O que é a poesia? Poder-se-ia redigir como se fosse prosa e continuar a ser poesia? Tem a ver com a forma como se lê? As pausas, a melodia da ligação entre as palavras? Ou não, é poesia mesmo quando espera, silenciosamente, que alguém a leia? Ou o que a distingue da prosa são as ideias destiladas, marcadas pelo silêncio e pela intemporalidade?
Não sei.
Que venha alguém defini-la. Eu não sei.
Soube da morte de Nuno Júdice e fiquei abalada. Não sabia que estava doente. Li que morreu de cancro, no hospital. Quem morre assim, creio eu, morre sempre da mesma maneira: a debilidade a tomar conta do corpo, o tempo a esvair-se. Estaria provavelmente no corredor que quase me apetecia apelidar de corredor da morte, aquele em que já não se trata da cura mas, tão-só, do bem estar, do bem-estar possível, do alívio... Provavelmente a família passou pelo mesmo que eu, e provavelmente toda a gente que acompanha doentes nestas circunstâncias, querendo transmitir alguma esperança ou optimismo mas não sabendo como, pois estamos formatados para não mentir, muito menos aos nossos pais ou àqueles que amamos. E ele provavelmente a ver que os familiares queriam encontrar palavras de ânimo e a saber que essas palavras já não faziam falta.
Quando morre uma pessoa que está nessas circunstâncias, aqueles que os amam pensam: 'descansou', 'já não sofre mais'.
Terá acontecido também com ele. Descansou. E o descanso de um Poeta é sempre inegavelmente merecido pois, ao longo da vida, um Poeta semeia, planta, apara, oferece ao mundo poemas que são flores que não morrem, que para sempre acompanharão os que ainda cá estão e todos os outros que vierem a seguir.
Numa sexta-feira, dia 22 de agosto de 2008, pelas 10:26 da manhã, Nuno Júdice escolheu a imagem abaixo e publicou o poema "Domingo no campo". Escolho-o ao acaso entre tantos mas deixo o caminho para muitos outros: A a Z
E se eu estava a precisar de dormir até vir a mulher da fava rica. Mas não. Cedíssimo, sozinha na cama -- que o meu marido (felizmente) madruga -- comecei a ouvir uns ruídos não identificados. Tentei apurar o ouvido mas não consegui reconhecer que sons eram aqueles. Depois comecei a ouvir a voz do meu marido. Falava. Mas só ouvia a voz dele. Ouvi: não encontro a chave. E ouvia mexer em chaves. Passado um bocado, ouvi um batalhão de homens no corredor, a passar-me à porta do quarto. Nada de novo a não ser que não esperava que viessem tão cedo. O meu marido tinha-me dito que eu podia dormir porque eles iam lá para cima, não me incomodariam.
Eles eram os homens que vinham arranjar o tecto da parte antiga da casa, uma parte onde estavam os quartos dos meus filhos e uma pequena saleta, parte esta que hoje é pouca usada. Quando choveu mais, notámos que a escada de pedra estava molhada, vinha água desde lá de cima. O tecto, que é de madeira, precisava de ser levantado numas partes.
Acontece que a porta da rua que daria acesso quase directo a essa parte da casa é uma porta que há anos não é usada.
O senhor que volta e meia vem cá fazer arranjos e que vinha com mais dois, tinha-se lembrado que dava jeito entrarem por essa porta e não pela habitual para não terem que atravessar a casa com escadote, madeiras, ferramentas e, então, tinha vindo mais cedo para limpar as teias de aranha que se tinham formado do lado de fora e era esse o ruído, de uma vassoura a raspar na porta e no telheiro, que me tinha acordado. E o meu marido andava a experimentar chaves do lado de dentro e ele do lado de fora. Por isso só ouvia a voz do meu marido (que, às tantas, dizia que, era uma chatice, mas que a chave se deveria ter perdido).
Só que, às tantas, já depois de ter deixado de ouvir a voz do meu marido, ouvi a voz do tal senhor a dizer para um dos que o tinha vindo ajudar: olha lá, se for preciso, sabes rebentar o canhão de uma fechadura?
Aí, dei um salto da cama, enfiei a roupa às três pancadas, fui à gaveta onde tenho o molho completo de chaves da casa e fui experimentar. Uma era a daquela porta. A seguir cruzei-me com o senhor e acho que nem o cumprimentei: Já abri a porta. Viu o meu marido? E ele: se calhar já foi lá para baixo.
Fui à rua: estava com aquelas proteções nas pernas, a roçadora ao ombro, e ia lá para baixo. Já devia ter andado nos seus passeios ultra matinais pelos campos, veio a casa para abrir a porta aos homens e agora ia roçar o mato nascente. Ficou admirado por me ver: o que é que aconteceu? E eu: Achas que se consegue dormir com aquela barulheira? E se não me tenho levantado à pressa ainda destruiam a porta. Já encontrei a chave, já lhes abri a porta.
Não ligou. Está um camponês. Ia para a sua lida. Disse-me que também já tinha andado a cortar ramos altos com aquele serrote telescópico que o filho lhe ofereceu. Deve ter-se levantado às seis da manhã.
Entretanto, já os homens estavam a entrar e sair pela porta que não era aberta há anos, e muito barulhentos, uma algazarra pegada.
Portanto, acordei cedo e sobressaltada. A seguir, depois do meu marido ter cortado tojo e silvas, e de eu ter dado um breve passeio, fomos ao supermercado.
