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quinta-feira, março 07, 2024

E a luta continua...

 




Hoje a labuta em casa da minha mãe foi muito produtiva. Apesar de ter estado pouco tempo pois foi lá ter connosco numa corrida junto à hora de almoço, a minha filha deu uma ajuda considerável. Grande parte das gavetas e das prateleiras dos armários já está com muito pouco ou nada.

Ainda há conjuntos de copos que lá permanecem: os meus filhos não querem, eu já não tenho onde pôr e o meu marido recusa-se a transportar. 

E a cozinha está ainda com tudo. E a despensa continua com muita coisa. E nos roupeiros e cómodas ainda há roupas de vestir, de cama, de banho. O roupeiro que está no pequeno hall junto à casa de banho está ainda compacto de coisas até acima (e o roupeiro vai até ao tecto): cobertores, turcos, lençóis. 

A solução para tudo isso será a mesma que encontrarmos para os móveis. Tenho muita pena dos móveis, alguns muito bonitos, mas não há qualquer possibilidade de os aproveitarmos, são muito grandes e não cabem em lado nenhum.

Já deitámos fora muitas dezenas de sacos de lixo. Muitos papéis, muitos, muitos, e muitas revistas, muitas (de decoração, de tricot, de crochet, de saúde e nutricionismo, etc) e muitos exames médicos. Isso deitamos nós directamente para o lixo. 

E a senhora que cuidou do meu pai e que continuou a ir ver a minha mãe e que continuo a contratar para zelar pela casa tem sido incansável. De cada vez que lá vou, deixo as camas cheias com pilhas de coisas que penso que são boas e mal empregadas para deitar fora. A primeira escolha é dela e terá já, certamente, aproveitado muitas coisas. Para aquilo que ela não quer, chama uma senhora amiga dela que lá vai ajudá-la a fazer uma segunda triagem, levando a seguir para uma senhora que, segundo me dizem, leva para a família ou para conhecidos carenciados que vivem no Alentejo.

Tínhamos lá um bico de obra que era o cadeirão com motor eléctrico que se reclinava até ficar quase como cama e que se punha para cima para ajudar no levante. Tínhamos comprado para o meu pai a seguir ao AVC que o usou durante vários anos até que, um dia, ao cair no corredor, partiu uma perna e nunca mais conseguiu recuperar, ficando acamado desde aí. O motor estava óptimo mas, ao contrário do que pensávamos, o cadeirão não era de pele mas sim de um material sintético que, de início, a imitava muito bem. O pior foi o que aconteceu com o desgaste, ficou em mau estado, todo estalado e feio. A minha mãe tinha posto uma coberta em cima e, não se vendo, parecia bem. Mas não estava. Era nesse cadeirão que, sendo muito confortável e não tendo como ser facilmente removido, a minha mãe passou a sentar-se para ler ou para fazer tricot ou crochet. 

Mas sabíamos que, por baixo da coberta, estava feio. Só que era tão pesado, tão pesado, que não se via como movimentá-lo. Tinha entrado pela janela e tinha sido uma odisseia para o conseguirem levar até lá. Pois bem: hoje o meu marido desmanchou-o todo. Todo. E, portanto, assim desmanchado, foi levado até junto dos contentores, onde a Câmara o levará para os monos. Mas, pouco depois de o meu marido lá o ter posto, quando levou mais uma série de sacos para o lixo, disse que tudo o que era ferro já tinha voado.

E a minha filha levou mais algumas coisas, mas poucas. Não tem onde pôr e não quer encher a casa com coisas que ou não ficam lá bem ou não cabem. Faz bem. 

E nós trouxemos mais uns quantos sacos grandes. Mais sacos que tenho que esvaziar, arrumando tudo o que lá está dentro. Um exercício de criatividade e logística (e paciência). 

E trouxemos um espelho muito grande que veio no carro da minha filha pois não cabia no nosso. Já tenho a casa cheia de espelhos mas o que está sobre o sofá desta sala é ligeiramente mais pequeno do que devia (135 x 80). Este tem 150 por 90 cm e uma moldura mais larga. Acho que vai ficar muito bem. E este que está agora aqui irá ser posto na vertical no hall da suite.


