quarta-feira, outubro 31, 2012

Lídia, a mulher que era tão triste, confessa o seu segredo e, um dia depois, toma uma decisão





*

Foram jantar com Sara que os levou a um restaurante pequeno, simpático, a bons preços. Sara, muito animada, falou das aulas, do ambiente na universidade, da cidade, dos amigos e toda ela ria, gesticulava, os olhos brilhantes de juventude e esperança. Lídia ouvia-a, encantada. O contacto com a juventude, que bom, que arejamento de cabeça, e que sorte esta, de, enquanto estudante, poder estar num país estrangeiro, à solta, à descoberta. Disse-lhe isso mesmo, Não sei se sabe que tem muita sorte em poder estar aqui, aproveite muito bem, é muito bom. Eu nunca pude sair de casa, sempre constrangida, sempre vigiada, e, às tantas, já era eu própria cheia de medos. A minha vida teria sido toda tão diferente se eu tivesse podido ter a sorte que a Sara está a ter.  Sara sorriu e fez uma festa na mão de Paulo, Eu sei, estou muito agradecida aqui ao paizão, foi ele que incentivou, que eu nem queria muito, foi ele que andou atrás de mim e eu sei o que isso lhe custa. Depois carinhosamente beijou a mão do pai. Paulo fez-lhe uma festa na cabeça.

Lídia sentia-se envolvida por esta ternura tão física, tão verbalizada. Era algo a que nunca estivera habituada, sempre tanta secura, tanta austeridade, sempre um tom de reprovação no ar.  

Depois de jantar, apareceram uns quantos amigos de Sara que a foram buscar no meio da maior paródia e ela lá se foi, brincando, Está aqui uma chave, Lídia, pode entrar à hora que quiser e, se não quiser, também pode dormir fora… e piscou o olho ao pai.

Quando saíram, Lídia respirou fundo, pousou as mãos em cima da mesa, e, lentamente, pesadamente, começou a falar. Qualquer coisa, eram as vizinhas, tu não sabes mas elas estão sempre à espreita, era olha lá o que vai dizer a tua tia, ou era a tua avó se sabe, vê lá o que vão dizer. Cada rapaz para que eu olhava tinha defeitos, é uma gente que não tem onde cair morta, é uma gente que não presta, ele vê-se mesmo que é um valdevinos, quer-se é aproveitar de ti, era isto, aquilo e o outro. E os anos foram passando. Já lhe contei isto. Mas quero explicar. 




Paulo viu como ela estava transtornada, tentou atalhar, Mas se lhe custa falar disso, para que é isto agora? O que lá vai, lá vai. Vamos mas é falar de coisas mais agradáveis.

Mas Lídia tinha que lhe contar. Sei que estou a ser maçadora, mas quero falar, tenho que lhe contar. E continuou, Se eu falava mais com alguém tinha que ser às escondidas para ela não pôr defeitos. O meu pai era um pouco melhor mas tinha medo dela, não abria a boca para me defender. Por isso, não foi por opção minha. Eu sonhava que me haveria de casar. Fiz enxoval, a minha mãe quis que eu tivesse um bom enxoval, dizia que ninguém podia pôr defeito. Tenho uma arca cheia de lençóis bordados, ponto richelieu, ponto pé de flor, outros com grandes barras de renda, renda fina, linha 20 que é quase como linha, fazia ela e fazia também eu, uma dor de cabeça fazer rendas assim, uma trabalheira, toalhas de mesa de linho com aplicações, jogos de casa de banho, tantas coisas, coisas que já não se usam, coisas que nunca foram usadas, coisas que eu tinha ali preparadas para um dia. Sonhava que me havia de casar, pela igreja, vestida de noiva com véu, um bouquet na mão. Mas nunca calhou, eu também andava sempre agarrada a eles, se queria sair com alguma amiga lá vinha ela, essa já está falada, tem uma linda fama, andas com ela, ficas falada como ela. Se eu a contrariava punha-se doente ou fingia, sei lá, fazia-se de vítima, quase não falava, o meu pai logo de roda dela e a olhar-me com ar de censura. Nem sei bem explicar. Passou um mês e outro e outro e agora tenho quase cinquenta anos e não sei como se passou todo este tempo e eu assim. Comecei a ter vergonha, já lhe contei. Como se tivesse defeito, alguém que nunca ninguém quis.

Falava em voz cada vez mais baixa e as lágrimas caiam-lhe lentamente pelo rosto.

Depois, com muito esforço, concluiu, Ainda sou virgem, Paulo. E baixou os olhos, tanta a vergonha. Não viu, portanto, que Paulo teve um quase imperceptível sobressalto. Mas logo se recompôs, Paulo é um homem habituado a tudo, não se haveria de aguentar com coisa tão inocente? Com ternura, passou as costas da mão pelo rosto de Lídia, limpando as lágrimas. Depois segurou-lhe as mãos, tomou-as entre as suas e beijou-as. Guardou-se para mim, portanto…. E sorriu. Lídia levantou os olhos e tentou perceber o que realmente pensava Paulo. Um homem talvez goste de desvirginar uma jovem mulher. Agora uma quase cinquentona…? Até ela, pondo-se no papel de homem, percebe. E o medo que ela tem, medo, medo da atrapalhação, medo, vergonha - e o constrangimento que isso deve para um homem, lidar com uma mulher entrada a portar-se como uma menina, credo. 