Ir ao supermercado à vila mais próxima é, para mim, um exercício de paciência. Tudo muito lento. Por exemplo, quase não há carne embalada. Tem que ser no talho mas há sempre umas vinte senhas à frente. E o pior é que cada pessoa leva carradas de carne, tudo cortado na hora. No peixe é a mesma coisa. Com a agravante de as empregadas serem vagarosas, cumprimentarem toda a gente, estarem a arranjar o peixe na calminha enquanto olham para as clientes, e conversam umas com as outras e com as clientes, tudo no maior vagar. Um desespero.
Regressámos. Fiz uma máquina de roupa, fiz arrumações. Por volta da uma, eles acabaram o trabalho. Mas o senhor, o principal, disse que voltava depois de almoço para acabar lá uma coisa.
Entretanto, também já tinha feito o almoço: pescada fresca cozida com batata, cenoura, feijão verde, ovo.
O meu marido tinha trazido um queijo de ovelha e, quando o abriu, achou que cheirava mal. Cheirei. Cheirava a curral. Talvez demais. O meu marido disse que era impossível comer um queijo que cheirava a m... Se tivesse sido mais barato, ia para o lixo e está a andar. Mas tinha sido caro e, sobretudo, era uma questão de princípio. Por isso, contrariado e irritado, foi ao supermercado.
Eu estava KO: deu-me um sono brutal. Pensei: vou deitar-me lá fora, na espreguiçadeira, e dormir um bocadinho.
Como o senhor tinha dito que voltava, fiquei em casa, foi só ele. Pensei: o portão está aberto, o senhor sabe o caminho e talvez nem venha já, vou deitar-me ao sol, vou dormir.
Tinha eu acabado de arranjar a espreguiçadeira, toca a campainha. Era o senhor. Resolveu não entrar sem se fazer avisar. Começou a conversar. E a conversar. E a conversar. A contar-me dos filhos, dos netos, dos primos, dos cunhados, de um comendador que era dono de uma fábrica noutra aldeia e que tinha filhos de duas camadas, da primeira e da segunda mulher, e do que tinha uma oficina e da professora que tinha um portão eléctrico e que o tinha chamado. E.... e... e... . Eu mal me tinha de pé, perdida de sono, exausta -- e ele, uma simpatia, a falar em contínuo. Por fim lá pegou na escada e lá foi completar o que cá o tinha trazido.
Sentei-me na espreguiçadeira a ler. Achei que, com ele por ali, não devia deitar-me. Passado um bocado chamou por mim. Estava em cima do telhado. Tinha reparado que o solho no que antes era o quarto do meu filho, na direcção da escrivaninha, estava mais escuro, prova de humidade. Então tinha ido ver o telhado. Disse-me que havia ali uma zona que precisava de ser impermeabilizada. Eu pensava que ele se deveria estar a referir ao chão de madeira, ao soalho. Nunca tinha ouvido chamar solho ao soalho mas agora já vi no dicionário que, de facto, se pode dizer. Aprendo imenso com ele, imenso mesmo.
A questão é que espertei. Quando estou perdida de sono e não consigo dormir, depois já não consigo.
Quando o meu marido regressou, estava ele a sair. Fui para dentro, recostei-me no sofá, comecei a ler e pensei que ia adormecer. Mas não adormeci.
Li. O livro, interessante. A ver se amanhã falo dele.
Depois fui caminhar, fotografar. A lua branca, já por metade. Translúcida, num céu límpido. A vaporosa florzinha do eucalipto. A casca de ovo muito branca, partida ainda de fresco, com outro bocado de ovo lá ao pé. Não sei a que pássaro poderá pertencer. Tão grande. Não é um ovinho de passarinho. Menor que o ovo de uma galinha mas maior do que os ovos de passarinho que costumo ver nos ninhos. E tão branco. E o gato amarelinho que me olhava de longe, um gato silencioso que me observa enquanto ando e que me deixa sempre surpreendida pois não sei de onde vem nem para onde vai (aquela velha questão mas agora aplicada ao gatinho cor de mel). E a flor encarnada, linda. E o bicho espantoso, também encarnado mas com efeitos em preto e branco, espectacular, um daqueles seres vivos que se vêem e em que não se acredita. E um outro pinheirinho despontando numa outra rocha. E tudo tão bonito e sereno.
E fiz o tapete (desforrei-me a fazer enquanto o meu marido via o seu Sporting a ser campeão de uma Liga de que eu nunca tinha ouvido falar, a Liga de Inverno. Ainda lhe perguntei que liga era aquela mas limitou-se a responder: esquece, não ias perceber e eu não insisti porque sei que não ia mesmo perceber), e li e vi televisão. Ainda não adormeci mas já estive várias vezes quase. Espero dormir bem esta noite. Estou mesmo, mesmo, mesmo, a precisar de dormir muito porque sei que a semana que aí vem vai ser de me deixar a rebentar pelas costuras e, se não recarrego baterias, nem sei como vai ser.
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Mas queria era falar de um livro novo. Não do que estive hoje a ler mas de um outro, um muito bonito, com poemas manuscritos. Eu que gosto tanto de estudar a escrita caligráfica das pessoas fiquei logo rendida ao livro.
Não faço aqui a análise porque seria deselegante fazê-lo mas mostro-vos a do Daniel Jonas (uma letra que me agrada muito e que me deixa contente pois gosto muito da poesia dele) e a do Nuno Júdice (uma letra que espelha bem a pessoa que penso que ele deve ser)
Fotografei os livros que comprei a semana passada (uma pequena recaída) em cima do tapete que estou a fazer na cidade. Se comparem com a fotografia de há dois meses até parece que não andei muito mas, como já referi, como a barra é quase da cor da juta, na altura não reparei que boa parte do preenchimento da barra estava por fazer. Agora já está todinha e já vou para aí num quarto do preenchimento do fundo (a azul escuro).