E trouxe um outro que fez com que o meu marido quase se passasse (aliás, ele anda já totalmente passado com esta labuta que parece que não tem fim...). Era o espelho que estava no que era o meu quarto em solteira, espelho em que, na adolescência, muito me olhei. E é o espelho que aparece naquelas fotografias do dia do casamento. Apesar do fotógrafo ser um colega da faculdade, lembro-me de dizermos: 'Espera lá, é costume a noiva ver-se ao espelho...'. E ali estou eu, em duplicado, eu e a minha imagem, com o espelho de permeio. A minha filha também achou que o espelho era icónico, que era pena não ser aproveitado. Portanto, veio. É recortado, tem um feitio bonito. Mas é de madeira escura. Se calhar, vou pintá-lo e pô-lo numa parede da sala in heaven onde já tenho quatro de diferentes feitios e tamanhos.

E encontrámos mais algumas pequenas preciosidades. Entre elas, uma redacção que fiz com 12 anos. Quatro páginas de redacção. Lembro-me de me darem o mote e eu, instantaneamente, desatar a escrever, a escrever, a escrever quase até tocar a campainha e ter que acabar. Lembro-me que, enquanto isso, alguns dos meus colegas olhavam para o tecto ou em volta sem saber o que escrever. São coisas que nascem com a gente. Em contrapartida, íamos para o laboratório de electricidade e uns montavam circuitos, inventavam aparelhómetros e sei lá que mais e eu nem pó, olhava para eles sem perceber como sabiam mexer tão agilmente em tudo aquilo.

E encontrámos mais uma folha escrita, creio que deve ser mais uma daquelas cartas do início do século passado dos primos algarvios dirigida à minha bisavó, quiçá do primo presidente, nunca se sabe. Como eram cartas entre primos ou não assinavam ou escreviam apenas as iniciais (mas como era escrito a caneta de aparo, numa letra muito desenhada, em papel fininho, mais de metade eu não consigo perceber. Digo que as cartas são deles pois, quando a minha avó morreu, a minha mãe achou a caixa com aquelas cartas e lembrou-se que a mãe dizia que era correspondência entre a mãe e os primos, creio que os da Mexilhoeira Grande.

Bem. A nível de pertences pessoais de algum valor, material ou, sobretudo, estimativo, creio que já veio tudo ou quase tudo.

A menos que no sótão surjam novidades. O meu marido só lá foi espreitar e nem quis aventurar-se. Diz que está cheio. Diz que deve haver móveis pois está muita coisa coberta. Não faço ideia do que seja, há muito tempo que não ponho lá os pés. A escada é um bocado íngreme demais para a minha sensível alma que padece de vertigens.

À noite, saturados, fomos esticar as pernas até à praia. Estava um ventinho gelado. Mas, apesar de tudo, soube bem. Fotografei uma árvore pois as árvores, ainda mais se nuas, são muito bonitas à noite. E fotografei uma bandeira de Portugal que, não sei porquê, alguém ali pôs. Não percebi mas achei bonito.

Só vi um pouco de televisão: Maryland. Muito bom, na RTP 2. A ver se amanhã e depois não me esqueço de ver. Depois também vi o comentário do Luís Paixão Martins, hoje não tão interessante como ontem. Devia ter mais tempo para melhor nos surpreender com a sua argúcia e descontração natural. O pobre Calafate bem quer ombrear com ele mas ainda terá que dar muito ao pedal e comer muito pão com azeitonas para conseguir chegar aos calcanhares do LPM. Mas, enfim, é o que é.

 E, portanto, dito isto, está tudo dito por hoje.

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Um dia feliz

Saúde. Boa disposição. Paz.

quinta-feira, outubro 04, 2018

#Philonomist.em.português.já!



Como agir quando somos a raposa no meio dos lobos? 
Num meio hostil deveremos recorrer a Maquiavel? 
O que fazer em relação ao efeito Matilde? 
As start-ups mantêm-nos na fase oral? 
O que é a destruição criativa?


Tudo magnas questões que o site Philonomist aborda, a bem de um funcionamento informado das empresas. 

Lançado no início deste mês a partir do Philomag, o Philosophie Magazine, o site visa levar a filosofia ao dia a dia das situações vividas nas empresas. Do que por lá veraneei, tenho a dizer que fiquei com pena de não ter a subscrição pois só se consegue ver uma parte de cada texto. O site é bilingue, em francês e inglês, e eu acho que deveriam acrescentar o português. Os temas parecem ser tão criativos, divertidos e oportunos que penso que o site em Portugal (e restantes países da lusofonia) teria imensa saída. É que a ideia parece-me mesmo inovadora, inesperada.

