as mãos pelos troncos das árvores, levanto as cascas, espreito as palavras que aparecem escritas no ar, saudades, ausências, amores perdidos, desencontros. Repito: saudades, ausências, amores perdidos, desencontros. E as minhas palavras cruzam-se no ar com outras iguais, espelhos infinitos, ecos.

Não sei de nada. Inocente como se tivesse nascido hoje, pronta para descobrir o mundo e as palavras que importam, pronta para ver pela primeira vez, pronta para aprender os afectos, os olhares límpidos, a luz que emana dos seres que vêm de outros tempos para nos trazerem ao colo. Inocente como uma cega que vê pela primeira vez, como quem não sabe o sentido das palavras, como quem navega no sangue de quem nos habita. Eu dentro do outro que está dentro de mim e eu dele e ele de mim, um espelho dentro do meu corpo e eu espelho dentro dele e as mãos unidas e os lábios soletrando as mesmas palavras, os olhos olhando os olhos que não se vêem, o olhar reflectindo o olhar, o mar, o mar, a mar.


E quando,
de novo, me encerras,
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.

A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.
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Vem, junta-te a mim, toma-me nos braços, desce comigo as ruas coloridas dos meus sonhos.

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As imagens animadas são da autoria do artista cego George Redhawk.

Lá em cima Benjamin Clementine interpreta The People And I 

O excerto do poema pertence a 'Sazonais eternidades'. O título deste post pertence a 'Lembrança'. Ambos os poemas fazem parte de 'Tradutor de Chuvas' de Mia Couto.

Por fim, ao som dos OK Go interpretando Skyscrapers, Moti Buchboot & Trish Sie percorrem as ruas coloridas dançando, corpo a corpo.
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É tarde. Fui ao cinema. Não vi televisão, não li notícias. Não sei se o mundo ainda está no mesmo sítio. Por isso, hoje fico-me por aqui e relevem se o que escrevi não fizer sentido. Há dias assim, de injustificação.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado, muito feliz.

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