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domingo, novembro 30, 2014

Natal, árvores de natal, reinvenção de antigos símbolos, o Congresso do PS, António Costa, a esquerda - "estes são os dias em que o frio desce sobre a terra"



estes são os dias em que o frio desce sobre a terra
e afasta as últimas sombras que o verão espalhou
tudo agora se recolhe na pura intimidade
para que em segredo se possa preparar o advento



Chegámos ao último dia de Novembro deste 2014 que tem sido tão avaro em boas notícias. Mais umas horas e estamos no último mês, a caminho do fim do ano. Pelo meio teremos momentos de festa em família, para quem a tem, e, por fim, despedir-nos-emos sem saudade deste ano, recebendo com expectativa o que aí vem.

É neste ambiente de fim de festa, de cansaço, desilusão e medo que o Partido Socialista se reúne em congresso tentando encontrar um caminho novo, e mobilização para o palmilhar.


Mas vamos com música, se não se importam

Giving up everything




Num dia atribulado é a custo que aqui consigo vir hoje fazer prova de vida. Não foi fácil o meu dia e pensei que não teria condições para aqui escrever qualquer coisa. Mas tenho isto de me parecer que estaria a baldar-me se não viesse. No trabalho também sou assim, ao fim de muitos anos mantenho a mesma exigência de nunca me baldar ou desenfiar que tinha quando comecei a trabalhar  No trabalho é o sentido do dever, acho que devo merecer aquilo que ganho. Aqui é quase isso também. O meu filho às vezes diz que já é vício, mas eu acho que não: é prazer. Mas, pensando bem, acho que é também dever. Recebo diariamente cerca de mil visitas (e por vezes mais do que isso: esta semana houve dias de mais de 4.000 visitas) e custa-me pensar que, se não escrevesse nada, poderia desiludir os Leitores que aqui se habituaram a vir. Recebo mails de pessoas que me dizem que é como se eu fosse a família que não têm, ou que se habituaram a ir ver o que eu escrevi mal ligam o computador ou que me escrevem mails pungentes relatando-me factos dolorosos da sua vida. Leio essas palavras e acho que nunca poderei fazer o suficiente para sentir que mereço a confiança e estima que depositam em mim.




as folhas que juncam o chão anunciam o negrume
traçam estranhos signos pelas avenidas
onde cães vadios lêem a avareza do nosso destino
e uivam incendiados pelo tempo que os abandonou



Por isso, apesar de já passar da uma e meia da manhã e com algum esforço, aqui estou.

Apenas nos últimos minutos consegui ouvir um pouco do que se tem passado no Congresso do PS. Melhor, apenas agora ouvi um pouco do discurso de António Costa e acho que falou bem, e falou com intensidade, de improviso, com convicção.

No entanto, apesar de não ter visto aquelas reportagens que costumam fazer nos congressos, há certamente mixed feelings entre os participantes. É como organizar-se um casamento quando um dos familiares mais próximos acaba de ser detido. Uns interrogar-se-ão sobre se haverá alguma coisa que justifique isto, outros terão muita pena pelo que ele está a passar. Uns tenderão a ter uma postura mais institucional, outros terão vontade de exprimir o que lhes vai na alma. Contudo, todos sabem que é hora do PS se unir, de se reinventar, reaprender a interpretar o sentimento do povo, ser criativo na forma de melhor dar um salto no sentido do desenvolvimento, não se deixando tolher por preconceitos, peias aparelhísticas, compromissos datados. O PS tem que saber ser diferente. Como partido socialista que é, tem que colocar as pessoas no centro de todas as políticas mas tem que ser rigoroso na prossecução de políticas de desenv e ter sempre presente que só faz sentido ser poder se for para ser melhor, para nunca abdicar dos mais puros princípios éticos, se for para trazer esperança e felicidade às pessoas.




diante dos meus olhos passam corpos em silêncio
e eu vou nesses corpos levedado pelo olhar
sou a frágil sombra que o frio em segredo dissolveu
sou o uivo que o tempo sobre a terra espalhou



Francisco, o Papa que irrompeu das cinzas de uma igreja retrógrada e corroída por escândalos, inconfessáveis vícios e hábitos antigos, tem vindo a mostrar que o segredo está na simplicidade e na proximidade.

Não sendo eu pessoa de crenças, é sempre com emoção que ouço Francisco. Não lhe ouço teorias, ilusões, ideais longínquos. Não. A Francisco eu ouço palavras de inclusão, amor, compreensão. Mas também, em simultâneo, ouço firmes palavras de condenação pelo que de mais torpe tem vindo a minar o crescimento económico, financeiro e moral. Francisco não é de meia palavras, frases de conveniência. Perante a injustiça, arrogância e maldade Francisco não se acobarda.

A esquerda tem que se reinventar nesta Europa decadente que perdeu o pé, o norte, a vergonha. A esquerda para mim deve ser moderada, sensata, pragmática mas, ao mesmo tempo, sensível e, ainda, firme, corajosa. A esquerda tem que ser capaz de contribuir para reafirmar a Europa.