No post abaixo falei do Ébola e da forma - que parece óbvia - como este terrível vírus deve ser travado. Hans Rosling (outra vez ele), com os seus gráficos, é claro quanto a isto.
Mas isso é a seguir. Aqui, agora, quero falar de um tema que já é de há uma semana ou mais e do qual não falei porque o meu tempo é escasso e os temas sobre os quais me apetece falar nem sempre são os que flutuam sobre a espuma dos dias.
Leitor atento (e atencioso) a quem muito agradeço enviou-me um texto publicado num blogue de que eu nunca tinha ouvido falar.
[Há milhares de blogues! Não sei como se consegue ter uma ideia de quantos, quais, de que é que vale a pena. Provavelmente não se consegue mesmo, vão-se descobrindo pouco a pouco. Volta e meia vou parar a alguns que pouco mais têm do que passarinhos e gatinhos e florzinhas e ideiazinhas de perlimpimpim - e fico espantada. Penso cá para mim: Mas porque é que alguém se dá ao trabalho de fazer uma coisa assim? Mas não deveria pensar. A blogosfera é uma porta aberta para um mundo infinito e toda a gente é livre de dizer o que lhe vai na alma; e um passarinho a ter pensamentos floridos pode dizer mais a algumas pessoas do que um texto chato e comprido sobre o salário mínimo como o que me palpita que vou escrever.]
Adiante.
O artigo que me foi enviado chama-se A direita punitiva desconhece o fundamento do salário mínimo nacional, é da autoria de Isabel Moreira e o blogue o Aspirina B.
É um tema que me é caro, o da mão de obra barata. (Dito assim até parece um trocadilho a la Teresa Guilherme mas não é um trocadilho, é a verdade)
Song for my brother
Avishai Cohen with strings
No âmbito do programa de formação anual que tínhamos na empresa, participei durante uns anos num Jogo de Gestão que creio ser patrocinado, na altura, pela Cegoc e por mais umas quantas empresas. Mais tarde fiz o Jogo de Gestão da Católica que era parecido, senão igual, ao anterior.
O princípio é sempre o mesmo. Cada equipa é como se fosse uma empresa e as equipas devem ser constituídas por elementos que tenham as valências de gestão que existem nas empresas. Na minha equipa tinha vários colegas meus.
O jogo consiste em tomar decisões a vários níveis sobre a gestão da empresa, sendo que nos é dado que estamos a actuar no mercado de um certo produto (automóveis, por exemplo) e relativamente ao qual nos é fornecido material de base como estudos de mercado, estudos estatísticos relativos à população, etc. Temos, no decurso de cada jogada, que decidir que produtos vender (gama alta, média, baixa, por exemplo), que quantidades se admite que se venda de cada produto, quanto se gasta em publicidade, quantos vendedores se quer ter, quanto se paga ao pessoal, se vamos gastar dinheiro em formação ou não, se vamos formar turnos ou reduzir pessoal, investir ou não investir, com capitais próprios ou financiamento bancário, etc, etc. Ao fazermos isso, vamos obtendo como que uma antecipação de resultados, aquilo que nas empresas designamos por um forecast.
Depois de todas as equipas em jogo (que, portanto, é como se fossem empresas a actuar no mesmo ramo de negócio) fazerem as suas jogadas, o computador simula as consequências e a seguir recebemos os resultados.
Quando recebemos os resultados vemos se conseguimos se ficámos atascados em stock, ou se, pelo contrário, vendemos tudo e entrámos em ruptura (nesse caso, os clientes vão à procura de alternativas e perdemos quota de mercado), se tivemos lucro, se os trabalhadores estão satisfeitos ou se fizeram greve (e nesse caso reduziram a produção), qual a percepção que o mercado tem de nós, etc. Tudo medido e sopesado, é feito um ranking das empresas e inicia-se nova jogada.
Escusado será dizer que gosto imenso destes jogos. Para além do objectivo do jogo em si, há a alegria de jogar, toda a gente opina, discute, quase anda à tareia, e conta anedotas, e eu, claro, farto-me de rir.
Um dos meus colegas é um somítico do caraças e portanto, quando jogava, só queria cortar nos custos (menos vendedores, menos pessoal, ordenados baixos, menos prémios de produtividade, menos formação); outro é um optimista enervante e vá de expandir à maluca, mais fábricas, mais escritórios de venda, campanhas na televisão como se não houvesse amanhã (e caras como elas são!); eu, por exemplo, tendo a preferir ter um produto gama alta, dinheiro para investigação, formação e marketing para cima, vendas em números reduzidos mas preço de venda alto.
Todas as estratégias são possíveis assim como a combinação delas. Claro que cada uma delas não é boa de per se pois tem que ser vista em perspectiva face ao posicionamento das outras empresas. Se eu apostar num produto tipo linha branca e as outras empresas também, ficará o mercado inundado de fancaria, a preço da uva mijona, sobrando stock que nunca mais acaba.
Ou seja, a melhor estratégia será a que vai crescendo, com inteligência e consistência, a partir das diversas interacções das empresas presentes no mercado.
