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sexta-feira, maio 24, 2019

O meu mea culpa perante Paulo Pedroso



Há temas que me revolvem as entranhas e me fazem perder a distância emocional de que a racionalidade precisa. Aquele que, há uns anos, invadia a comunicação social foi um deles. Tantas discussões que tive por causa disso, em especial cá em casa. Queriam chamar-me à razão e eu não queria ouvir. Teimava que, se as crianças diziam, é porque era. Nessa altura, eu não sabia que as crianças podiam ser manipuladas e que os investigadores poderiam condicionar as suas respostas.

Quando mete crianças eu cego, eu viro loba, predadora de quem pode querer fazer-lhes mal.

Nessa altura, eu também ainda não tinha aprendido que a justiça pode ser leviana, traiçoeira, destruidora, injusta e vil. Nem sabia que a imprensa escrita e televisiva saliva por sangue, por perversidade. Muito menos sabia do conluio entre agentes da justiça e a imprensa mais sensacionalista e nojenta. Ainda me lembro dum Expresso a fazer capa com Ferro Rodrigues. Nesse dia o meu marido divorciou-se do Expresso e eu, apesar de duvidar da notícia, não condenei o Expresso, apenas tive pena que o jornal se tivesse enganado tão grosseiramente. A minha compreensão andava toldada.


A toda a hora, se sabiam de casos, a toda a hora se ouviam e liam testemunhos. Foi feita uma lavagem ao cérebro dos portugueses. E eu, tão inocente na altura -- tamanhas eram a minha preocupação pelas crianças e a repugnância por quem poderia molestá-las --, não duvidei que a Justiça não estivesse a fazer o seu papel. 

De forma cega, condenei inocentes. Um deles foi Paulo Pedroso. 

Lembro-me bem das televisões a mostrarem a sua prisão na Assembleia da República, o juiz a acompanhar o espectáculo. E lembro-me da dignidade de Paulo Pedroso. Mas não coloquei a hipótese de que toda aquela encenação fosse um dos momentos mais negros da Justiça do Portugal democrático. 


Só passado algum tempo caí em mim. Mas caí em mim tarde de mais. Fui injusta, cega e, portanto, cruel. Percebi, só então, que não há maior crueldade do que condenar um inocente.

Gostava de poder voltar atrás no tempo e ter tido, nessa altura, a lucidez que penso que, com o tempo, fui adquirindo, com a constatação objectiva dos erros grosseiros e dos vícios da justiça em Portugal. Se isso fosse possível, teria a oportunidade de defendê-lo com unhas e dentes, teria oportunidade para mostrar a minha repugnância por quem ousasse enlamear de forma tão vil um homem inocente. Mas não é possível voltar atrás no tempo.

Por isso, a única coisa que posso fazer é aqui pedir públicas desculpas a Paulo Pedroso. Mas faço-o sabendo que isso é coisa que não vale nada, nada, pois mesmo que ele me desculpasse, jamais me desculparei eu a mim mesma. Condenar um inocente é coisa que não tem perdão.


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Escrevo isto depois de ter lido no Aspirina B: Ubi non est justitia, ibi non potest esse jus que remete para o blog de Paulo Pedroso: O dia do triunfo do absurdo

E incluí aqui pinturas de Francis Bacon e se calhar não devia pois este texto não deveria consentir distrações uma vez que há palavras que devem impôr-se sobre tudo -- e assim deve ser um pedido de desculpas. Mas, quando penso em absurdo, em situações informes e degradantes, mentalmente associo-as às pinturas de Bacon. E a situação terrível, absurda e de uma violência demolidora pela qual passou Paulo Pedroso é isso tudo.

terça-feira, dezembro 02, 2014

Sócrates é ou não culpado de corrupção, branqueamento de capitais e fuga ao fisco? Passei o dia a ler jornais e revistas e, face a tudo o que li, não detectei indícios de coisa nenhuma. Mas não sou fundamentalista nem devota de nenhum santo muito menos de Sócrates. O que o meu horóscopo diz explica o que me vai na mente


Como não tinha conseguido ler jornais ou revistas e, como esta semana estou em casa, passei o dia a ler o Expresso de fio a pavio, a Visão, a Sábado.