Mas Paulo, se pensava isso, disfarçava muito bem. Mas, então, minha senhora, quando vamos nós tratar disso…?, ar brincalhão.

Lídia sorriu, já mais tranquila. Não sei, Paulo. E não se ria... Tenho medo. Sei que é um absurdo o que vou dizer mas…. acho que ainda não estou pronta… e ela própria sorriu, percebendo o ridículo da hesitação.

Não está pronta mas vai ficar, ora essa. Seria muito incompetente eu se não fosse capaz de tratar do assunto, ora essa, mas Lídia percebeu que ele se estava a esforçar por soar natural, percebeu que Paulo não estava, de facto, muito à vontade com a situação. Sentiu de novo aquela sua velha vergonha, era como se fosse imprestável, produto de refugo, toda a gente conhece o amor e ela não, as colegas falam naturalmente das noites que passam com os namorados, toda a gente conhece o que são os segredos da cama, as viúvas, as casadas, toda a gente tem experiência menos ela, a rejeitada. Contudo Paulo, cavalheiro e gentil, não se atrapalha com imprevistos destes, com quantos imprevistos e situações delicadas está ele mais que habituado a lidar, e diz Mas as coisas só são quando tiverem que ser, não tenho pressa. Quando for, quero que seja porque é da vontade dos dois. E não tenha medo que não é caso disso, mas Lídia sentia que a voz dele tinha perdido um pouco da firmeza habitual.

Algum tempo depois, Lídia disse que queria ir andando, que estava cansada, que ainda queria ligar outra vez a Nita, queria saber como estava a mãe. Paulo levou-a ao apartamento das miúdas. Despediram-se mas era como se fizessem alguma cerimónia.

O dia seguinte amanheceu cedo. Lídia sentia-se mais leve. Ligou para casa. Nita assegurou-lhe que estava tudo bem, que não precisava de estar sempre a ligar, que se divertisse, e acrescentou, Olhe, ainda agora já me fartei de rir com a sua mãe, imagine que disse que tinha passado a noite no truca-truca com o cunhado. Lídia respondeu, Ah sim? Com o cunhado? Sai-se com cada uma... O médico disse-me que é comum estes doentes terem conversas deste tipo. Ao princípio fazia-me impressão... e ainda me faz um bocado. Mas, enfim, a gente vai-se habituando a estes disparates. Lídia combinou que ligaria, de novo, à noite.

Estava mais frio e Sara colocou um gorro na cabeça de Lídia, embrulhou-lhe o pescoço com um lenço às cores, e Lídia, quando se viu ao espelho, quase não reconheceu a mulher jovem bonita que a olhava de frente. Riu.




Sara levou-os ao Vondelpark, um parque muito calmo, lindo, atapetado de dourado, grandes árvores, magníficas árvores.




E a água, sempre a água, e aquela paz.




Sentaram-se um pouco, olhando aquela natureza tão doce. Paulo, disse então:

                                  Quando, Lídia, vier o nosso outono
                                  com o inverno que há nele, reservemos
                                  um pensamento, não para a futura
                                  Primavera, que é de outrem,
                                  nem para o estio, de quem somos mortos,
                                  senão para o que fica do que passa
                                  O amarelo actual que as folhas vivem
                                  e as torna diferentes.

Lídia sorriu, deleitada. Não conhecia. Ainda Ricardo Reis?, perguntou. Paulo sorriu, Sou um pessoano...

Sara soltou uma gargalhada. Boa, paizão! Bom aluno, o meu paizão. E que jeito tem para dizer poesia, quem diria? O senhor agente da autoridade já pode declamar poesia quando for prender os marginais… Boa!

Paulo explicou. Eu gosto muito de poesia, é verdade, e então perguntei a Sara se havia poemas dedicados a alguma Lídia e ela enviou-me estes. Decorei-os para impressionar, confesso… Sim, que um homem faz qualquer coisa para agradar a uma miúda…

Lídia riu-se com a alegria cúmplice daqueles dois.

A seguir, Sara, brincalhona, colocou-se a meio dos dois e deu um braço a cada um. E ali foram os três, na maior alegria.

Depois foram andar de barco pelos canais, Têm que vir, têm mesmo, é lindo, tinha Sara insistido e eles, claro, fizeram-lhe a vontade..




Uma hora a andar por canais estreitos, debaixo de pontes, ao lado de casas que mergulham na água, depois até o porto onde entram os navios que vêm do mar do Norte, depois mesmo junto às belas moradias dos gentlemen, e os cisnes deslizando junto a eles. Tempos felizes, pensava Lídia, tempos tão felizes, meu Deus.




Lídia ouviu a explicação de que quase todas as casas têm um pequeno guindaste no topo porque, como Amesterdão sempre teve um problema de área disponível, as casas de habitação eram todas muito estreitas, pagavam imposto em função da largura e, então, as escadas eram tão estreitas que as mobílias tinham (e têm) que ser içadas pela janela.