Uma coisa é certa: raramente é bem sucedida uma empresa que aposte na indiferenciação, nos custos espremidos, na exploração da mão de obra barata. Para isso, haverá sempre concorrência com fartura e os trabalhadores só não mudam de empresa se não puderem, e têm baixos níveis de motivação e de produtividade. Quando íamos na cantiga do meu colega forreta, tínhamos sempre os trabalhadores à perna, greves e baixos níveis de produtividade e tínhamos sempre os nossos concorrentes com produtos mais apetecíveis e vendedores mais motivados.
Em contrapartida, com o meu colega mãos largas, ficávamos com produto excedente e um endividamento de três em pipa que nos impedia de ter dinheiro para as matérias primas ou pagar ao pessoal.
Estes jogos são réplicas da realidade.
Sei bem do que falo.
É bem sucedida uma empresa em que haja um bom equilíbrio entre todas as peças que contribuem para o resultado e para a sustentabilidade da empresa.
É essencial haver uma estratégia bem definida e flexibilidade para a ir adaptando, é essencial que todos saibam bem qual o seu papel e se sintam valorizados, é essencial que se entenda que uma empresa é um organismo vivo, em que a vontade e o saber das pessoas é o que mais conta.
Se o produto pode ser diferenciado, deverá sê-lo; se não, então é o serviço que deverá ser valorizado.
Empresas que apostam no sacrifício dos trabalhadores, nos trabalhos forçados, nos baixos salários e nas fracas condições, são empresas condenadas ao fracasso. Podem conseguir contratos, à peça, para outras marcas, mas são empresas a prazo, empresas que, faltando-lhes as encomendas dos clientes para quem trabalham a façon, se vêem obrigadas a fechar portas.
Admito que no pequeno comércio, em que a subsistência mal é garantida para o patrão quanto mais para os empregados, não haja como pagar mais do que o salário mínimo. Mas isso apenas deveria acontecer em situações quase marginais, de comércio de subsistência.
Sei também como é perversa esta coisa do outsoursing, dos call centers e de todos esses negócios terceiro-mundistas em que se exploram as pessoas até à última pinga de suor. As empresas, querendo aliviar os seus próprios custos, suprimem os seus postos de trabalho trocando-os por subcontratação. Claro que isso só é rentável para quem contrata se pagar menos do que o custo de ter pessoal próprio. Ora, atendendo a que a empresa contratada também tem a sua margem de lucro, isso só é possível se se pagar muito pouco a quem trabalha.
E há as enormes cadeias de supermercados em que, apesar de todos os bons rácios económicos, pagam miseravelmente às pessoas que estão nas caixas de supermercado. Poderia fazer algum sentido se pensasse que é uma forma de, por exemplo, os estudantes ajudarem ao pagamento dos seus estudos, um part time. Contudo, o conceito foi subvertido e o que acontece é termos lá gente formada que tem que se sujeitar a isso por não arranjar outro trabalho.
Ter parte da população a viver com um salário mínimo tão miserável não é apenas uma questão humanitária, ou, pelo menos, não é apenas uma questão directamente humanitária em relação aos abrangidos: é uma questão mais ampla. Quem recebe tão pouco, não paga impostos. Logo, outros terão que pagar por eles. Quem recebe tão pouco, pouco consome, logo o pequeno comércio local sairá lesado, quem recebe tão pouco, se puder emigra (e, logo, não paga cá impostos), quem recebe tão pouco, se estiver em idade de ter filhos, se calhar não os tem. Enfim, mil outros argumentos eu poderia aqui referir para evidenciar como um país não se desenvolve com parte da população a viver no limiar da pobreza e todos, mesmo os que mais ganham, pagam por isso.
Uma sociedade que vive assente em atitudes miserabilistas e com uma vistas curtas não é uma sociedade justa e feliz.
Um país que se deixou esventrar, acabando com a sua indústria a troco de patacos ou que, em vez de aproveitar os fundos europeus para se modernizar, os usou para os meter ao bolso, é um país de gente idiota.
Empresários de faz de conta, gestores de meia tigela, governantes ignorantes, uma elite política abandalhada. E uma comunicação social maioritariamente nas mãos de vendedores de produtos da loja de 1€ que esvaziam a cabeça do público de manhã à noite. Quando vejo a programação da televisão generalista, lixo e mais lixo, quando vejo os analfabetos que as televisões por cabo convidam para opinar sobre tudo e mais alguma coisa, quando vejo que fecha uma empresa aqui, outra ali, e toda a gente já acha normal, quando vejo a gentezinha fútil e de cabeça oca que pulula nas comissões de inquérito do parlamento ou que discursa como se soubesse alguma coisa da vida, tenho vontade de que alguém faça uma série de disparates que abane este miserável e estagnado status quo.
Não falo em violência física mas actos simbólicos que atrapalhem ou envergonhem os visados, como aqueles que também já caíram em desuso, de se cantar o Grândola ou o Acordai ou desatar a rir quando todos esses idiotas falam (ou coisas do género).
As elites são uma desgraça. Aos anos de negrume seguiram-se anos de euforia, aos anos de euforia seguiram-se anos de quebranto, a esses sucederam-se os de mediania, depois os de mediocridade. E abulia. E para aqui estamos, a cabeça entre as orelhas, mais espantalhos do que gente, aceitando tudo, tudo.
Simon O'Connor
Comecei a escrever isto a propósito do miserável aumento do salário mínimo de que um badameco falando em nome da Comissão Europeia (nos estertores de um cherne fora de prazo) disse ser umsinal errado - e de que os papagaios de serviço passivamente logo se fizeram eco.