Da minha base de formação académica retenho ainda que apenas se podem construir deduções a partir de premissas se as premissas forem comprovadamente verdadeiras. Enquanto isso não acontecer, não vale a pena continuar.

  • De tudo o que li, apenas constato que Sócrates viveu em Paris em andares que eram propriedade de uma empresa do amigo que trabalha na área da imobiliária. Os juízes suspeitam que a história esteja mal contada mas, do que vi, os factos são que as casas são do outro e que Sócrates era inquilino ou hóspede. 
Entretanto, soube que Sócrates escreveu uma carta à RTP confirmando que a casa de Paris é do amigo, não dele. 

  • Também vi que a mãe herdou vasto património de um pai riquíssimo que deixou fortuna aos seus três filhos e que, recentemente, vendeu três andares à empresa do amigo do filho. O produto da venda deu ao filho. 
  • Li também o que já sabia mas que me voltou a impressionar. A mãe de Sócrates teve 3 filhos. Dois deles morreram de doença, a rapariga há mais de 20 anos e o mais velho há três anos, e o que está vivo, José Sócrates, está preso. Quem geria o património da senhora era o filho mais velho que morreu. É daqueles casos em que se pode dizer com propriedade que o dinheiro não traz felicidade e imagino o desalento e tristeza da senhora. 

Não vi mais qualquer informação concreta para além disto. Pediram informação a bancos na Suiça para poderem validar as suposições mas ainda não a receberam, pelo que ainda não confirmaram as suposições. De resto, os jornalistas sabem o que ele comeu ao pequeno almoço, almoço e jantar desde que está detido mas não me parece que isso venha ao caso.


Li também que há mais de 1 ano que Sócrates era escutado em permanência, chamadas privadas, tudo, uma devassa assustadora. 

Um dos filmes mais extraordinários que vi e que mais me tocou foi A Vida dos Outros, um filme que relatava o trabalho de um agente da Stasi a quem, a dada altura, foi atribuída a missão escutar tudo o que se passava na casa de um homem da cultura. Não havendo nada contra esse homem, a ideia era que alguma coisa havia de haver e que, portanto, mais valia passar a vigiá-lo. Instalaram escutas em casa e, a partir daí, o agente ouvia tudo, sabia toda a sua vida, uma coisa alarmante. Conseguiu corromper a mulher com quem esse escritor vivia, conseguiu que ela o traisse. Uma abjecção moral terrível, Depois houve um volte-face e o filme passou de arrepiante a tocante. Recomendo muito.

Depois de ter visto este filme, nunca mais me poderei esquecer do que é ter a vida devassada por agentes que fazem das escutas o seu modo de vida, que querem justificar o que fazem, que precisam de um motivo para mostrar serviço. E a devassa por que uma pessoa passa, tendo todas as suas conversas ouvidas, interpretadas, comentadas. 

Só em casos muito extremos tal devia acontecer, nunca como uma forma normal de investigação.


A VIDA DOS OUTROS


VENCEDOR DO OSCAR 2007 DE MELHOR FILME ESTRANGEIRO
Realização de Florian Henckel von Donnersmarck, artistas principais: Ulrich Muehe, Sebastian Koch



Mas isto sou eu a pensar.

Tive aulas de Lógica, sempre foi matéria que me apaixonou. Detectar erros de raciocínio, falsas premissas, falsas deduções sempre foi um desafio que encarava (e encaro) com entusiasmo.

Mas, enfim, há sempre uma possibilidade: a de que não tenhamos em nossa posse todos os elementos de análise. Pode vir a surgir a prova que completa o puzzle. Há que estar receptivo a voltar a equacionar as teorias face a novos elementos que surjam. Mas, enquanto não existam novas informações, deveremos manter-nos fiéis à pureza da lógica.