A esquerda hoje não é mais a esquerda leninista, castrista, maoísta. A esquerda hoje deve visar sobretudo uma democracia social, livre, desenvolvida. Tem que ser uma esquerda capaz de encontrar o seu caminho por entre a mediocridade, os escolhos que o liberalismo mais trauliteiro e iletrado deixou espalhados pelo terreno como minas potencialmente devastadoras, uma esquerda que não se intimide, não se acobarde, não rejeite a emoção, a paixão dos grandes desígnios, que lute valorosamente. Se não se sentir paixão pela conquista de uma vida melhor para o nosso país, vai sentir-se paixão por quê?




Claro que se pode sentir paixão por uma outra pessoa, por um desporto, por um passatempo. Mas essas serão escalas do domínio privado, cabem dentro da vida de quem as sente. Agora a paixão pela luta por uma vida melhor para todos é maior do que isso, bem, bem maior - tem que ser.

Não é demais pedir isso a António Costa porque isso é o que se pede aos líderes de um partido. Os socialistas têm que encontrar dentro de si próprios o carisma, a força e a crença que os conduza nesse sentido e que faça com que os outros acreditem e se ponham a caminho a seu lado.




Palavras, palavras, palavras - dirão. E é verdade. Mas com palavras se descrevem os nossos sonhos e é sabido: os sonhos comandam a vida. Mas juntem a essas palavras outras ainda: despojamento, criatividade, simplicidade, entrega.

E de uma coisa estou eu muito certa: para bem do país, é bom que o PS consiga mobilizar o País nesse sentido. O terreno que o PSD e o CDS vão deixar não estará apenas minado: estará e já está habitado por larvas nefastas. A cobardia, a inveja, a maldade, a mediocridade desenvolvem-se doentiamente, reproduzem-se, multiplicam-se e no dia em que possam exercer a sua vontade, o País mergulhará numa noite que há muito se julgava longínqua, desintegrada - mas que está ainda viva e tão próxima que se lhe sente o fétido bafo.

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Caloroso é o apoio de Matteo Renzi, primeiro ministro italiano, a António Costa.

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As árvores de natal diferentes, bonitas e fáceis de fazer podem ser vistas aqui (num lugar onde há outras, todas interessantes).

O poema que aqui se encontra dividido sob as primeiras imagens é estes são os dias em que o frio desce sobre a terra e pode ser visto no belo blogue Kyrie Eleison.

A música lá em cima é Natalie Merchant interpretando Giving Up Everything

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(Sem rever e, portanto, pedindo desculpas pelas gralhas que devem ser muitas, por agora fico-me por aqui)

Desejo-vos, meus Carlos Leitores, um bom domingo.

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sexta-feira, setembro 06, 2013

Ler poesia. Ouvir poesia. Sentir a poesia. Perceber a poesia. Analisar poesia. Escrever poesia. ------ [E mais um Cadavre Exquis Poético - para ajudar a responder à pergunta: faz sentido analisar a poesia?]


No post abaixo, festejo o regresso de Pedro Mexia à blogosfera. Um malparado muito diferente daquele a que nos habituámos. Mas isso é a seguir.

Aqui, agora, a conversa é outra e tenho que tentar ser breve porque daqui a nada tenho que estar a pé que me espera mais um daqueles dias que começa antes do sol raiar. 

Vou aventurar-me por terrenos em que escorrego mal ponho o pé. Sei bem disso. Mas fazer o quê? se gosto de andar por sítios assim. Vou escolher umas imagens que têm o seu quê de infantil para que vejam bem que não me tomo a sério e que, ao dizer o que vou dizer, assumo que, deve ser o meu lado pouco adulto (ou inculto) a manifestar-se.

^^



Música por favor, 
que esta é conversa que se debruça sobre o sonho (ou sobre a fala) dos anjos


Arvo Pärt


^^

Leio poesia há muitos anos, desde os meus treze anos talvez. Tenho uma estante própria e de boa dimensão para poesia e, ainda assim, a mesa em que escrevo tem a toda a volta (é redonda) vários montes de livros de poesia. Tenho uma necessidade que é da ordem da adição: todos os dias tenho que ler um poema, um ou mais. Apenas em férias interrompo. Mas, por vezes, como qualquer viciado em estado de carência, abro um livro e leio um poema, mesmo que de fugida, mesmo que a total despropósito. 




Sou leitora assídua de poesia mas não sou uma leitora exemplar. Sou aliás a antítese disso. Não pego num livro e não começo a ler de seguida, página após página. Nem consigo nunca começar pelo princípio. Não sei porquê mas não consigo. Mais depressa vou ler o último ou o índice. Gosto de ler o índice para ver se, pelo nome, consigo ir direitinha ao melhor. Se não acerto, o que faço é abrir ao acaso e ler e depois andar para trás ou para a frente. Se me agrada o início de um poema, leio-o todo, senão passo para outro. Depois não fico a interpretá-lo nem a tentar perceber o que significa. Impossível fazê-lo. Na poesia eu acho que as palavras saem porque saem ou saem porque têm um significado para quem as escreveu. Depois de o terem escrito de forma inconsciente, se calhar, os poetas rematam as pontas, tiram os alfinetes, sobem as bainhas, essas coisas, acabamentos. Se calhar, só depois o dão como pronto.




