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segunda-feira, julho 15, 2024

Dias felizes

 

Devo dizer que tenho vivido dias felizes. Com os que me são mais queridos juntos, todos bem dispostos, a conversa a fluir de gosto, todos em volta da mesa, com a casa cheia, com a maluqueira nocturna que me fez rir de gosto, com o madrugar bem mais cedo do que me é habitual, com a alegria de todos... sinceramente, a nível pessoal, não posso querer mais. 

De vez em quando lembro-me do que disseram e dou por mim a rir sozinha. 

Todos têm a sua vida pessoal e profissional (ou escolar), certamente todos terão, de quando em vez, os seus contratempos e preocupações. Mas, como por magia, quando nos encontramos todos, parece que os problemas perdem relevância e a ninguém lembra falar de maçadas.

Estou boa do meu pé. Quase boa. A nível visual está praticamente normal. Claro que, quando olham, ficam um bocado enjoados pois acham-no esquisito. O dedão (e arredores) está a perder a pele. Mas a mim isso não me incomoda nada. Também ainda tem umas manchinhas escuras mas nada de mais. Também já mexo razoavelmente o dedo. Dói-me ainda um pouco mas já não me tira o sono e, na maior parte do tempo, nem me lembro de tal coisa. E da tendinite do ombro que me causou rigidez também já estou quase a cem por cento. Vou eu fazendo uns exercícios e a coisa está a ir ao sítio. Só aqui é que me ponho a falar nisso. Quando estou com a minha turma nem me lembro das chatices que tive nem do que ainda sobra delas. 

Claro que, no meu íntimo, sinto saudades da minha mãe e faz-me muita impressão que tenha sido uma presença tão constante na minha vida e que, como que por artes mágicas, em pouco tempo, se tenha despido de matéria. Era alguém tão presente e agora é apenas memória. E já passaram quase seis meses. Por vezes, parece-me impossível. E no outro dia o meu pai faria anos e, no entanto, ao mesmo tempo, parece que já não existe há imenso tempo, quase como se já não pertencesse à minha vida actual. E não pertence. Mas a verdade é que pertenceu até 2020. 

O tempo tem o seu lado cruel, a vida tem o seu lado de traiçoeira. 

Mas forço-me a manter estes pensamentos no lado adormecido da minha mente. E consigo que isso coexista com a minha alegria em estar viva e rodeada por aqueles que tanto amo.

E depois há as pequenas coisas. Infra-mínimas. Mas que me dão prazer, me motivam, me animam.

Por exemplo: estava com o cabelo comprido que geralmente apanhava em rabo-de-cavalo, muitas vezes dando-lhe uma reviravolta ao alto, para cima. Mas andava com vontade de o transformar. Então hoje, há bocado, fiz assim: estando apanhado num rabo de cavalo alto, como é costume, meti-lhe a tesoura e lá vai disto. Ou seja, agora, depois de cortado, dá para o apanhar na mesma, à tangente mas dá, e, curiosamente, ficou com um escadeado bem curioso. Saiu um monte de cabelo, ficou muito mais leve, e acho que não ficou mau de todo. Ainda lhe dei mais umas duas ou três tesouradas à frente para fazer um degradé mais harmonioso. Já não vou à cabeleireira há anos e fico com pena pois gostava dela e espero que as restantes clientes sejam mais fiéis do que eu. Mas isto de ter a liberdade de fazer coisas assim, na base do 'lá vai disto', faz-me sentir muito bem.