Esta é a minha maneira de pensar.

No meio da ociosidade que foi esta segunda feira, sem encontrar nada de novo em tanta página que li, às tantas lembrei-me de espreitar o meu horóscopo. Transcrevo a parte que importa:


Astrologist Jennifer Angel on your daily outlook: December 1, 2014

In a perfect world, you would have every piece of information laid out in front of you to make an informed decision. Unfortunately this is not always possible, and sometimes, you have no other option than to just trust your instincts, and lucky for you, ruled by Moon, this is not a difficult task. Your intuition is stronger than you probably realize, and it can set you on the right path if you tune in and listen, especially as a full Moon approaches at the end of this week, which makes you even more astute.

Acho que já aqui o disse algumas vezes: sou muito intuitiva e fio-me imenso na minha intuição. Em tempos, trabalhei com um empresário que era fino como um rato, frio como uma lâmina, implacável. Pois bem, volta e meia, quando tinha dúvidas chamava-me, contava-me o que se passava e depois perguntava 'O que lhe diz a sua intuição?'.

Uma vez, num processo muito mediatizado, ele queria avançar com um processo crime contra um conhecido figurão da nossa praça, um que viria a ser ministro. Eu disse que não, que achava que era coisa para tribunal administrativo e nada mais. Seguiu o meu conselho. Não que eu não tivesse vontade de avançar para outros terrenos mas a minha intuição dizia-me que não ia conseguir nada, apenas desgaste emocional e desgaste financeiro.

Trabalhei com um outro, um com feitio miudinho, que ouvia a minha opinião mas dizia que não podia dar-me ouvidos se eu apenas tinha a minha intuição a justificar os meus intentos.

Eu própria achava que se calhar a minha intuição era coisa pouco credível, coisa a caminho dos dotes devinatórios. Até que, num curso de psicologia comportamental, o professor explicou que a intuição é um atalho da inteligência, é a forma de o raciocínio se processar sem ter que percorrer toda a cadeia dedutiva, bastando-lhe a correcta interpretação de marcadores. Aí passei a respeitar a minha intuição.

E é assim que, por um lado mantendo-me fiel às boas práticas da Lógica e, por outro, dando crédito à minha intuição, vou levando a minha vida. Não posso dizer que me tenha dado mal embora já, pelo menos uma vez, me tenha deixado guiar pela emoção e, dado haver crianças envolvidas, deixei que o meu lado racional tivesse sido submerso. Penso que cometi uma injustiça para com uma pessoa perante quem já me desculpei mas essa injustiça continua a pesar na minha consciência. Isso passou-se aqui, neste blogue, a propósito do caso Casa Pia e recebi uma vez um mail sentido de alguém a quem eu indirectamente me tinha referido como podendo ser culpado. Essa pessoa leu o que escrevi e foi tamanho o sofrimento que li nas palavras que me dirigiu por mail que ainda hoje não me perdoo.

Se é horrível deixar escapar um culpado, mil vezes pior é culpar um inocente. 


Por isso, sem preconceitos, vou esperar para ver o que dá isto do Sócrates. Ou seja, não alinharei em julgamentos antecipados, isso não.

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As imagens que usei não têm a ver com nada. Apenas gostei de ver a forma amorosa como Tim Flach fotografa animais. Há uma série de fotografias a que ele chamou More than Human e talvez seja assim de facto, haver mais humanidade nos animais do que em muita gente mas, enfim, isto não são horas para retirar a moral às histórias.

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terça-feira, janeiro 25, 2011

Quando ele é outro; quando nós somos o outro

Há uma pessoa que eu detesto desde que a vi aparecer na televisão. Incomodava-me sem motivo aparente. Mal o via, já eu estava a protestar. Perguntavam-me que embirração era aquela e eu não sabia explicar. Era a voz, era a cara, os gestos, tudo aquilo me parecia ter um ar de falso.