Quem não vive dentro de uma empresa pode não perceber a relevância de um site que discuta ou, pelo menos, aborde alguns temas numa perspectiva filosófica. Filosófica ou arraçada de filosófica. Para o meio empresarial vai dar ao mesmo. 

Não quero ser injusta, carregando na dose de ironia, pois o que não falta, imagino que, em especial nos grandes grupos, é gente informada, bem pensante e com sentido de humor. Isto para além dos figurões, caniches, zombies, apertadinhos, agarradinhos, divas, flausinas, faunos e demais fauna, claro. Só que, no decorrer dos dias, a mediania, o cinzentismo, os jogos palacianos e os pequenos poderes acabam por envolver com uma subtil capa tudo o que mexe. Portanto, não era mal pensado pôr a malta a reflectir. Nem que só um poucochinho.

É que ver gente a pensar é um grande acontecimento. 
Juro. Ia adorar assistir.


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Como não vou pôr-me, agora, a transcrever uma mescla de textos do dito site -- pois, em francês ou inglês, para quem não seja dado às bilínguas, a coisa pode ser maçadora -- fico-me por aqui. É tarde.

Mas, para que não venham pedir de volta o dinheiro do bilhete por acharem que assim não vale, que assim é coisa poucachinha, deixo-vos com um bailado que é de se lhe tirar o chapeau. Vejam, por favor.


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E queiram, por favor, descer para verem a beleza das mulheres embelezadas com a técnica do Kintsugi

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domingo, dezembro 31, 2017

2017
-- A vida. A beleza. O humor. O amor. --




Mas, se não faço balanços e se não me considero competente para fazer selecções do que de melhor e pior se passou no ano e, se não guardo apenas recordações boas deste ano que está a chegar ao fim, a verdade é que, apesar de tudo, tenho algumas coisas a dizer. Nada de extraordinário, claro. Insignificâncias.


Por exemplo, continuo a achar que viver é um privilégio e que não devemos fazer a desfeita de não desfrutar a vida o melhor possível. Também devo confessar que aprendi a aceitar um pouco melhor que a decadência pode ser uma parte natural da vida, a aceitar a naturalidade de, ao mesmo tempo que num quarto, o corpo de um homem, no seu leito, caminha inexoravelmente para a anulação da vida, na sala ao lado várias crianças riem e brincam rodeadas de adultos que as olham com alegria e agradecimento. Constatei -- e isso foi importante para mim -- a forma inteligente como as crianças brincam depois de terem aceitado com verdadeira sabedoria que alguém da família se foi.

Uns vão, outros chegam. Um permanente devir que tem qualquer coisa de mágico, de maravilhoso. Mesmo que, por vezes, triste, é quase sempre maravilhoso. De 2017 guardo todos os momentos em que a vida me marcou.


E, depois, há a beleza. Parte da minha vida dedico-a à procura da beleza. Diria que me alimento de beleza. Seja numa paisagem, no tronco de uma árvore, na erosão de uma pedra, no revolteio de uma onda, na quietude de um veleiro que cruza o rio, na delicadeza de uma flor, no sorriso de uma criança, numa pintura, nas cores imprevistas que afloram uma parede, numa música, numa sombra ou num golpe de luz, num voo de uma gaivota ou no de uma bailarina, num harmonioso e elegante cerzir de palavras, no canto de um pássaro ou de seres humanos, no suave curvar de uma montanha recortada no horizonte, num simples gesto. Para mim a beleza é fundamental e de 2017 guardo todos os momentos em que a beleza me tocou.


E depois há o humor. A irreverência, a insolência, a graça e a inteligência. A síntese perfeita de tudo isso consubstanciada no riso. Ou apenas no sorriso. O condimento da vida sem o qual não passo. A vida sem beleza e sem humor poderia ser muito maçadora. Procuro o humor. Sinto-me bem junto a quem me faz rir. Não tenho muita paciência para pessoas incapazes de me fazerem rir. 2017 trouxe-me bons momentos de risota. Festejo-os -- e desejo que nunca o sentido de humor me abandone.