Em vez de termos um primeiro-ministro e um presidente da república que mandassem esses palermas de Bruxelas meterem-se na vida deles e na da prima deles e que tivessem vergonha na cara pois não sabem o que é viver com 500 euros por mês - e que o dissessem com todas as letras e em linguagem muito pouco de salão - o que tivemos? Pois bem, uma vergonha: meio mundo a papaguear, a carpir ou a tirar partido do que umas nulidades pagas a peso de ouro resolveram bolsar.
Raios partam esta praga de inúteis que nos rodeia.
Bem podíamos era escrever por todo o lado Save the portuguese a ver se alguém nos acudia já que nós próprios parece que gostamos de ser os carneiros mal mortos deste filme de quinta categoria.
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Isto já para não falar nos sindicalistas ineficazes e igualmente inúteis que nos calharam na rifa.
E já também para não falar neste hábito de comadres que temos, cada um para seu lado, uns a fazerem, outros a desfazerem.
by Banksy
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Adiante.
Estive a tirar fotografias a livros novos que estão aqui a desafiar-me e tinha ideia de apresentá-los um a um, transcrevendo um bocadinho de cada; mas passa da uma e meia da manhã e eu não descansei o suficiente durante o fim de semana e ando cheia de sono. Por isso, por agora, fica apenas a fotografia geral.
A Crise
- Não é caso para ter razão, disse o racionalista.
- Também não é caso que faça impressão, respondeu o impressionista.
- Talvez seja caso para duvidar, disse o agnóstico.
- É mas é caso para acreditar, gritou o crente.
- Se for caso é casual, comentou o materialista.
E quando o criado chegou à mesa com o vinho,
já todos estavam à pancada.
- Eu bem disse que isto acabava mal, suspirou o pacifista.
[de Nuno Júdice inO fruto da gramática]
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Relembro: o tema que se segue não é muito mais animador mas, ainda assim, acho que deve ser levado em atenção. O ébola deveria ser atalhado nas próximas semanas. Hans Rosling explica porquê.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.
No post abaixo, que muito vivamente recomendo que não deixem de ver e ouvir, mostro a cerimónia durante a qual Cate Blanchett discursa ao receber uma título honorífico numa universidade em Sydney.
Mais abaixo ainda, mostro a actriz Lupita, muito justamente considerada uma das mulheres mais belas do mundo, falando da sua vocação.
Mas isso é a seguir. Aqui, agora, apetece-me falar do outono. Ando com uma pendência mas é assunto tão fétido que me custa deitar-lhe a mão.
Por isso, permitam que vos conte do outono in heaven.
Vamos com música, por favor.
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O portão grande é o palco onde a glicínia exibe a sua volubilidade de mulher. Umas vezes florida, toda ela lilás, outras verde, outras dourada como agora. E, conhecendo-a como a conheço, mulher dada a despudores, não tarda tê-la-ei nua, enleando-se, tentadora, no varão do portão, no coração de quem por aqui ousa entrar.
O outono é a estação erótica, com os seus frutos de água, as florestas nascidas de um incêndio de seios, os rios engrossados pela chuva do desejo.
Este anos quase não houve dióspiros, o fruto do desejo, carne macia escorrendo em doçura. Este último rebentava, suculento, pedindo a minha boca. Fotografei-o e depois, gulosa, comi-o.
As uvas estavam cheias de mel e ouro, felizes e ternas sob esta luz suave de outono. Fiquei-me a olhá-las como se nelas residissem todos os segredos do universo. Depois também as comi e, quando as tinha já dentro de mim, pensei que dentro de mim, estavam, então, todos os segredos do universo. E que o mel e a luz que as dourava iria correr nas minhas veias, inundar o meu coração.
Eu podia alimentar-me de frutos, de bagas, de queijo, de mel, de pão, de vinho, de luz, de palavras.
Por esta altura os medronhos começam a ficar macios, derretem-se em doçura na boca. Depois olho os que ainda não encarnaram e penso que, se os deixo, os pássaros vão chegar antes de mim. Mas, também por isso, deixo-os. Sei que quando lá voltar já não os encontrarei mas esta terra é mais dos pássaros do que minha.
E há os milagres, a natureza que se antecipa. A nespereira esconde as flores que, em pleno outono, já despontaram.
Desde pequena que sou doida por nêsperas. O meu avô tinha uma nespereira enorme no quintal e trepava lá bem acima para ir buscar as mais carnudas para mas dar. Desse tempo, guardei o ferro com ponta arredondada com o qual ele puxava os ramos para conseguir apanhar a fruta que estava mais alta. Quando ele morreu, pedi ao meu pai que guardasse esse ferro para mim. É com ele que tantas vezes puxo as nêsperas que vêm sorrindo juntamente com a recordação desse meu avô, tão amigo.
A grevílea robusta continua a crescer. Está quase uma jovem adolescente, espigada, frágil.
Tenho contado isto muitas vezes e aqui tenho dado conta do seu crescimento.
Conto de novo: num dia de vendaval, a árvore original partiu-se, ficou um tronco triste, quebrado. Tive um grande desgosto e não deixei que o meu marido a cortasse, tinha esperança que voltasse a despontar. Mas era triste demais para ficar assim, sem vida, e o meu marido serrou-a junto ao chão. Até que no ano seguinte, para nossa alegre surpresa, percebemos que um pequeno rebento surgia junto ao tronco.
Desde então o meu marido tomou-a a seu cuidado, pequeno ser perfilhado. Rega-a no verão, vigia-a. E ela, sentindo-se estimada, vai crescendo. Temo sempre por ela, quando o vento sopra com força. Mas talvez seja mais forte do que parece com as suas folhas de renda macia.