Um dia, há algum tempo, ia eu a descer umas escadas num local público e vinha ele a subir. Quando me viu teve aquela reacção de quem vê alguém conhecido. Não sei se eu tive a mesma reação, penso que não mas pode ter acontecido, dado que eu estava fartíssima de o ver na televisão - antes por motivos normais, depois pelos piores motivos.

Mas ele subiu na minha direcção, sorrindo e cumprimentando-me com à vontade, 'Olá, está boa?'. Fiquei sem reacção. Ele sorria, dizendo-me que não tinha logo falado porque não tinha reparado. Sorria esperando que eu retribuísse mas eu nada, estupefacta. Depois continuei a descer as escadas sem desfazer o equívoco, sem ser capaz de dizer nada, gelada.

Quem me acompanhava, ficou ainda mais admirado: 'Mas então, afinal, conhecem-se?'. Que não, que nunca antes o tinha visto ao vivo. Mas a reacção do outro ali à minha frente a falar comigo como quem fala com alguém que conhecia bem, desencadeou muitas dúvidas, 'Pois não parece'. Pois não, nem a mim. Fiquei a pensar se já o teria antes conhecido em qualquer circunstância de que me tivesse esquecido depois mas não me parece. Não percebi e ainda hoje continuo a não perceber. Quem é que ele pensou que eu era? Olhou para mim e viu uma outra. Uma sensação estranha.

Ao vivo é como o imaginava quando o via na televisão: aparentemente afável, amável, simples. No entanto, voltou a desencadear em mim a mesma inexplicável rejeição, uma profunda rejeição.

Sou leitora omnívora e no outro dia comprei o livro de um ex-casapiano que descreve a sua vida (tão triste) e como o abandono a que a família o sentenciou o tornou frágil, presa fácil. No livro ele conta o que, durante anos, se passou na Casa Pia, se passou com ele, os passeios de carro, a casa das Forças Armadas, a casa de Elvas, os abusos, o nojo, as dores, a vergonha, os medos, os silêncios.


Pois bem, aí ele conta como, de todos os que o violaram, o que mais o marcou era esta pessoa que sempre me incomodou e que naquele dia se dirigiu a mim, me cumprimentou, parou à minha frente, sorrindo, simpático.

Nem todos os monstros têm cara de monstros, nem todos aqueles que albergam demónios dentro de si têm ar demoníaco. Não. Pode conviver-se uma vida inteira com eles e nunca perceber que lá dentro há um outro.

Poderá o mesmo acontecer connosco?

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PS: Todo este caso é uma vergonha, seja sob que prisma o olhemos. Como se não bastasse toda a confusão que o rodeou, os recursos, o arrastar no tempo, a infâmia, aparece agora Carlos Silvino, o célebre Bibi, dizendo que tudo o que disse até aqui era mentira, que estava drogado quando fez as confissões. Despediu o advogado e, surpresa das surpresas, aparece a dar o dito por não dito. Nos dois livros que li com depoimentos de alunos abusados, aparece descrito com um detalhe difícil de imaginar como ficcionado, tudo o que se passou envolvendo o ex-motorista e intermediário da rede pedófila. Custa a acreditar que os miúdos tivessem inventado tudo, que as versões de todos fossem consonantes e que todos os investigadores e juízes se tivessem equivocado. Que coisa!

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Volto a este post, em Junho. A semana passada, no Expresso, Clara Ferreira Alves entrevistou Ricardo Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz no processo Casa Pia.

Diz ele, com absoluta convicção, que aposta toda a sua carreira na inocência dos nomes que foram a julgamento. Diz também que o caso da pessoa acima referida é outro em que não havia sustentação possível. E eu interrogo-me sobre se tal é possível num país civilizado. Poderá ter acontecido que, por alguma macabra razão, tudo não tenha passado de uma tremenda encenação (a mando de quem?) para incriminar algumas pessoas? Mas que as crianças foram abusadas, isso foi provado. Então por quem? Onde estão? Porque não foram acusados?