Lídia soltava exclamações de admiração, Sara chamava-lhes a atenção, olhem ali, já viram?, olhem, reparem e Lídia pensava que queria que estes dias fossem eternos, que sempre os guardaria no seu coração. E Paulo olhava enternecido as suas duas meninas.

À tarde, Sara disse que tinha que ir fazer uns trabalhos com uns colegas mas que lhes aconselhava o Van Gogh. Paulo e Lídia acharam muito bem e adoraram.




Quando saíram, Lídia queixava-se um pouco dos pés. Paulo disse, Acho que faz bem pôr os pés de molho em água quente. O meu hotel não é nada de jeito mas, se quiser, eu trato-lhe dos pés. Lídia hesitou. Não disse nada e andaram um bocado em silêncio.

Depois, mais à frente, Lídia deu o braço a Paulo, encostou a cabeça no seu ombro e disse, Parece-me bem. Passado um pouco, estavam os dois a entrar no quarto de Paulo.


*

Natalie Merchant interpreta, em cima, Nowhere Man. 

*

Caso ainda vos apeteça continuar, um pouco mais, na minha companhia, é com todo o gosto que vos convido a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras pairam assustadas muito longe da longínqua utopia em que, afinal, vivia e juntam-se à gaivota de que fala Manuel Alegre no Cais das Colunas.  A música é o lamento de uma ninfa, tal como o sonhou Monteverdi.

*

E, por hoje, por aqui, nada mais. Apenas desejar-vos uma bela quarta feira, com muita saúde e boa disposição!


terça-feira, outubro 30, 2012

Lídia, a mulher que era triste e que agora está francamente enamorada, passeia pelas ruas e pelos canais de Amesterdão enquanto pensa que não pode continuar a esconder de Paulo o segredo que tanto a atormenta



*

Mal chegou, Lídia, de coração apertado e ainda com um certo sentimento de culpa, telefonou a Nita. Mas esta tranquilizou-a, Por aqui está tudo bem, tudo na forma do costume, os gatos continuam a entrar pelos buracos, as janelas estão todas escancaradas a deixar entrar a chuva, os homens têm vindo fazer visitas e, de caminho, roubam tudo, já sabe como é, a taralhouquice do costume. Mas tem comido bem, está calma. Por isso, não se preocupe, D. Lídia, aproveite bem, goze a estadia, namore muito. Nós cá tratamos da sua menina, não se preocupe com isso, descanse a cabeça, tire daqui o sentido e esteja descansada, se houver alguma coisa eu ligo, mas não vai haver, vá mas é curtir, dizem que isso aí é uma maravilha, descontraia, não ande preocupada. Lídia sorriu. Era este desprendimento e boa disposição de Nita que tanto a ajudavam.

Sara estava à espera que Lídia acabasse o telefonema para passar à parte prática: instalá-la, Vai dormir aqui, ali é a casa de banho, ali é a cozinha, não se assuste com a desarrumação, isto aqui é a bagunça total, mas é uma bagunça organizada...

Sem nunca antes ter vivido tempos de liberdade e despreocupação, Lídia via-se agora num pequeno apartamento habitado por jovens buliçosas, irreverentes, cheias de vida. Sara cedeu-lhe a cama e passaria a dormir no sofá. Rapidamente tomaram Lídia de assalto, fazendo-lhe perguntas, O que faz?, Onde vive? Vive sozinha? Já cá tinha estado? Quantos anos tem?, e sempre rindo, rodeando-a de alegria e futuro. Para Lídia tudo isto era uma novidade.

Depois de Lídia instalada, Sara pegou nela e de braço dado, como se fossem velhas amigas, foram rua fora, conversando, para se irem encontrar com Paulo. Quando as viu chegarem assim, Paulo desatou a rir-se. 




Na Dam Quare, a praça principal da cidade, passaram pela feira de diversões, parecia uma feira popular, e, no meio daquela música e daquelas luzes feéricas, Lídia teve vontade, mas não o confessou, de ir andar nas cadeiras que balouçavam a muitos metros de altura. 




Talvez quisesse, sem o saber, voltar ao tempo em que era menina para, agora, viver a meninice. ou talvez quisesse voar.

Depois Sara levou-os à Biblioteca nova, onde se maravilharam com aquela arquitectura moderna, com a cultura à disposição de todos os cidadãos, sete dias por semana, doze horas por dia. E depois ao Nemo, o centro de ciência, e toda aquela arquitectura moderna.




Depois, já cá fora, junto à Centraal Station, Sara deu-lhes um mapa, assinalou o local de encontro para jantarem, marcou o ponto em que estavam e riscou a vermelho o percurso que sugeria. E, com ar malicioso, despediu-se, Se precisarem de alguma coisa, liguem-me. Agora deixo-os sozinhos… Portem-se bem…  e afastou-se a dizer-lhes adeus, brincalhona.

Ficaram, então, os dois. Paulo pegou no braço de Lídia e enfiou-o na curva do seu para que ficassem de braço dado. Um casal passeando numa grande cidade. Lídia respirava fundo, como se quisesse absorver aquele ar tão livre, tão novo, como se quisesse reter aqueles doces instantes para sempre no seu coração.