E, por falar em renda, vou andando pelo campo e fotografo o que, em tempos, foi um saco de ráfia que guardava adubo. O tecido vai-se desfazendo, alourando, e eu gosto de o ver, fundindo-se com a caruma, com o musgo, com a terra, regressando à sua origem, ao seu destino.
Conto cada um dos seus dias por uma tabuada de expectativa. Estendo os minutos na tábua de engomar das emoções; e vejo-os dilatarem-se com o calor até uma eternidade efémera que a alma absorve, como se fosse o seu destino.
Aprendo a vida pelas folhas caídas das árvores. Deito-me sobre elas, até sentir a humidade da terra; e o teu corpo materializa-se num puro impulso de fêmea, soltando-se de entre as páginas do campo, ainda fechadas, como se o livro das estações mantivesse a sua virgindade no ciclo natural do tempo.
Vejo-te, então, à transparência das palavras, sacudindo os cabelos de cima dos ombros, num vento de vertigem.
As aves da noite caem dos teus olhos, com a branca humidade dos muros.
Roubo-te aos lábios um bater de asas; e o ritmo pontua o verso com que respiras.
À minha frente, para lá do meu bocado de terra, tenho o espaço imenso, o horizonte que os meus olhos tocam mas as minhas mãos não. A serra ao longe vai ficando azul e o azul vai cobrindo, como um veludo, as árvores, as terras, as casas ao longe.
Por vezes, ouve-se o estampido de um tiro longínquo, um cão que ladra, os pássaros que piam quando a noite começa a tombar, as folhas que dançam, um gato que corre, furtivo. Por vezes também, passa no ar o perfume de uma lareira que se acendeu, o cheiro fértil da terra húmida, o perfume dos pinheiros.
E eu sinto-me um bicho, e queria saber o silêncio, a doçura, o cheiro dos animais inocentes que aqui habitam, queria ser tão inocente e feliz como eles.
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A música é Serenade de Schubert
Os textos em itálico compõem o primeiro de Oito fragmentos de Nuno Júdice in 'O fruto da gramática'
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Permitam-me que relembre que, descendo um pouco mais, poderão encontrar um vídeo imperdível, um excelente discurso de Cate Blanchett, um discurso que deveria passar a toda hora nos locais onde Passos Coelho e a sua troupe estivessem, a ver se aprendiam alguma coisa. Mais abaixo ainda, poderão ver uma outra mulher igualmente bela e que vai a caminho de ser igualmente talentosa, a bela Lupita.
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E, assim sendo, ainda não foi hoje que me debrucei sobre a D. Cristina Ferreira do Norte, a madame blue bag das campanhas do PSD. Mas não perde pela demora.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
E eis-me chegada ao quarto aniversário do Um Jeito Manso. O tempo passa.
Repito-me: nunca, quando comecei numa noite quente de um sábado de verão, in heaven, sem saber ao que ia, poderia alguma vez imaginar que gostasse tanto de aqui estar.
Tantas vezes já aqui o referi. Não conhecia este mundo, nada sabia das técnicas associadas a isto, ia experimentando, por instinto, e, de resto, também não conhecia ninguém na blogosfera, ninguém para me ensinar, ninguém para me recomendar.
Logo nessa noite, para ver como era isto de publicar posts, escrevi três, muito pequenos, para ver como se inseriam fotografias, para ver como se escrevia, se alinhava o texto, etc.
1
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No terceiro post escrevi um poema de Nuno Júdice que tinha acabado de escrever, com pincel e tinta, num canteiro alto que antes tinha pintado com cores a la Rothko.
Não esperes; o dia de hoje é
o dia que desejas e não é todas as manhãs
que esta luz te abraça com o seu fulgor
de ave, convidando-te a partir até ao fim
da terra.
E rematava com umas palavras que diziam aquilo que enforma a minha atitude perante a vida: Sejamos optimistas, 'sejamos realistas - exijamos o impossível', levantemo-nos. Hoje.
E assim vim andando.
Começar do zero, a tactear. Uma, duas, três visitas, depois quatro, cinco, seis. Dez pessoas?! Tantas... Quem serão? Um caminho de passos pequenos, pequenas descobertas, pequenas surpresas.
2
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Não me ocorreu na altura dar-me a conhecer, não fazia sentido, era apenas uma experiência. Depois, quando começou a ser um prazer, também não fazia sentido identificar-me. As palavras que eu escrevia e as minhas escolhas (imagens, músicas) deveriam continuar a valer por si. Além do mais, o anonimato é-me confortável. Não quero que as minhas opiniões sejam relacionadas com o sítio onde trabalho tanto mais que exerço uma função de alguma responsabilidade, ou criem qualquer tipo de embaraço entre colegas ou perturbem de alguma forma a forma isenta como me posiciono profissionalmente. Poderia usar um pseudónimo mas um pseudónimo ou coisa nenhuma é a mesma coisa. Além disso, os Leitores começaram a tratar-me por UJM ou Jeitinho e isso é uma forma tão boa como qualquer outra de ser tratada.
3
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Não encontro registo do número de visitas que tinha tido quando decorreu 1 ano que por aqui andava mas devem ter sido poucas.
Mas já encontro de quando se concluíram os 2 anos: 137.000 visitas e já, nessa altura, eu tinha mostrado o meu espanto. Os números começavam a surpreender-me.