A outra coisa pertence à mesma categoria, a das frioleiras: andava com vontade de usar vestidos compridos mas nada me agradava pois não sou bem o género de intelectual de esquerda daquelas que usam saias compridas, largas e desengraçadas, nem sou exactamente o estilo hippie. Não estava a ver-me como uma maria-pendona. Mas também não queria usar vestidos que parecessem de noite, muito menos de baile de finalistas. Portanto, mantinha-me no classicismo das calças, dos vestidos pelo joelho, e, numa versão mais estival, calções brancos com blusinhas coloridas. Mas finalmente dei o salto. Encontrei o género de que gosto. A minha filha ofereceu-me um, que me assenta de uma forma superconfortável e com o qual gosto mesmo de me ver. E eu comprei os outros. E sinto-me tão bem... Há um que ainda não estreei mas sobre o qual estou com uma boa expectativa: cai como seda, suave, muito leve, é justo em cima mas alarga um pouco para baixo, é super decotado à frente e atrás, de alcinhas finas, e é em cor de coral com pavões gigantes de alto a baixo naqueles tons verdes e azulões. E, para conjugar, tenho um brinco, um único, com uma pena nos mesmos tons. Penso que vai ser exótico e isso agrada-me.

E toda a vida usei brincos discretos. Poderiam ser coloridos e adaptados às toilettes mas nada de exuberâncias. Contudo, andava com vontade de ter brincos ousados, coloridos, incomuns. E descobri-os. Estou mesmo feliz com eles. A ver se amanhã os fotografo para vos mostrar pois acho-os especiais e, sobretudo, os pais da criadora comoveram-me e apetece-me transmitir-lhes o meu carinho.

E ainda mais uma: chapéus. Adoro chapéus. Mas sempre me fiquei por modelos que me parecessem elegantes mas discretos. Provavelmente as pessoas discretas já os achariam algo destacados mas, para mim, estavam aquém do meu gosto intrínseco. Pois vi um que imediatamente chamou a minha atenção. A minha filha, ao vê-lo na loja, disse que todo ele é, em si, um statement. De facto. E não fujo a isso. Mas, ainda assim, receei que fosse demasiado aparatoso. Contudo, acabei por não resistir. Acho-o um espectáculo e sinto-me mesmo feliz quando o ponho. (Não é este. Este aqui ao lado é um que encontrei via google)

Quando era adolescente gostava de modelos originais e de me maquilhar e os meus pais zangavam-se, não queriam que eu desse nas vistas, diziam que não tinha idade para isso. Depois, pela minha profissão, tinha a noção de que não deveria mostrar-me a tender para o radical ou para a desalinhada (até porque era acusada disso). Agora já não tenho que provar nada a ninguém nem tenho que recear as opiniões alheias. Não que me preocupasse com isso mas, enfim, vivia o meu dia a dia integrada numa realidade em que as fugas à regra tendiam a ser mais ou menos vistas como perigosas excentricidades.

Claro que para coroar o bolo só mesmo uma cerejinha a enfeitá-lo: durante a semana fomos, por duas vezes, almoçar a um restaurante veggie. Não me tornei e acho que não me tornarei veggie mas a verdade é que gostámos imenso. Comemos agora muito menos carne, preocupamo-nos cada vez mais com uma alimentação equilibrada e saudável. E o meu filho ofereceu-me um conjunto de alimentos biológicos, saudáveis, e isso agrada-me e atrai-me bastante.

Portanto, apesar de não estar a ir para nova, a verdade é que me sinto cada vez mais disponível para procurar e acolher novidades e para me libertar das poucas peias que já tinha.

E viva a vida.

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Mercedes Sosa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gal Costa - Volver a los 17


Uma semana feliz

quarta-feira, novembro 16, 2022

A saudade dos três doces bárbaros na partida de uma deles

 


Hoje soube da morte de uma pessoa que conhecia. Conhecia-a apenas de vista mas, de todas as vezes que estive com ela nos mesmos eventos, via-a sempre vibrante, cheia de alegria e de vida. O seu próprio rosto irradiava. Sempre alegre, entre amigos, rindo, na paródia, ela era daquelas pessoas que não passava despercebida. Soube há algum tempo que estava doente, mais recentemente soube que estava mesmo mal, ontem soube que estava por pouco e hoje soube que o seu sofrimento tinha acabado. 

Fez-me muita impressão. Há pouco vi uma fotografia sua e a sua morte parece-me ainda mais impossível.