E lá foram. Nunca imaginara uma coisa assim. Tanta gente. Tanta gente alegre. 




Tanta gente de bicicleta, tanto movimento, tanta liberdade, parecia que tinha chegado a outro mundo. 




Paulo ria-se, chamava-lhe a atenção para os prédios, para as pessoas, para as montras, Olhe, repare ali, no tecto, vacas pregadas ao tecto, e riam-se. 




Lídia e Paulo pareciam, pois, duas crianças caídas num outro planeta, um planeta habitado pela diversão e pela alegria.



Depois havia os canais e era como se toda a cidade fosse atravessada por pequenos rios dourados. O outono dourava as árvores e as folhas douradas caíam sobre a água dos canais. 




Lídia sentia um aperto no peito, tanta era a felicidade, tão desconhecida era esta felicidade. Queria falar mas não conseguia, não estava habituada a exprimir a felicidade, quase nem conhecia as adequadas palavras para falar desta suavidade, desta paz que a invadia.

Paulo olhava para ela e sorria, contente de a ver assim, olhos abertos de espanto, rosto rejuvenescido. 

Depois passaram por um mercado de flores, uma rua cheia de tendas brancas vendendo flores. 




Quando as viu, Lídia que tanto gosta de flores, parou, ficou em silêncio e depois Ah…, tantas flores, olhe este colorido, nunca imaginei nada assim, tantas, tantas flores, que bonito, ah se eu pudesse levar os braços cheios de flores.

Paulo olhava as flores e olhava-a a ela, luminosa, colorida, feliz, percorrendo as tendas, curvando-se para ver melhor, passando as mãos ao de leve, cheirando, encantada. Depois comprou para lhe oferecer uma pequena cesta de flores, todo contente pelo cavalheirismo do gesto. E lá foram, rua abaixo, um casal enamorado, cheio de esperança numa vida que se desdobrava em felicidade.

A seguir passaram por um mercado de arte no meio de um jardim. O chão atapetava-se folhas douradas, todo o ambiente era dourado e as peças, Que beleza, que beleza Paulo… bailarinas, barcos, árvores, pinturas. 



Depois Lídia parou, encantada, numa tenda de sedas pintadas, lindas. Écharpes, gravatas, lenços, peças originais, divertidas, macias. Tocou-lhes, Que suavidade, que toque, suspirou. Viu o preço, impossível. Não vivesse ela com os tostões contados, permitir-se-ia uma loucura, mas assim… Paulo não resistiu. Também eu. Eu e quase todos os portugueses, todos vivemos agora com os tostões contados mas olhe, um dia não são dias. Escolha que eu faço questão de lhe oferecer, Lídia.

Lídia corou, Nem pensar, que ideia, é caríssimo, nem pensar, nem era isso que eu queria dizer, era só um sonho, a sério, não quero, oh Paulo, que ideia, não quero mesmo... Mas Paulo insistiu, Faço questão. E Lídia escolheu, tímida, agradecida, um lenço num estampado em tons de azul alfazema e azul violeta. 

Depois, quando se iam afastar, voltou atrás e disse, Vou comprar aquela écharpe do gato, ou do tigre, não sei que bicho é, mas é lindo, vou levar para a minha amiga Mary que está a passar por um momento menos bom, acho que ela vai ficar feliz por ver que me lembrei dela.

Paulo admirou-se, Tem a certeza, Lídia? Mas Lídia atalhou, Tenho; é o que diz, Paulo, um dia não são dias e a minha amiga Mary bem merece, é um gesto, é um mimo, e ela bem precisa de um miminho assim. 

E, quando se afastaram, Lídia e Paulo iam felizes na sua generosidade, no carinho que sentiam um pelo outro e pelos amigos.

Abraçados, um casal enamorado, continuaram o passeio, admirando a beleza dos canais.




Contudo, dentro de si, Lídia transportava um segredo. Desde há algum tempo que esse segredo a atormentava, sentia que teria que falar sobre isso com Paulo mas nunca conseguia, e ia adiando. Ali, passeando em Amesterdão, sentia que o momento de o revelar se estava a aproximar. Estava feliz, claro que estava, mas, lá no fundo, uma sombra de medo e vergonha escurecia os seus pensamentos.

A cada momento ocorria-lhe que tinha que ganhar coragem mas a verdade é que os momentos iam passando e a coragem não aparecia.

O frio começava agora a acentuar-se, o fim de tarde convidava ao aconchego. 




Paulo debruçou-se numa das muitas pontes que atravessam os canais. 




Olhe, um cisne. Lídia espreitou, sorrindo, Tão bonitos. Olhe, olhe, vêm lá outros, são três. Paulo passou-lhe a mão pelos ombros, E olhe os barcos, Lídia, disseram-me que há barcos que são casas




Lídia olhava e eram tantos os motivos de admiração e encantamento, Tão bonito tudo, Paulo, tão bonito, nunca pensei.




E passeavam ainda, enlevados, em silêncio, sorrindo ao de leve, quando Paulo, ao passarem por um banco junto a um dos canais, lhe disse, 

                                 Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
                                 Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
                                 que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                                 (Enlacemos as mãos.)