Quando há um ano atrás, cheguei ao 3º aniversário, estava eu admiradíssima. Num ano as visitas mais do que tinham duplicado: já eram, então, 300.000. O número crescente de visitas era para mim um mistério. De onde vinham tantas pessoas para ler o que eu aqui escrevia?
Pelas estatísticas consigo saber que vêm sobretudo de Portugal (60%), depois do Brasil (14%) e a seguir, bem mais abaixo, dos Estados Unidos, Alemanha, e depois já mais abaixo, com menos de dez mil cada país, outros países, alguns francamente surpreendentes como é o caso, por exemplo, da Polónia ou da Ucrânia. Aparece-me nas estatísticas com muita frequência o google translator pelo que presumo que estejam a traduzir os textos que escrevo…. E, do que tenho verificado, esta distribuição das visitas por países e o crescimento que tenho verificado é francamente consistente.
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Hoje chego aos 4 anos de Um Jeito Manso e, para minha perplexidade, já passei as 650.000 visitas.
Como foi tal possível? Ainda não consigo perceber.
Se olhasse para este crescimento do ponto de vista matemático teria que concluir que estou em presença de uma progressão geométrica, cujo valor duplica de ano para ano. Mas acho que não devo ver isto nesta perspectiva até porque pode faltar-me a inspiração, pode faltar-me a motivação ou posso começar a desiludir os Leitores.
Não acredito que este ritmo de crescimento se mantenha pois, sendo o blogue unipessoal e anónimo, ele depende apenas do seu conteúdo e de mim que o faço e eu sou falível, forçosamente falível.
Vamos ouvindo, por favor
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Quando vejo o bebé a portar-se mal e lhe pergunto o que é que está a fazer, ele responde-me com ar descarado: coijas. Assim estou aqui: faço coisas. O que me apetece em cada dia. Sento-me aqui e, a maior parte das vezes, não sei sobre o que vou falar. É o que me ocorre.
Não tenho uma agenda, não tento forjar uma imagem, não tento fazer-me passar pelo que não sou. Mostro-me como sou, sem disfarces, mais nua do que se estivesse aqui com fotografia e número de BI. Estando aqui anónima, livre, um ponto incógnito no meio de milhões de outros pontos que cruzam os ares neste mundo feito de seres, perfis, contas, likes, onde se cruzam desabafos, gritos de alma, suspiros, pedidos de ajuda com vaidades, ficções, ou maldades, azedumes, vinganças. A minha voz perde-se no meio de milhões de outras vozes e eu não tento falar mais alto, ter mais razão, criticar os outros que, tal como eu, deixam sair a sua voz na imensidão do universo. Tento apenas, porque assim sou quando estou cara a cara com quem quer que seja a falar do que falo aqui, defender as minhas ideias, os meus ideais, e falar de justiça, de beleza, divulgar aquilo que, de alguma forma, me toca e deixar uma palavra de esperança. Acredito que, quando queremos, alcançamos (pelo menos a maior parte das vezes).
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E assim, sendo eu em cada palavra que escrevo, aqui tenho vindo a acompanhar o tempo que passa.
Mas nunca acreditei que todos os dias fosse capaz de escrever coisas, escolher coisas, desencantar coisas e tenho a noção de que isto é capaz de ser uma realidade finita. Talvez chegue o dia em que não terei nada para dizer, nenhum fotógrafo ou pintor ou músico para descobrir, nenhum novo poema que me encante. Aí pararei.
Acontece também uma coisa: eu sempre fui de ler muito e de pintar e de fazer tapetes de arraiolos e de descobrir novas coisas (grafologia, por exemplo) e ainda sou. Tenho muita vontade de voltar a ter mais tempo para ler, de ter tempo para aprender a fazer vídeos por exemplo e o que me vier à cabeça. E isto de aqui, à noite, no meu turno da noite que começa invariavelmente depois das dez da noite senão depois das onze, me sentar e aqui estar até adormecer, é muito absorvente, não dá para acomodar outros vícios.
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E, portanto, sei lá se consigo esperar muitos anos, até me reformar, ou se atalharei caminho um dia destes?
Não sei.
O que sei é que hoje ainda cá estou, amanhã talvez também. Daqui por um ano, logo veremos.
E também logo veremos se, por essa altura, já terei ultrapassado o 1.000.000 de visitas.
O que sei é que este grande afluxo de visitas - que presumo que cheguem uns pela mão de outros, ou aterrando aqui através de pesquisas nos motores de busca - me tem trazido um número crescente de contactos.
Já aqui vos contei que fui contactada para participar num programa de grande audiência da televisão (e que recusei, claro) e também já o referi muitas vezes a pena que tenho por não ter tempo para responder a todos os comentários, tão interessantes, que mereciam ser discutidos, que mereciam, pelo menos, uma palavra de agradecimento. O mal é meu que, assim que me ponho a escrever, perco a noção dos limites e uso o pouco tempo que tenho em cada coisa que faço. Não doseio porque me entrego toda em todas as palavras que escrevo e, por isso, opto frequentemente pela solução mais radical: não responder. Mas fica sempre um remorso terrível a roer-me. Também recebo muitos mails e não consigo, por vezes, responder a todos, ficando-me sempre com a incómoda sensação de estar a ser mal educada, mal agradecida.
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O que acontece é que, pura e simplesmente, não tenho tempo.
Também não consigo ler livros originais que me enviam, pedindo a minha opinião. Não apenas o tempo me escasseia como não me sinto habilitada a pronunciar-me sobre algo tão importante na vida de uma pessoa como é a escrita de um livro.