Até há uns anos quem morria eram avós, tios de idade, depois mais recentemente começaram a morrer alguns pais -- pessoas de outra geração. Mesmo fazendo-nos impressão e sentido a saudade e a dor da separação, inevitavelmente aceita-se. É a lei da vida, diz-se nestas ocasiões. E é verdade. 

Lembro-me de andar no primeiro ano do liceu e de ter morrido uma colega, vizinha e amiga. Toda a gente sofreu imenso e a mim causou-me uma aflição muito grande. Contudo, desde pequena que eu ouvia dizer que ela sofria do coração e que havia nela uma bomba sempre prestes a explodir. Lembro-me de ouvir dizer que, antes de morrer, tinha tido muitas hemorragias e, para mim, pensei que tinha mesmo acontecido, o coração dela tinha mesmo explodido. 

Mais tarde, mas ainda no liceu, foi um vizinho da minha avó, colega de escola desde a infantil e amigo que também morreu. Tinha asma e sempre o conheci com uma tremenda falta de ar, sempre com pieira e sempre arfante, sem poder brincar, por vezes quase sem poder falar ou mexer-se. Falava-se da bomba como se vivesse dependente dela. Quando morreu foi uma pena muito grande mas foi quase como se fosse uma morte anunciada, a fatalidade que todos receavam.

Foram mortes muito precoces mas, em ambos os casos, no meu mais íntimo foi quase como se a natureza tivesse feito a caridade de reparar um erro irreparável

Não vou falar das mortes da minha família e que muito me custaram. Mas vou falar de uma morte que me fez mesmo muita, muita impressão. 

Volta e meia falo aqui dela. Quando no outro dia andei a limpar mails, passei várias vezes pelos dela e não fui capaz de apagar um único. Nenhum era de trabalho. Eram todos mails de anedotas, vídeos divertidos ou bonecada frequentemente maliciosa (muito maliciosa, muito mesmo, para dizer a verdade). Era uma pessoa que estava sempre de bem com a vida, que brincava com tudo e com todos. Ainda me lembro dela, uma vez, nos contar que uns dias antes tinha estado com um ministro e que ele a tinha olhado de alto a baixo. Mas logo acrescentou: 'Mas não era com ar de quem queria comer, era mais ar de 'onde é que ela terá comprado esta roupa?'. O meu marido desconcertado, o marido dela a rir, já mais que habituado, eu perdida de riso. Ou quando contava toda a espécie de safadezas entre colegas de trabalho, explicando: 'Sabem como é, há muitas camas...'. Até que um dia ele me contou, preocupadíssimo, que ela tinha pedido a um colega que lhe fizesse um exame e, nesse exame, o colega confirmou o que ela temia: um tumor. Depois foram os dias de expectativa em relação à biopsia. E depois o que se seguiu, ela sempre optimista, os tratamentos, ela optimista, o marido reticente mas, depois, o mal erradicado, já confiante. Os anos seguintes foram anos tranquilos, ela bem. Os filhos casaram, veio um neto, eles felizes. Por vezes, a medo, eu perguntava-lhe a ele: 'E ela, bem?'. E ele: 'Felizmente'. Há pouco tempo, andava eu e o meu marido a passear em Óbidos, entre o Natal e o Ano Novo, toca-me o telemóvel. Ele. Conversámos. O bebé dormia a sesta. Disse que a mulher estava 'aqui ao lado, manda-vos beijinhos. E um feliz ano novo'. Ouvi a voz dela. Retribuí. Não sei se no primeiro ou segundo dia do ano, eu a trabalhar, o telefone. Ele. Num fio de voz, se calhar ela tinha que ir para os paliativos. Não percebi. Ele disse que também não. Ela tinha escondido que estava muito mal. Tinha-se medicado. No hospital, os colegas contaram-lhe: sabiam, ela tinha dores mas tinha-lhes pedido para não dizerem nada. Intrigada, eu: 'Mas a semana passada disseste que estava bem... '. E ele: 'Estava cansada mas foram as festas, a miúda lá em casa, pensei que era normal, ela dizia que era normal'. Mas na véspera não se conseguia mexer, estava sem forças, levaram-na ao hospital, teve que ir ao colo. Estava no fim. Ele ainda incrédulo. No dia seguinte, em lágrimas, ligou-me de novo: ela tinha morrido. Não quis estragar as festas à família, não quis que a família e os amigos sofressem com o seu sofrimento. O que ela sofreu nem imagino. Da sua coragem nem encontro palavras para falar. Mas viveu até ao fim como sendo ela própria e não como uma doente terminal e acho isso extraordinário. No velório, o meu amigo estava inconsolável, destroçado. Ela era a sua força, ela era o motor da família.  E a mim fez-me muita impressão. Quase como se não conseguisse assimilar, não conseguisse perceber, não conseguisse aceitar que tinha mesmo acontecido. Ainda hoje me espanto. 