Sentaram-se e, então, segurou-lhe as mãos. Lídia sorriu. Conhecia muito bem este poema. Nunca imaginara era que Paulo o conhecesse. E então, com a voz trémula de emoção, as lágrimas a aflorarem, continuou ela:

                                  Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
                                  Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Paulo, em voz baixa, grave e quente, acrescentou – e Lídia sentiu as palavras dele como uma suave carícia sobre a sua pele, que se arrepiou:

                                  Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
                                  Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Tocou-lhe, então, devagar, no queixo, virando o rosto de Lídia na sua direcção e, de olhos fechados, beijou-a. Lídia deixou-se beijar. Depois, quando o beijo estava a terminar, com uma inesperada energia, encostou-se mais a Paulo e era como se toda ela se entregasse e beijou-o com paixão, muita paixão. Paulo abraçou-a muito, muito, o desejo muito forte.




Nem por um instante Lídia se lembrou que estava na rua, no meio de uma pequena multidão. Depois pensou que era forçoso, cada vez mais forçoso, confessar o seu segredo, impossível continuar a ocultar aquele facto que a feria de vergonha. Fechou os olhos para ganhar coragem.

Mas Paulo levantou-se, puxou-a pela mão, Vamos, daqui a nada a Sara está à nossa espera, venha.

Lídia suspirou, contar-lhe-ia mais tarde, talvez nessa noite. Quando estava de pé, Paulo disse-lhe ao ouvido,

                                Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
                                pagã triste e com flores no regaço

Lídia sorriu e fez-lhe uma festa no rosto. Depois deu-lhe um beijo na face e rectificou, Já não sou triste, Paulo, agora sou apenas uma pagã. Ele sorriu. E ela ouviu-se a dizer e tinha a certeza que os olhos se toldavam de malícia. 



Uma pagã cheia de vontade de pecar, Paulo…


**

A música é Ancora da autoria e interpretado pelo pianista compositor Ludovico Enaudi. 

A poesia dita por Paulo e por Lídia é parte do poema Vem sentar-te comigo, Lídia de Ricardo Reis. 

As fotografias foram feitas por mim, tal como as anteriores, durante a visita que fiz a semana passada a Amesterdão.

Recordo que, caso queiram ler esta história desde o primeiro dia, poderão procurar nas etiquetas aí do lado direito, lá mais para baixo 'Lídia, a mulher triste'.

*

Caso ainda tenham disposição para continuar na minha companhia, gostava muito de vos ter no Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as minhas palavras choram e o tom é de desalento em volta do poema Allegretto de Vasco Graça Moura. A música é de Monteverdi.

*

E, por hoje, já chega, não é?
Tenham, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.

segunda-feira, outubro 29, 2012

Lídia, a mulher que era triste, recebe um inesperado convite




*

Lídia já tinha regressado ao trabalho e agora a vida parecia-lhe um pouco mais leve. A D. Fátima dissera-lhe que tinha arranjado uma cliente que lhe dava mais jeito, eram mais horas de seguida e Lídia deixou-a ir com algum alívio (financeiro, sobretudo). As senhoras do voluntariado revezavam-se, uma ia à hora de almoço, outra ao fim da tarde, esperando até Lídia chegar a casa. Assim, Lídia não tinha que andar sempre com o credo na boca, temendo atrasar-se. Nita, por seu lado, era uma ajuda muito preciosa a todos os níveis, um suporte. E, depois, claro, havia o Paulo.

A amizade entre ambos estreitava-se de dia para dia, quase todos os dias arranjavam maneira de se ver e, se não era possível, telefonavam-se.  Aos poucos, em grande parte por influência e insistência de Nita, Lídia foi ganhando coragem para ser ela mesma, foi ganhando coragem para superar o medo da opinião alheia, conseguindo, a custo, ir fazendo aquilo que lhe dava gosto.

Perto dos cinquenta anos, Lídia sentia, finalmente, sem medo, o carinho de uma relação que começava a esboçar-se.

Sendo Paulo um homem vivido, seria normal que a relação avançasse sem delongas ou mil cuidados. Mas Paulo era também um homem bom e compreensivo e cedo percebeu que Lídia era uma mulher que toda a vida vivera inibida, constrangida, e que, apenas agora, estava a viver a adolescência venturosa que as mulheres costumam viver antes dos vinte anos. Por isso, com uma ternura quase cerimoniosa, cada passo era dado com muito vagar. E, talvez por isso, Lídia foi aceitando que a relação fizesse o seu caminho e já não conseguia passar sem a voz reconfortante e viril de Paulo, sem o seu olhar compreensivo e doce, e Paulo também não conseguia passar sem a atenção e o cuidado de Lídia, sem a sua visão sensível e curiosa, sem o seu enorme sentido de humanismo.

Até que, um dia, Paulo lhe ligou e a voz era ansiosa, tinha uma coisa para propor, tinha tido uma ideia, estava entusiasmado.




