segunda-feira, novembro 23, 2020

Lightplay -- pensando no Covid Christmas, num dia atípico de praia

[Je te laisserai des mots]

 


De manhã encontrámo-nos na praia. Um dia azul. O céu azul, o mar azul. O ar transparente, leve, feliz. 

Há, contudo, invisível, aquela sensação estranha de não sabermos quando voltaremos a estar juntos. Nos próximos dois fins de semana não será. Depois começará a aproximar-se o Natal. Costumávamos ter festa de família de véspera e festa de família no dia. Este ano ninguém sabe como adaptar festas tão especiais para que as crianças sintam, na mesma, a magia, a surpresa, a alegria, o aconchego das luzes e do afecto em família. 

Na praia, ao verem-se, os meninos mostram-se contentes, brincam uns com os outros, os rapazes, os pequenos e os grandes, jogam à bola, as meninas, as pequenas e as grandes,  conversam, jogam ao disco, o mais pequeno dá cambalhotas, os outros fazem a roda e o pino. O tempo foi pouco pois à uma havia que estar em casa; mas foi bom enquanto durou. Estivemos todos de máscara excepto o mais pequeno que não tem paciência e a tira e os restantes enquanto comeram o lanchinho que levámos. Como não posso tê-los em casa, em volta de uma mesa grande, levámos um lanchinho. Por dentro sinto que isto me custa, que é uma pena que tenha que ser assim. Mas, pragmatismo oblige, tem que ser assim e contra factos não há argumentos. Não mostro que me custa pois, para além de tudo, estou contente por estarmos juntos e porque sei que ainda tenho é que me sentir agradecida por morarmos perto uns dos outros, por gostarmos de estar uns com os outros, por podermos estar juntos. 

Os meninos, em especial quando andavam a jogar futebol, queixavam-se da máscara. Transpiravam, corriam, iam ao chão -- e tudo, a areia e o estarem ofegantes, de facto, não ajuda a sentirem-se confortáveis com máscara. Mas não dá para facilitar: os mais pequenos andam na escola sem máscara, sabe-se lá, e, em cima disso, pensava-se que o pai de parte dos meninos poderia ter contactado com uma pessoa positiva. De manhã soube-se que o teste dessa outra pessoa tinha dado negativo mas há casos de testes negativos em que, dias depois, se confirmam as piores suspeitas e, por isso, nunca fiando. 

E a manhã passou num instante e nem deu para contemplar o mar que estava grande e muito bonito. Antes de nos virmos embora, um dos meninos, dos cinco o que é o do meio, agora já com nove anos, foi sentar-se perto do mar. Gosta de se sentar a meditar. Fica imóvel, o corpo deixando transparecer uma grande tranquilidade. Depois, quando estava cá em cima a calçar-se perguntei se, quando está assim, pensa em alguma coisa. Ele disse que não. Eu e a minha filha perguntámos ao mesmo tempo: 'E consegues?'. Com naturalidade disse que sim. E acrescentou que fica a ouvir o mar. Este menino surpreende-me. O mais crescido está quase da minha altura. Quando falo com ele ponho-lhe o braço pelos ombros e ele o braço dele pela minha cintura. O meu marido sempre a dizer que nos afastemos. Mas é difícil. Gosto de os sentir. A menina também está crescida e sempre linda, fala em vídeos tik-tok, fala em seguidores. Por dentro, arrepio-me. O mundo das redes sociais alastra e substitui a vida de bairro, de brincadeiras na rua. Une o que a distância afasta. Disso não tenho dúvida. O pior é o que vem por acréscimo. O outro menino, esguio, sempre atento, sempre ágil e pronto para dançar, genuíno na sua versatilidade. E o mais pequeno, brincalhão, alegre, com uma destreza física e verbal que nos deixa espantados.

Fotografei-os. Ficam registados estes dias de pandemia, de máscaras e tentativa de adaptação a estes estranhos tempos.

Depois, em casa, foi uma tarde tranquila. Lida doméstica. Leitura. 