No entanto, tenho que vos confessar que tenho conhecido pessoas interessantíssimas através do blogue ou, em particular, através dos mails que me chegam por via do blogue.
Tivesse eu mais tempo e estou certa de que seriam amizades que haveriam de se estreitar pessoalmente.
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Ainda há pouco estive a responder ao mail de uma leitora que por aqui conheci e por quem sinto aquela atenção vigilante e amiga que se sente por quem nos é muito próximo, quase como se nos conhecêssemos desde a infância. Diz-me ela que por aqui me acompanha como se eu fosse da sua família e que quase consegue ouvir os pimentinhas quando falo deles. Fico sensibilizada.
A gente escreve e vê as estatísticas a subirem mas não sabe se quem lê, gosta do que lê.
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E, vendo que as minhas palavras podem ser uma companhia, podem ser a família que por vezes, na realidade não existe, comovo-me.
Fico com vontade de todos os dias conseguir dizer uma palavra de proximidade, quase como se as minhas palavras pudessem ser um braço infinito que conseguisse chegar até a casa de cada um que me lê com estima, para que a minha mão pudesse fazer uma festa a quem não tem quem as faça na realidade.
Ou que as minhas palavras conseguissem transportar a alegria necessária para que todos nos juntássemos numa roda, em dança, alegres como crianças.
Ou que transportassem o misterioso sonho de veludo que habita fronteiras clandestinas, ou quartos frescos onde a sombra é cúmplice, ou os jardins atraentes como perigosos abismos onde se passeiam faunos, mulheres nuas ou cavalos azuis.
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0 - A primeira imagem, Blue Flower, é uma pintura de Georgia O’Keeffe, pintora americana muitas vezes aqui presente e abre este texto para deixar muito claro que este é um blogue de uma mulher, uma mulher que gosta muito de ser mulher.
1 - A imagem seguinte, também em azul, é de Mark Rothko, pintor que misteriosamente me atrai sem que eu consiga explicar porque tenho vontade de mergulhar nas suas cores quando elas eram luminosas ou vontade de rezar ou ler poesia quando as cores começaram a indiciar o negrume no qual viria a mergulhar.
2 - A segunda é de Balthus e é a imagem que encimou o Um Jeito Manso nos seus primeiros dias. É uma das suas meninas levemente más, maliciosas, perigosas com quem, por vezes, às escondidas me identifico.
3 - A terceira, a mulher que pensa ao pé de livros é uma pintura de Menez. Assim gostaria eu de ter tempo para estar: em silêncio, sem limites, sem pressa.
4 - A fotografia seguinte é de Man Ray, e mostra Kiki de Montparnasse de olhos fechados com uma máscara atenta. Quase assim sou eu: sossegada enquanto a UJM escreve e dá a cara pelo que lhe apetece.
O vídeo traz-nos Caroline Nunes, uma inesperada adolescente brasileira, num jardim de uma cidade de Minas Gerais, Poços de Caldas dizendo o magnífico Tabacaria de Fernando Pessoa aka Álvaro de Campos.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
(...)
5 - A fotografia seguinte é uma das belas fotografias de flores e não só de Robert Mapplethorpe que está comigo desde o início do Um jeito Manso
6 - A mulher que sonha sonhos inconfessáveis é Marie Thérèse de Pablo Picasso, que copiei para azulejos e que tenho na minha sala in heaven.
7 - A seguir está Celle qui fut la Belle Heaulmière, uma pequena escultura de Rodin, uma das que, até hoje, mais me tocou.
8 - A seguir tenho uma aguarela de Guilherme Parente: as suas cores vivas e felizes sempre me transmitiram a inocência da infância e a elas regresso quando sinto vontade de me purificar.
9 - A seguir, a mulher que passa ao de leve mas deixando um rasto de sedução é Kate Moss fotografada por Annie Leibovitz, duas presenças que aqui muito me têm acompanhado.
10 - A seguir está La danse de Henri Matisse, que igualmente fiz reproduzir num painel de azulejos e me acompanha in heaven. A alegria sem pecado e a partilha total aqui bem presentes.
11 - Seguem-se os Cavalos Azuis de Franz Marc, cujos passos subtis e ardente resfolegar ouço quando, à noite, o luar invade as minhas noites in heaven.
Para terminar, uma mulher que também aqui me tem acompanhado com frequência: Sylvie Guillem, a graciosa, elástica e vibrante mulher das longas pernas e personalidade vincada. Dança o Bolero de Ravel, música que é um bom acompanhamento para actividades não declaradas.
E mais não digo.
Dancemos, provoquemos, batamos o pé, voemos
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Por agora, por aqui me fico. O meu dia foi longo e eu estou com sono, coisa que, de resto, é um clássico por aqui, certo? Não consigo rever o que escrevi. Estou a pé há quase há 18 ou 19 horas, nem sei, e não consigo energia para rever este lençol. Ponho-me a escrever e a escolher imagens e o tempo vai passando e, quando chego ao fim, até tenho vergonha do tamanho do castigo que vos inflijo e das lindas horas a que me vou deitar.
E portanto, assim sendo, desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta feira e por aqui vos espero amanhã e depois de amanhã e depois de depois de amanhã e depois e depois e depois... durante muito tempo: será sinal de que estamos vivos, bem dispostos, eu sem ainda ter ido entregar-me de corpo e alma a uma outra qualquer actividade e vocês com paciência para me continuarem a aturar.
Obrigada uma vez mais, mil vezes obrigada! E sejam felizes, está bem?