E agora foi esta... (ia dizer esta rapariga). Está a meio caminho entre a idade da minha filha e da minha. Tão jovial, tão saudável. Parece que não se pode acreditar.

Há situações em que parece que, ao desaparecer uma pessoa, se abre um buraco negro que jamais será ocupado. Pessoas luminosas. Deixam um rasto que perdura na nossa memória, que continua a brilhar.


Não há ninguém que cá fique pelo que, racionalmente, deveríamos encarar estas situações com alguma naturalidade, aprendendo a aceitá-las melhor. Mas nisto das emoções nem sempre se consegue ser racional.

Não é fácil.

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Caetano Veloso e Maria Bethânia falam sobre Gal Costa: 'Nossa história é amor'

A voz de Gal, apesar de única, sempre esteve perto de outras três vozes: as de Gil, Bethânia e Caetano. Juntos, eles transformaram a amizade em arte. A repórter Renata Ceribelli ouviu duas dessas vozes. Elas falam de lembranças doces e de uma bárbara saudade.


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A primeira pintura é Death on a pale horse, J. M. W. Turner. A segunda e a última são algumas das fantásticas mulheres de Armanda Passos. A terceira é da autoria de Gary Hume.
Lacrimosa - Mozart
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Um bom dia
Saúde. Ânimo. Paz.

quinta-feira, novembro 10, 2022

Gal.
Profana, sagrada. Eterna.

 



Já aqui falei várias vezes daquele período feliz da minha vida em que convivíamos quase semanalmente com amigos do tempo da faculdade. Éramos três casais a que se juntaram dois outros. Éramos novinhos e os filhos iam chegando, e nós, em grupo, acolhendo uns e outros, na maior alegria e brincadeira.

Mesmo quando a mais complicada do grupo não conseguia engravidar ou quando começou a desatinar com o marido, nós, colectivamente, ajudámo-los a ir superando as dificuldades (até ao ponto em que, vários anos mais tarde e muitas crises disparatadas depois, acabaram mesmo por romper). Ou quando uma outra não conseguia, de maneira nenhuma, engravidar e optaram pela adoção, foi entre todos que acolhemos a criança tal como foi entre todos que os ajudámos a superar os problemas que vieram a enfrentar .

Juntávamo-nos ora em casa de um ou de outro, conversávamos, ríamos, as crianças brincavam. Outras vezes passeámos e conhecemos o país, outras vezes fazíamos picnics. 

Nem sempre conseguíamos encontrar-nos todos ao mesmo tempo pois a conjugação de disponibilidades obrigava a encontros em geometria variável mas havia um fio condutor que nos unia. E os miúdos iam crescendo, alguns iam mudando de empregos, as famílias iam evoluindo. 

Até que começaram as escolas mais a sério e uns tinham testes, outros tinham festas de anos, depois vieram os namoricos, e era cada vez mais difícil mantermos o hábito de nos encontrarmos ao fim de semana. 

Mas, durante anos, éramos assíduos e guardo a melhor das melhores recordações desses anos abençoados. 