Tínhamos, in heaven, um cadeirão relax, dos que se reclinam e em que deles, puxando uma pequena alavanca, sai em baixo, um suporte para as pernas. Um dia resolvemos levá-lo para a casa da cidade. Na altura, acho que contei a proeza. Pesado, pesado, pesado. Não conseguimos que coubesse no elevador. Impossível voltar a enfiá-lo na carrinha. Tinha sido um pesadelo, os bancos todos rebatidos, a porta do porta bagagens mal fechada. Então resolvemos levá-lo escada acima. Morávamos no último piso de uma torre. Íamos desfalecendo várias vezes. Ele, em cima, içava-o degrau a degrau e eu, em baixo, tentava equilibrar e que o cadeirão não se despedaçasse escada abaixo de cada vez que a coisa não corria bem. Várias vezes pensámos que não íamos arranjar forças para o levar até dentro de casa. Mas há aquela velha máxima de que querer é poder. E conseguimos.

Desta vez não fomos nós que o trouxemos para aqui, foram os fantásticos brasileiros da empresa de mudanças. Está na sala grande do sótão, junto à janela onde dá o sol. É lá que me sento nestas tardes em que o tempo corre com vagar. A ler. A sentir o sol a deslizar sobre mim. A deixar que o sono desça, adoçando-me a consciência, a existência. 

Depois aqui, à noite, vendo uma vez mais o Perfume de mulher, esperando para ver, uma vez mais, o magnífico tango no qual o Al Pacino mostra o que é saber encantar uma mulher, ponho-me a escrever sem saber porque o faço. Escrevo porquê? Porque tenho que escrever? Porque não consigo deixar de escrever? Neste domingo, 1604 pessoas vieram aqui. Sei de alguns, não sei da maioria. Quem são? Agora passa das duas da manhã e já 175 aqui estiveram desde que a segunda-feira começou. Quererão encontrar alguma coisa em concreto? Será que gostam de acompanhar estes meus passos? Não tenho feitos a anunciar, a minha vida nada tem de mais. Porque vêm aqui? Saberão que, quando aqui estou à noite, é como se estivesse a conversar convosco? É como se sentisse a vossa companhia. É convosco que falo. E agradeço-vos.

E, para retribuir o conforto da vossa presença aí desse lado, aceitem que partilhe convosco este vídeo maravilhoso. Leio que é um presente de Natal. Tomem-no como o meu presente de Natal antecipado. 

"Lightplay, A Christmas Gift" -- Sergei Polunin

Voa, Sergei, voa


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Pinturas de Lee Kyung Hae ao som, uma vez mais, de Je te laisserai des mots, Patrick Watson

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E queiram, por favor, continuar a descer. 

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Saúde. Ânimo. Boa sorte. 

2 comentários:

Estevão disse...

Às vezes pergunto-me se não terei uma costela de voyeur por gostar de vir aqui assiduamente.
Imediatamente me apercebo de que o mundo da UJM, real ou ficcionado, me transporta comparativamente para o meu mundo e para o mundo dos meus conhecidos. Isto quando estão em causa cenas familiares. Acabo então a fazer um flashback de partes da minha vida e isso tem sido pedagógico. Ajuda-me a recordar o que fiz de bom e a reflectir melhor sobre o que fiz de mal. Acho que começo a ficar preparado para poder nascer outra vez, (para ser tão tão como o Cavaco) ..

Um Jeito Manso disse...

Olá Amofinado,

Gosto de saber que está aí desse lado. Gosto de escrever mas gosto ainda mais de escrever como se estivesse a conversar com quem está aí, desse lado.

Será que já alguém organizou encontros virtuais de bloggers ou um blogger com as pessoas que o lêem? Era capaz de ser engraçado. Claro que lá se ia o anonimato e nisto o anonimado é muito disciplinador. A gente fala em total franqueza, sem se sentir condicionada a agradar a A ou a B. Fala-se sem se saber com quem. Por isso, uma conversa via zoom com leitores é capaz de não ser boa ideia.

E muito obrigada pelas suas palavras. Gosto de as ler.

Dias felizes, Amofinado.