Foi buscá-la ao trabalho e, mal ela entrou no carro, disparou, Como sabe, a minha filha está a fazer o Erasmus em Amsterdão e eu pensei em ir lá vê-la. Tenho dias de férias para gozar, íamos num sábado logo de manhãzinha, vínhamos na terça à noite, eram só dois dias. A minha filha diz que aquilo é outro mundo, que não há preconceitos, que ninguém censura ninguém, e que é um sítio muito bonito. Lídia assustou-se, ir assim sozinha com ele para o estrangeiro? Nem pensar. E ter que andar de avião, só andou uma vez, há muito tempo, uma vez que foi com os pais numa excursão à Madeira, tem medo, nem pensar. Com tantos medos ao mesmo tempo, tão inesperada a proposta, não conseguiu dizer nada. Paulo deve ter percebido porque continuou, e a voz era de quem queria transmitir tranquilidade, Ela está num apartamento com outras estudantes, diz que arranja maneira de lá ajeitar um sofá para si e eu arranjo um hotel em conta lá perto. O que diz?

Lídia fechou os olhos, preferia não ser confrontada com propostas destas. Mas, por outro lado, que vontade de ir conhecer o mundo. Paulo disse-lhe, eu gostava muito de ir ver a minha filha e gostava que vocês se conhecessem e gostava muito de ir conhecer aquela cidade, tenho ouvido falar tanto. Mas, para ir, só vou se for consigo. Vamos…, e o tom era quase de súplica.  Já pensou, nós dois a passearmos nos canais? E a Sara diz que depois nos vai mostrar os sítios e nos ensina o caminho para os pontos mais interessantes. Venha Lídia… gostava tanto… Que mal tem? Você tem que dar justificações a alguém?





Lídia pensava agora na mãe. Nunca se separou dela, aquilo já era uma dependência mútua, já não conseguia estar longe dela nem deixar de se preocupar. Não posso, quem é que fica com ela? E se piorar, e eu lá tão longe?

Paulo respondeu-lhe, Calma. Primeiro tem que resolver se quer ir ou não. Se não quiser, nem precisa de se preocupar com a sua mãe; se quiser ir, então arranjamos uma solução. Entre a Nita, as senhoras do voluntariado e, se calhar, até a D. Fátima, alguma solução se há-de arranjar. 

E arranjaram. Quase como se estivesse a agir debaixo de hipnose, quase como se se tivesse forçado a deixar de pensar, quase como se nem fosse ela, pela primeira vez na vida Lídia deixou-se levar pela sua vontade própria.

Foi Sara, a filha de Paulo, quem lhes arranjou voos muito baratos numa companhia low cost, foi  Sara quem escolheu um hotelzinho barato para o pai, foi Sara que enviou um mail com alguns pontos de interesse e uma proposta de roteiro para que eles pudessem ver na internet de que se tratava e decidir se queriam fazer aquelas ou outras visitas.

Perto do dia da partida um medo, daqueles medos antigos, que a deixavam incapacitada, quase tomou conta de Lídia – medo que a mãe piorasse, medo que alguma das mulheres não fosse ver a mãe nos horários, que não lhe desse a medicação, medo de andar de avião, medo de que se perdessem, medo de que o fraco inglês não bastasse para se entenderem por lá quando andassem sozinhos e, sobretudo, muito, muito medo da intimidade que se poderia vir a proporcionar. Até agora, a esse nível, ainda não tinham passado de beijos, de estar de mão dada, uma ou outra carícia, nada de muito mais que isso – e, mesmo assim, sempre que isso acontecia, ela ficava inibida, quase sem acção, o coração num sobressalto que quase a sufocava.

Mas Nita e Paulo não a deixavam vacilar. Sempre que a sentiam hesitar mudavam logo a conversa para a roupa que ela devia levar, para a mala que devia usar, para que não se esquecesse de levar isto, aquilo e o outro.

E, assim, no dia combinado, depois de uma noite em claro, tamanha era a ansiedade e a excitação, antes das cinco da manhã já Paulo estava num táxi à espera à sua porta. Lídia reparou como ele estava animado, feliz mesmo, bonito, rejuvenescido.




A caminho do aeroporto, depois no aeroporto surpreendentemente cheio de gente àquela hora, depois a entrar para o avião já com Paulo a dar-lhe a mão, carinhoso - Está tão bonita hoje, mais ainda que nos outros dias, fica-lhe bem o baton, e está com os brincos que lhe ofereci, está tão linda, Lídia, tão linda... - era como se Lídia vivesse o espírito adolescente das excursões de finalistas, aquele frenesim nervoso e expectante das viagens em que tudo está por descobrir, as paisagens, as sensações, tudo.

No avião, Lídia sentiu as mãos geladas e húmidas, era o seu velho medo. Mas Paulo estava tranquilo e essa tranquilidade sossegou-a.




Durante a viagem, Lídia tentava imaginar como seria Sara, receava que a jovem não gostasse dela, receava que a achasse antiquada, triste, mas não comentou sobre isto com Paulo. Ele estava tão entusiasmado com a perspectiva de rever a filha, tão entusiasmado, tão feliz que Lídia quase sorria com a perspectiva de os ver juntos, de pensar que, dentro em pouco, andariam os três a passear numa cidade estrangeira, quase como se fossem uma família.