Em especial um deles era divertidíssimo e ainda hoje nos rimos com as brincadeiras dele. 
(Por exemplo, quando estava na cozinha a preparar o almoço e eu na sala e ele, de lá, gritava pelo meu nome, perguntando a seguir: "Queres na brasa?'. E eu, distraída, pensando que se referia aos bifes, caindo sempre. 'Pode ser'. E ele, malicioso: 'Não preferes devagarinho...?')
Daquelas pessoas que não envelhecem, mesmo fisicamente. Era também ele que mais novidades musicais descobria e nos dava a conhecer quando nos encontrávamos em sua casa. 

Por essas alturas orgulhávamo-nos das 'aparelhagens': amplificadores, grandes colunas. E o som era puxado, grandes batidas, a música soava alto e bom som, e toda a gente cantava. E alguns dançavam. 

Os miúdos estavam na deles, enfiavam-se nos quartos a brincar uns com os outros e não ligavam patavina à farra que os pais faziam. Nunca me lembrei de perguntar aos meus se têm ideia da música que sempre rolava nesses dias mas tenho para mim que lhes passou ao lado.

Já aqui falei da Rita Lee e o que dançávamos e saltávamos, creio que já falei da Sade (para uma onda mais cool e romântica) ou do Simon and Garfunkel para uma onda (nem sei como dizer) talvez mais urbana. Ou o Lou Reed ou o Bruce Springsteen. Tantos. 

E havia, sonora, luminosa, festiva, intensa, a Gal. 

Cantávamos a plenos pulmões com ela, apaixonados pela vida, apaixonados pela alegria de estarmos juntos, apaixonados pela festa que sempre fazíamos.

E, como geralmente nos encontrávamos ao domingo (o dia em que não havia natação, ginástica, karaté ou o que quer que fosse que sempre algum dos miúdos tinha ao sábado), o Dia de Domingo da Gal com o Tim Maia era quase um hino. Por isso, ainda agora, quando aqui vos desejo um bom domingo, não sei se alguma vez repararam mas costumo escrever um bom 'dia de domingo'. 

Quando hoje soube que a Gal tinha morrido senti que se tinha aberto um vazio nas minhas memórias. É certo que os discos, os cds e os vídeos superam as ausências mas saber que ela afinal era mortal e que toda aquela energia e sensualidade e vida eram, afinal, perecíveis deixou-me francamente abalada. Foi mesmo uma bandeira dos meus tempos de alegre juventude que foi descida. Com tristeza.


Eu preciso te falar,
Te encontrar de qualquer jeito
Pra sentar e conversar,
Depois andar de encontro ao vento.
Eu preciso respirar
O mesmo ar que te rodeia,
E na pele quero ter
O mesmo sol que te bronzeia,
Eu preciso te tocar
E outra vez te ver sorrindo,
E voltar num sonho lindo

Eu preciso descobrir
A emoção de estar contigo,
Ver o sol amanhecer,
E ver a vida acontecer
Como um dia de domingo.

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Desejo-vos um bom dia
Saúde. Boas memórias. Paz.

domingo, janeiro 25, 2015

Pode um puto marado fazer-se passar por quem não é e enganar meio mundo? Pode, então não pode...? As pessoas andam sempre desejosas de ser enganadas, qualquer bicho careta o consegue.


No post a seguir a este já falei na moda dos calções e calças de crochet para homem e para mulher e mostrei uns modelitos para inspirar os menos criativos.

Mas isso é mais abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra.


No prédio onde morei antes de morar na casa onde vivo agora, habitava, no andar por baixo do nosso, um casal com uma filha da idade da minha. A miúda volta e meia ia brincar para minha casa. Em contrapartida, a minha filha nunca queria ir brincar para casa dela pois dizia que não gostava dos pais dela, achava-os estranhos.