Em contrapartida, poderá ser possível que se tenha destruído a honorabilidade e a vida de pessoas, acusando-as de crimes que jamais cometeram? Que jamais cometeriam?

Em relação à pessoa em concreto que refiro acimo, posso ter sido imperdoavelmente preconceituosa?

Penso nisso e sinto-me excessivamente mal. O assunto Casa Pia incomodou-me sempre demais. Custa-me pensar em crianças que se são abandonadas pela família, que se sentem um fardo, mal-amadas, entregues ao Estado, e que seja o próprio Estado a não zelar para que tenham o carinho que lhes faltou em casa. E custa-me a pensar que alguns homens, de comportamente animalesco, busquem o prazer violando justamente essas crianças. O meu sentido maternal ressente-se, revolve-se, fico muito incomodada.

Mas eu, que geralmente, sou tão cuidadosa não me deixando levar na onda da comoção pública, não embarcando em julgamentos apriorísticos, posso ter sido, neste caso, vítima da onda de fundo que se gerou na sociedade condenando toda a gente que as crianças incriminaram?

Se assim foi, posso eu também ter pensado de forma monstruosa? É que não deve haver também monstruosidade maior do que um inocente ver-se enlameado por um crime que não praticou e que é dos mais socialmente insuportáveis. Se assim foi, imagino o que deve ter sido a vida destas pessoas, a insuportável vida destas pessoas.

Nesse caso, se com o que escrevi sobre este tema fiz sofrer alguém, as minhas muito sentidas desculpas.

terça-feira, setembro 07, 2010

Caso Casa Pia - a caverna de todos os monstros




É um dos temas presentes nesta rentrée: ao fim de vários anos, foi conhecida a sentença do Caso Casa Pia.

Segundo os mais directamente envolvidos é apenas o início de uma nova etapa pois a seguir virão os recursos. A justiça é uma indústria, uma indústria de processos.

O tema Casa Pia é um tema que me provoca uma sensação de horror e penso que, como toda a gente, tenho vontade de me afastar do horror. Se puder evitar falar ou pensar nisto, melhor.

Mas, por outro lado, sendo um facto marcante, é absurdo passar ao lado.

Referir-me-ei apenas muito sucintamente e, uma vez mais, espero não ser injusta.

Tudo o que tenha a ver com crianças me é particularmente sensível. É-me quase insuportável pensar em sofrimento de crianças. Claro que crianças a sofrer há-as por todo o lado, desde o sofrimento massivo nos países em guerra ou em estado de carência, ao sofrimento mais individual das crianças institucionalizadas e conscientes do facto de não terem família que as acolha. Mas aprendemos a abstrair-nos do que nos é incómodo. Não conseguimos mudar o mundo e aprendemos a não sofrer por isso.

Contudo, há alturas em que a realidade nos é despejada em cima como se de um balde fétido se tratasse. Foi o que aconteceu com o caso vertente. Jovens, pouco mais que crianças, desprotegidos e postos à guarda do Estado foram sinistramente usados e abusados ao longo de anos. O nome dos abusadores saíu à cena e, ao longo de anos de investigação, recursos, incidentes, questões processuais, etc, o pesadelo de provar a culpa dos abusadores foi-se arrastando penosamente, numa demonstração do que é o monstro da justiça em Portugal.

Alguns dos suspeitos, por sorte, outros por malabarismos sabe-se lá de que tipo, ter-se-ão visto livres da acusação. Mas estes poucos que se mantiveram sob suspeita continuam todos eles a jurar a pés juntos que são inocentes.

Se não soubéssemos que as perícias comprovaram aquilo que os miúdos, que o Carlos Silvino, vulgo Bibi, que o Mestre Américo, que o Adelino Granja, que o Pedro Namora e outros diziam, quase poderíamos pensar que nem houve abusos. Mas não: houve abusos sistemáticos, continuados, comprovados a vários miúdos. Por isso, alguém foi. Se houve abusos, houve abusadores. Houve abusadores e ao longo de várias gerações de miúdos. Não foram apenas esta meia dúzia de nomes: foram muitos os pedófilos que, ao longo de anos, saciaram a sua fome miserável com as vítimas da Casa Pia.