À chegada, Sara esperava-os. Era uma jovem alta, moderna, bonita. Tinha traços do pai. Paulo estreitou-a nos braços, beijou-a com carinho e ela retribuíu. Via-se que eram bastante amigos. Depois Paulo apresentou-as e Lídia sentiu um sentimento de proximidade em relação à jovem. Quando Sara a beijou, Lídia desconheceu-se ao perceber que estava a fazer uma festa carinhosa no braço da miúda.

Bem vindos a Amesterdão! Vão ser quatro dias inesquecíveis, vocês vão ver, exclamou Sara.

Paulo estreitou Lídia entre os braços. Vão ser, sim, disse ele em voz baixa, com ternura, quase como quem faz uma promessa. Lídia deixou-se abraçar; o calor do corpo de Paulo e o sorriso de Sara transmitiam-lhe uma segurança e uma tranquilidade nunca antes sentida.


*

As fotografias retratam Kristin Scott-Thomas e Harrison Ford.  Philippe Jaroussky, interpretando Farinelli, canta Cara Sposa de Handel.

*

Muito gostaria de ter a vossa visita também no meu Ginjal e Lisboa. As minhas palavras hoje acolhem-se da chuva, na companhia das palavras de Eugénio de Andrade, quase molhadas pela chuva. A música é um momento especial no qual convergem a dança, o canto e a música de Monteverdi. Gostaria muito que vissem e ouvissem (mas, se não estiverem para isso, paciência, fico contente na mesma). 

*

E, por hoje, é isto. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda feira. 
E que viva o romance e o amor!


PS: Ainda há Homens na política deste país. José Manuel Rodrigues, do CDS, uma vez mais mostrou que o é e que os tem no sítio. Acabo de o ouvir dizer que é tempo de agir por convicção, dizendo não às conveniências. Demitiu-se do cargo no partido e diz que o deputado da Madeira deverá votar contra o OE 2013 e sujeitar-se às sanções. Até que enfim que vejo alguém a agir de peito feito! 

domingo, outubro 28, 2012

Os animados museus de Amesterdão, o Rijksmuseum, o Stedelijk Museum, o Van Gogh Museum - as raízes e o futuro da arte que floresce nesta cidade tão cheia de vida


E, então, os museus. 

Gosto sempre de museus, sempre gostei, gosto do ambiente, gosto de ver objectos expostos, gosto de deslizar pelas salas e ver as outras pessoas que deslizam como eu, gosto de pensar que aqueles objectos foram feitos por pessoas que sobrevivem e nos sobreviverão através da sua obra.

Amesterdão respira arte. 

Visitei apenas três museus, os quatro dias não deram para mais. Queria também ter visto a Casa de Anne Frank e não consegui. Mas não faz mal, quando gosto muito de um sítio gosto de ficar com motivos para lá voltar. 

O primeiro museu que visitámos foi o Rijksmuseum. O site merece visita pois é muito completo e permite ver as obras expostas ouvindo esclarecimentos interessantes, como é o caso da pintura Nightwatch. 




Por isso, mais do que mostrar-vos as obras que podem ser vistas no site, mostro-vos o ambiente, mostro-vos o ambiente tal como eu o senti.

Este é o museu onde se podem ver obras de Rembrandt, Frans Hals, Vermeer e outros. É um museu, tal como os demais, que transborda de vida. Dá gosto estar num museu assim, é o culto vivido em comunhão, é como estar numa missa.




Quando estou perto de obras que conheço de ver em livros ou em filmes fico ainda mais emocionada. Posso ver a técnica, posso perceber como resolveram os contornos, os volumes, deter-me com tempo a ver como conseguiram a luz e como sugeriram a sombra, como trataram os panejamentos, como desenharam as rugas nas mãos, a luz no olhar.

Vermeer é um dos mestres da luz: a forma como a luz incide nos rostos, nos objectos, nos brincos.




A leiteira que eu pensava ser um quadro de maiores dimensões, é, afinal, um pequeno quadro. Mas a perfeição, a perfeição, a perfeição sem tamanho.

Como sou um pouco míope (e não uso óculos senão para conduzir ou ver cinema) tenho que me aproximar para ver bem. Mas aproximo-me e fico tão próximo que só me apetece passar a mão e sentir a rugosidade da tinta sobre a tela.




Reparo agora que as mulheres e os homens retratados pelos pintores holandeses já pareciam felizes naquela altura, talvez seja, desde sempre, um povo feliz.




Rembrandt, que já antes eu tinha visto noutros lugares, está aqui, neste museu, em casa, e a sua obra, vista assim em conjunto, permite uma atenção mais detalhada às suas mais marcantes características, permite ver o cuidado virtuoso que tinha com cada pequeno pormenor e como, apesar do perfeccionismo, retratava com mestria a expressão de cada personagem e o ambiente em que se inseriam.




Como há sempre muitos grupos a visitarem estes museus e como estes grupos costumam trazer guias, deixo-me por vezes ficar por perto e vou ouvindo as explicações. Reparem na mão, reparem no rosto daquele que espreita, reparem na forma como a luz incide na prega do tecido. E ali estava um cão que foi depois apagado.




E eu vou ficando em estado de quase êxtase. Pode ser um pequeno quadro, pequeno mesmo, mas quanta vida naquelas cores, tanta vida naquela mão que toca o livro, tanta luz e tanto calor no veludo daquela capa.