E, depois, claro, o amor. A cola que me une àqueles que justificam a minha existência. Em 2017 como desde que me lembro de mim, o amor esteve presente na minha vida. Não há uma (uma única, quero eu dizer) forma de amor: há muitas. E tenho tido o privilégio de muito amar e de muito me sentir amada e de muitas maneiras. Não saberia viver sem isso. De 2017 guardo os gestos e as palavras de amor que para sempre ficarão guardadas no meu coração.




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Todas as histórias em que a generosidade de alguns e o trabalho pela inclusão de todos, em especial daqueles a quem a vida de alguma forma desfavoreceu, me merecem atenção e carinho e é com muito gosto que me despeço de 2017 com cinco dessas histórias.


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A primeira, a segunda, a quinta e a última imagens são obras de Sofia Bonati

A criança é uma refugiada  rohingya fotografada por Marko Djurica

O homem que contempla a natureza no Japão foi fotografado por Eugene Hoshiko

O homem-regador em função junto da mulher-flor representa o amor, o deixar o outro florescer, a necessidade de cuidados numa relação de amor e é da autoria de Wang Xingwe

Lá em cima Sabine Devieilhe e Marianne Crebassa interpretam Delibes no Duo des fleurs da ópera Lakmé

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E 2017 foi um ano bom para mim também por uma outra razão: o número de visitas a Um Jeito Manso continuou a aumentar e isso é, para mim, muito recompensador. Estar aqui a escrever e sentir que, do outro lado, está alguém que gosta de ler as minhas palavras deixa-me confortada, agradada. A todos quantos aqui me acompanham deixo o meu sentido agradecimento. 

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Penso que ainda aqui voltarei antes que 2017 acabe mas, pelo sim, pelo não, vou já adiantando que a todos desejo que 2018 venha com saúde, sorte e alegria. 

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domingo, maio 15, 2016

A primeira noite de amor




Foi de uma grande tristeza para Pedro entrar na que tinha sido uma das mais amadas casas da família. Lembra-se de, desde sempre, ali se reunir o núcleo mais chegado: avós, tios, pais, irmãos, primos. Ao longo dos anos, uns foram partindo, outros chegando. Pelo natal era ali que se juntavam. Muitos baptizados ou aniversários ali eram festejados. Depois resolveram abrir a casa a eventos da empresa mas, para ele, isso era apenas alargar o núcleo que podia apreciar aquele ambiente tão acolhedor.

Quase lhe parecia impossível caminhar por aquelas salas e pensar que ali vivia agora uma outra família. Estava enervado, num estado de grande ansiedade. Clara ia a seu lado e isso era um apoio sem o qual ele talvez não conseguisse seguir em frente.

Foi-lhe doloroso. 

Os novos donos da casa foram simpáticos. Falavam um português atravessado e explicaram que viveram algum tempo em Macau. De vez em quando apoiavam-se na língua inglesa. E sorriam muito. Sendo pessoas de outra cultura, não deixaram, contudo, de demonstrar uma certa compreensão pela situação. Deixaram que Pedro fosse até à biblioteca, deixaram que passasse as mãos pelos livros, que estivesse o tempo que quisesse. Mas foram claros: tudo o que lá estava fora comprado por eles, a casa e o conteúdo, frisaram várias vezes. 

Pedro estava demasiado tenso e frágil para poder contestar. De resto, o que diziam era verdade - por isso, contestar o quê? Restava-lhe pedir. Mas, para pedir, tem que se ter estrutura para aguentar um não e ele não a tinha. Clara tentou uma outra abordagem sobre a qual já tinha, antes, conversado com Pedro: não estariam disponíveis para fazer uma doação à vila? Ficariam muito bem vistos junto da comunidade. A ideia apanhou-os de surpresa mas continuaram inflexíveis: a biblioteca fazia parte do seu património.

A meio tocaram um sino. Maria de Lurdes apareceu, cabeça baixa. Perguntaram o que Pedro e Clara queriam. Pedro pediu água, Clara um chá. Eles também pediram chá. Passado algum tempo, Maria de Lurdes apareceu com o tabuleiro. Trazia dois bules, um com um chá para os senhores e um outro para Clara. As lágrimas assomavam-lhe aos olhos quando apontou o bule e, com a voz presa, disse a Clara, 'Flor de laranjeira'. Trazia também uma cerveja mas, quando ia dizer qualquer coisa a Pedro, não foi capaz, tapou a boca, e saíu apressadamente da sala, certamente para não chorar abertamente à sua frente. Pedro foi até à janela e ali ficou por um bocado, talvez para que não vissem os seus olhos.