Também não me parece possível que todos, desde os investigadores, aos procuradores e aos juízes, todos se tenham enganado em toda a linha, acusando injustificadamente pessoas inocentes.

Então, como explicar a cara aberta, o peito feito, a convicção imbatível com que todos os acusados (com excepção para Carlos Silvino) continuam a clamar inocência?

Eu, que até já escrevi aqui sobre o cepticismo que sinto em relação a alguns agentes da nossa Justiça, admito que possam ter ocorridos alguns erros processuais, algumas conclusões pouco fundamentadas – mas num trabalho extensíssimo seria quase impossível que tudo fosse imaculadamente perfeito.

Mas não me parece plausível que tantos profissionais, pertencentes a diferentes organizações, ao longo de tantos anos, se tivessem concertado criminosamente para destruírem a honra, a reputação e quase a própria vida de uma meia dúzia de pessoas.

Já ouvi e li que esta é uma reação frequente nos pedófilos e, de alguma coisa que conheço da natureza humana, acredito, e espero não estar a ser imperdoavelmente injusta em relação a estes acusados em concreto, é que o acto de abusar de alguém – ainda por cima um jovem e, ainda por cima, do mesmo sexo – é um acto tão horrendo que, aos olhos dos próprios, é inconfessável.

A compulsão do desejo mórbido, a compulsão pela transgressão, a compulsão pelo poder de dominar uma vítima indefesa – e, na altura, o sentimento de impunidade – deviam levar a que uns quantos (estes que se encontram sob os holofotes ou os outros que conseguiram que o processo lhes passasse ao lado) se juntassem num esquema em que poderiam saciar essa sua fome bestial. Uma vez saciados, voltavam a ser normais, voltavam à sua vida familiar e social normal, repudiando vivamente qualquer acto do género.

No dia em que assumirem a culpa, um alçapão abrir-se-lhes-á debaixo dos pés sugando-os para a cave escura em que vivem apenas os animais traiçoeiros, famélicos, escorraçados. Os advogados que os têm defendido, a família, os amigos, toda a gente os olharará com um horror que eles não poderão suportar.

Por isso, e agora falo em abstracto, sem referir nenhum destes em concreto, imagino que mentem sem saber já que estão a mentir, mentem acreditando que estão a dizer a verdade. Os crimes hediondos que cometeram é como se não tivessem sido cometido por eles e, de tanto os negarem, já nem acreditam que os tenham cometido. Nessa luta trágica de negarem a verdade, consomem toda a sua vida, sentindo-se injustiçados, ofendidos, humilhados, colocando-se eles no papel que deveria caber às suas vítimas.

E os que sabem que abusaram de jovens e que não fazem parte do processo? O pavor que devem sentir de cada vez que o assunto volta à ribalta? Quantas vezes já terão condenado os 'violadores', esperando com isso afastar os fantasmas, orando para que a lama nunca os venha a salpicar a eles? Quantas noites não terão já passado em branco, aterrados perante a perspectiva de alguém vir a denunciá-los, ensaiando já histórias, inventando alibis, engendrando cabalas?

Mas e se, no entanto, alguns destes condenados são, afinal, inocentes? Será isso possível ao fim de tantos anos? Mas, e se for? Terá também esse crime absolvição possível?

Todo este tema, para os meninos hoje homens, para os abusadores condenados, para os abusadores que tiveram a injusta sorte de passarem ao lado do castigo, para os juristas relacionados num pesadelo destes, para todos os envolvidos, esta é uma história malvada, é uma história de cavernas escuras, de labirintos sem fim, de monstros terríveis.



(descrição na 1ª pessoa)
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