A mão que acaricia o seio apertado pelo espartilho, o pudor da jovem alheia à multidão que a olha. Quanto sentimento nas expressões daqueles que um dia, há muitos anos, o pintor retratou.


Depois Vincent.

O museu Van Gogh está em reparação até Abril do ano que vem. As obras foram transpostas para o Hermitage Amsterdam. Este é um edifício maravilhoso de grandes janelas de onde se vê a rua, os canais, os barcos que passam nos canais.




Foi nesse belo museu que vi, pois, as pinturas de Vincent van Gogh.

Infelizmente aqui as fotografias são interditas. Fotografei a entrada e uma ou outra à revelia, tendo até sido admoestada numa das vezes.

Por isso, também aqui recomendo a visita do site.




Gosto muito, muito, de Van Gogh. As cores vibrantes, as texturas, a simplificação de motivos, o inesperado das perspectivas, tudo me encanta.




Neste museu existe uma outra exposição, a dos Impressionistas. O impressionismo é um dos movimentos que mais me agrada na pintura (e, portanto, delicio-me sempre no Musée d'Orsay em Paris).

Aqui é interessante ver a pintura de Gauguin depois de ver a de Van Gogh, sabendo-se que Gauguin chegou a viver em casa de Van Gogh e que tantas divergências artísticas e tantas discussões tiveram. E é interessante ver como pintores contemporâneos interpretaram o que os rodeava de formas tão distintas.




Mas sobre Van Gogh, Gauguin, Monet, Cézanne e outros, para meu desgosto, não poderei aqui mostrar mais pois as poucas fotografias que tenho ou estão tortas ou mal focadas.


A seguir um outro museu, fantástico, uma construção moderna, arrojada: o Stedelijk. Uma vez mais sugiro que visitem o site. O museu é enorme e merecem visitas quer as exposições temporárias quer, obviamente, a colecção permanente.




O movimento neste museu é incrível, é um entra e sai que só visto, as salas cheias de gente, uma animação extraordinária.




Se me sinto quase em êxtase perante a pintura de Rembrandt ou Vermeer, é, contudo, com a pintura moderna que mais me identifico. E este museu é todo ele moderno. Não são apenas as obras expostas: é também a forma como estão expostas, é a forma como as obras se agrupam e como as pessoas se relacionam com as obras. 

Logo à entrada, uma pintura imprevista (e pouco favorecedora...) da Rainha Juliana prepara-nos para o que vai aparecer-nos daí para a frente.




Sendo um museu tão moderno, surpreende ver o elevado número de pessoas de mais idade. Esta é mesmo uma gente moderna.




Aqui as pessoas param, conversam demoradamente, olham, fotografam as obras expostas. Vivem a arte.




Se vos mostro agora todas estas fotografias (uma pequena parte das que fiz) é para que vejam que não exagero quando vos digo que, talvez como em nenhum outro lugar, eu vi tantas pessoas a conviverem tão de perto, com tanta naturalidade, com a arte. Novos, velhos, inválidos (vi várias pessoas em cadeiras de rodas), toda a gente vibra e dá mais vida às obras expostas.




Na fotografia acima não se percebe que aquela mancha de branco à volta da boca não é tinta branca mas, sim, uma luz que contorna os lábios. Mas reparem na quantidade de pessoas - e isto num dia útil.



Os bilhetes dos museus são caros, ou 15 ou 17.5 €. Mas, para o nível de vida holandês, isso não pesa. Contudo, o que se destaca é a informalidade e a habituação de toda esta gente ao convívio com a arte. E o convívio com a arte, já ontem o relembrei, transmite a sensação da paixão. E, portanto, é ver toda esta gente tão apaixonada, tão feliz...!




E há Chagall, o pintor do sonho, da magia, do amor romântico, várias maravilhosas e oníricas obras de Marc Chagall.




E há Picasso e o humor da sua pintura e dos títulos das suas obras, como esta mulher com chapéu em forma de peixe.




E há os retratos que parecem retratar os que passam e os olham.




E há os retratos que parecem olhar com suspeição os que os olham com suspeição.




E há os inesperados hologramas que se movimentam, que dançam numa coluna de vidro, pequenas figuras quase humanas que se transformam em luz e cor, quase tanta luz e cor como a do enorme quadro ali por trás.




E há os belos homens que fotografam as mulheres misteriosas das pinturas enquanto são fotografados por mulheres curiosas que gostam de observar os que observam.




E há as pinturas nas paredes que envolvem de cor e movimento as pessoas que ousam entrar em tão coloridos espaços.

Poderia ainda mostrar-vos as peças de mobiliário moderno, de design arrojado, ou instalações imprevistas, poderia mostrar-vos tantas coisas mais destes museus maravilhosos - mas sei lá se vocês ainda estão aí... às tantas já estão a dormir ou fartos de tanta conversa e tantas fotografias.

Por isso, fico-me por aqui. Se ainda aí estão, só posso desejar que tenham gostado.

Amanhã talvez vos mostre imagens dos canais, lindos, lindos nesta altura do ano.

**

E não me alongo mais. Tenham, meus Caros, um belo domingo!