Depois despediram-se. Clara agradeceu. Pedro também. 

Clara perguntou a Pedro se não queria despedir-se de Maria de Lurdes. Ele disse que não. Clara não insistiu. Sentia que o coração de Pedro estava infeliz e que os laços que o uniam ao corpo e à mente eram cada vez mais frágeis.

Andaram a pé durante um bocado até que, sendo já tarde, entraram no carro. Clara ligou o rádio. Pedro ia a seu lado, o olhar perdido.

Perguntou se não queria que jantassem juntos. Pedro não quis. Saíu do carro e caminhou como um pobre velho. Clara chamou-o. Ele demorou a olhar para trás. Depois virou-se. Clara disse-lhe: Pedro, um dia as coisas vão mudar. Não desista. Amanhã venho buscá-lo e vamos ver o mar. Pedro nada disse. Clara fez-lhe adeus. Pedro disse apenas Obrigado.

Clara ficou ali um bocado parada. Depois arrancou. Todo o caminho chorou. 

Quando chegou a casa, sentia-se esgotada. Despiu-se, tomou um prolongado duche, comeu iogurte, cereais, fruta. Depois afundou-se no sofá. Não sabia que mais sugerir a Pedro para lhe dar força para se erguer. Sabia que a cada dia que passava novas provações ele tinha que passar: acusações, processos, interrogatórios, inquirições, investigações que o deixavam arrasado, sem esperança de alguma vez poder voltar a  ter uma vida normal. De facto, Clara não sabia onde arranjava Pedro forças para continuar a aguentar aquele permanente remexer em memórias que ele desejava esquecer ou a reconstituir ocorrências que agora lamentava.

Era já tardíssimo, quando conseguiu adormecer.

Devia ter passado pouco tempo, ouviu o telemóvel. Sobressaltada, levantou-se. Pensou logo que alguma coisa de muito má devia ter acontecido. O coração batia-lhe descompassadamente, nem conseguia pegar no telemóvel, toda ela tremia. Temia ouvir a notícia que há algum tempo receava

Quando viu um número desconhecido ainda mais se assustou. Por fim, atendeu. Uma voz feminina desconhecida. Contudo, o sotaque fê-la reconhecer: era a mulher chinesa da casa da vila.

Clara quase se acalmou, pensando que se calhar era alguma notícia má relativa a Maria de Lurdes. A mulher disse: Pedi ao nosso advogado o seu contacto. Ele não queria dar. Disse-lhe o que era, pedi muito. Então deu. Desculpe estar a telefonar a esta hora. Não quis esperar. Queria dizer a si que tive muita pena do senhor. Pensámos no que disse. O meu marido não queria. Mas agora aceitou. Quero falar consigo. Vamos oferecer a biblioteca à vila. Queria pedir que a senhora nos ajudasse. O Senhor Pedro vai gostar. Ele pode ajudar. 

Clara sentiu que um arrepio a percorria, sentiu-se a tremer, sentiu que, de novo, os olhos se enchiam de lágrimas. Agradeceu muito, muito, disse que eram boas pessoas, que a vila ia ficar agradecida, que era um gesto muito bonito. E combinou ir lá no dia seguinte e outra vez obrigada, obrigada, senhora, obrigada também ao seu marido.

Depois enfiou umas calças, uma camisola, calçou uns sapatos e, a correr, meteu-se no carro e dirigiu-se a casa de Pedro. Quando ele abriu a porta, ar cansado, muito envelhecido, Clara abraçou-o, muito. Contou-lhe. Ficaram abraçados.

Nessa noite fizeram amor. De amanhã, ainda estavam abraçados.

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Este episódio vem no seguimento de 'Bater no fundo' que, por sua vez se sucede a outros cujo caminho lá poderão encontrar. E continua com 'De quantas camadas de pele tem um homem que se despir até que os outros percebam que está em carne viva?'

(Tenho que arranjar nome para esta história para depois a poderem encontrar através da lista das etiquetas.)

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Lá em cima Milica Ilic (soprano), Victoria Lambourn (mezzo soprano) com a Tasmanian Symphony Orchestra conduzida por Andrew Greene, interpretam o Flower Duet de Lakmé de Léo Delibes

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Abaixo poderão encontrar a minha opinião sobre o texto de Fernanda Câncio sobre o Caso Marquês e ela .

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