Os pais eram altos, porte erecto, ele de cabelo muito louro e muito curto, ar germanófilo, e ela era idêntica, loura, cabelo forte e curto, uma autêntica sargenta das SS. Mas o pior não era isso. O pior é que, volta e meia, a casa quase vinha abaixo com as discussões entre ambos. Gritavam um com o outro até mais não poder, atiravam portas, ouvia atirarem coisas que se partiam, um pavor. A voz dela ouvia-se em surdina mas o que ela dizia deixava o marido de cabeça perdida. Gritava-lhe com voz desesperada, furibunda, 'Oh Luísa! Tu não me digas isso!'. E lá ia mais uma coisa contra a parede. Outras vezes corriam um atrás do outro, deitando abaixo os móveis que se lhes atravessassem no caminho. Se fosse hoje, acho que chamava a polícia mas, nessas alturas, só me preocupava com o mal que aquilo deveria fazer à criança. Ficava eu e o meu marido muito calados, a ver o momento em que deveríamos intervir. 

Mais do que uma vez, ao chegar ao prédio, vi a miúda no hall, junto aos elevadores, ar meio perdido. Quando lhe perguntava o que estava ali a fazer, dizia que estava ali enquanto os pais conversavam. E, ao sair do elevador no meu piso, ouvia logo que tipo de conversa estavam eles a ter: mais um daqueles arranca-rabos em que metade dos bibelots ia à vida. Contudo, invariavelmente, quando os via na rua, ia o calmeirão com o braço por cima dos ombros da calmeirona, lampeiros, conversando e rindo como se fossem um casal feliz. 

Mas aquilo deve ter provocado uma pancada das valentes na miúda porque, já eu não morava lá, estava uma vez numa ourivesaria, entra a rapariguita, talvez tivesse uns quinze ou dezasseis anos. Não me viu e ainda bem. Dirigiu-se ao dono da ourivesaria, com voz de menina mas com ar convicto, e pediu para ver uma gargantilha de ouro que estava na montra. O senhor tirou a bela jóia, mostrou-lhe, ela mirou, remirou, ar entendido, ajustou-a ao pescoço, viu-se ao espelho. Depois, com ar igualmente confiante, disse: 'Obrigada, é muito bonita. Não vou levar agora porque não vim prevenida'. E saíu, passada forte, desenvolta.

Fiquei perplexa. Uma fedelha armada em mulher feita, sem se dar conta do ridículo. Contudo, para minha surpresa, o senhor que a atendeu não pareceu chocado com aquilo. Não se desatou a rir quando ela saíu, não disse 'há com cada maluco!', nada. 

Lembrei-me disto ao ler, há bocado, que um rapazito de 17 anos se fez passar por ginecologista num hospital durante um mês. Um mês! A coisa passou-se em West Palm Beach, na Florida, Estados Unidos e apenas um médico achou estranho que ele fosse tão novo. Mas até lá ninguém achou impossível que um puto já fosse médico, e ele andou a enganar todos quem com contactava na maior das facilidades.

Faz-me lembrar aquele outro rapazolas de quem muito se falou há uns três meses, o pequeno Nicolas, que enganou meia Espanha, apresentando-se como um influente homem de poder, bem relacionado. E, no entanto, olha-se e o que se vê é um puto. Como foi possível ter enganado tanta gente?

Transcrevo:


Francisco Nicolás Gómez-Iglesias, um burlão de 20 anos, fez-se passar por assessor do Governo e chegou a frequentar festas da realeza. Foi detido. 


O médico diz que tem uma personalidade delirante e megalómana.



Francisco Nicolás Gómez-Iglesias tem 20 anos, mas movimentava-se nos círculos do Partido Popular (PP) espanhol como um «peixe na água». 


Apresentava-se sempre bem vestido e bem-falante e talvez por isso ninguém tenha desconfiado. 


Dizia-se tão bem relacionado com o poder espanhol que até conseguiu estar presente na coroação de Felipe VI e apertar-lhe a mão. Mas agora descobriu-se que tudo não passava de um embuste. Francisco Iglesias foi detido a 14 de outubro, após cinco anos a inventar uma vida paralela e a enganar toda a gente. No rol de acusações constam suspeitas de falsificação, usurpação de funções públicas e esquemas fraudulentos.


Francisco Iglesias sonhava ser famoso e, para realizar esse desejo, colecionou fotos onde aparecia ao lado de figuras como o ex-primeiro-ministro José María Aznar, a autarca de Madrid, Ana Botella, a antiga presidente da Comunidade de Madrid, Esperanza Aguirre, ou até mesmo, como já foi dito, a cumprimentar Felipe VI no momento da proclamação como rei de Espanha, à qual assistiu. 

Assistiu também a jogos na bancada VIP no estádio do Real Madrid ou no do rival Atlético, ao lado de Radamel Falcao, quando este ainda jogava no clube espanhol. 

(...)

Frankie, como o tratam os amigos, apresentava-se a quem ia conhecendo como alguém que ocupava um alto cargo numa qualquer instituição, fosse como assessor do Gabinete Económico do Palácio da Moncloa (a sede da Presidência do Governo de Espanha e a residência oficial do primeiro-ministro), dirigente do Partido Popular, ou representante das direções da Guarda Civil ou agente dos serviços secretos. 

Fê-lo sempre sem apresentar qualquer documentação.

(...)



E o artigo continua e nós pasmamos: mas não era óbvio que, com aquela idade (e aquela cara), o puto nunca poderia ser quem se dizia ser? Mas não. Por inacreditável que possa parecer, todos se deixaram enganar. 


Vídeo com: El pequeño Nicolás y el CNI




Vendo casos como estes, em que as pessoas aceitam acefalamente embustes tão facilmente desmascaráveis, percebe-se que se deixem igualmente enganar quando lhes dizem que foram culpadas pela crise financeira internacional ou que devem deixar os filhos partir para o estrangeiro, ver os ordenados ou reformas diminuídos, ou aceitar ficar a viver sem dinheiro, agradecendo o assistencialismo que lhes fornece a sopinha dos pobres. Aqueles dois casos de que falei (excluindo o caso da miúda minha vizinha) passaram-se respectivamente nos EUA e em Espanha mas poderiam ter-se passado em qualquer outro lugar onde os valores estejam virados do avesso e onde as pessoas tenham sido atacadas por essa estranha forma de cegueira que não tem origem em factores clínicos. A pior cegueira é a de quem não quer ver - é é bem verdade.


PS: E espero que hoje a Grécia dê uma lição aos palermas desta vida, especialmente aos que tão estupidamente têm passado estes anos de chumbo a apregoar que 'nós não somos a Grécia'.

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Aos poucos a vida vai voltando a entrar nos eixos e, depois de, este sábado, ter feito mais uma visita aos meus pais, este domingo vou ter de novo a casa cheia de pimentinhas e respectivos pais; e o riso dos meus meninos vai, de novo, soar e a desarrumação vai de novo tomar de assalto a minha casa que tão arrumadinha tem andado. Por isso, e porque tenho que preparar a amesendação para aquele bando de comilões e porque antes ainda farei a minha caminhada matinal, não posso agora dedicar-me a outros assuntos mais estimulantes, tenho que me ficar por aqui para me ir deitar.

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Bem. Relembro que modelos de calções e calças em crochet para todos, incluindo para homens, é já a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.

E, a propósito de um belo dia de domingo, para vós uma canção que, há mil anos atrás, gostava de ouvir nas manhãs de domingo. Ouvíamo-la alto e bom som e cantávamos também alto e bom som, muitas vezes enquanto nos balançávamos ou dançávamos. Nessa altura, tínhamos com frequência uns amigos lá em casa ao fim de semana e ele era um pândego, agarrava-se à mulher, a quem tratava por Mariazinha (apesar de o nome dela ser outro), cantando-lhe também a plenos pulmões este Um dia de Domingo.

Um dia de domingo - Tim Mais e Gal Costa


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