Que me desculpem os estudiosos, a boa gente séria que sabe como desmantelar um poema sem o estragar, para que à vista desarmada ele continue a parecer aquilo que era, um poema genuíno. É ignorância minha, eu sei, mas parece-me que querer descobrir algum significado num poema parece-me um acto de divinação absurdo, ou um acto de voyeurismo despropositado. Ou seja, interpretar um poema parece-me estultícia. Mas que não se zanguem comigo os que o fazem e fazem bem – como confessei, não sou bem comportada, não sou boa aluna, não sou by the book (em nada nesta vida). 

Mas isto de querer interpretar o que os outros fazem, sejam os outros poetas, pintores, músicos, faz-me lembrar uma entrevista a Paula Rêgo. Dizia ela com aquela sua irreverência inocente: sei lá porque é que pintei aquilo, apeteceu-me, saíu assim, às vezes está ali um espaço vazio e ponho lá qualquer coisa para encher. Numa tela, estavam uns tomates no chão ao lado de uma cama. Disse ela: sei lá porquê, não faço ideia de como lá foram eles parar


Miró


Miró disse o mesmo. Quando acabava e pintar, deixava os pincéis de molho. Quando no dia seguinte lá chegava, de novo, tinha que lhes tirar o excesso de água. Sacudia-os para cima das telas. Depois, a partir dos salpicos, ia desenhando pintinhas, bolinhas, quadradinhos, juntando umas coisas. Fartava-se ele de rir com as interpretações que lia depois sobre os símbolos e a significação e essas coisas.

É até ridículo eu agora juntar-me à conversa mas, afinal, quem me impede? Vocês que estão aí sossegadinhos desse lado, tão longe de mim? Têm lá vocês a capacidade de me porem uma mão à frente da boca? Não têm. Ou melhor: conseguem estender o vosso braço e agarrar a minha mão para que eu não escreva mais disparates? Não. Estão longe demais. Portanto, agora a protagonista passo a ser eu. Sempre inconsciente.

Sabem que eu pinto. Agora menos, tenho cada vez menos tempo para fazer tudo o que gosto (isto dos blogues ocupa-me muito do tempo que usava para pintar). Pois eu, por vezes, era tomada por uma vontade compulsiva de pintar. Mas pintar – e a frase acaba aqui pois era de pintar que tinha (e por vezes ainda tenho) vontade, não de pintar alguma coisa em concreto. Vontade de olhar para uma tela em branco e depois, sem saber como nem porquê, ir juntando cores ou figuras. Depois as pessoas olham e vêem coisas e pedem-me explicações. Fico sem jeito, receio passar por mais maluca do que sou na realidade. Mas, a sério: não sei o que responder. 

Houve uma altura em que havia sempre duas freirinhas, ajoelhadas a um canto. A pintura podia meter mulheres nuas, corpos expostos, flores viscerais, sexos, montes, cavalos, gente em cima de árvores, portas, muros, labirintos, a sombra caindo sobre um muro, o que calhava, mas lá estavam sempre a um canto aquelas duas, vestidas a rigor, ajoelhadas, a rezar. Matéria para análise é o que não falta ali. Podem dizer que era a libertinagem total e que as freiras representavam a minha consciência. Tretas. Apareciam-me como uma paródia. O que sei é que pintar assim é a loucura, o prazer da liberdade total. 

Uma vez pintei uma ‘cena’ completamente improvável. Nessa altura andava a pintar cidades, torres que se cruzavam, camadas de prédios, o sol a bater nos prédios, viadutos e pontes que entravam e saíam dos prédios, prédios de formas bizarras, curvos, superfícies irregulares, cada parede de sua cor, cidades abstractas, feéricas. Pois bem, numa dessas pinturas pintei as pernas de uma mulher de saltos muito altos, uma mulher que, pela proporção, devia ser gigante pois andava sobre os prédios, um pé em cima de um, outro pé em cima de outro. E num canto do quadro via-se uma outra coisa: uma mão de mulher pegando no pobre pénis de um homem, pegando com o cuidado que se usa para pegar numa coisa frágil. 

Estas imagens, a das pernas da mulher e a mão da outra a pegar naquele pobre órgão, estavam a preto como se fosse quase uma sombra que se projectava naquela paisagem urbana. Uma coisa de que gosto especialmente é de dar nomes aos quadros. Só dou no fim porque só no fim é que vejo o que saiu. Àquele dei o nome ‘Women rule’. Reparem: não pensei que ia pintar um quadro que representasse o poder das mulheres nas sociedades modernas. Nada disso. Foi exactamente ao contrário.

Como gostei dele, emoldurei-o e coloquei-o na sala. Faço coisas assim, sem pensar. Lá em casa geralmente estamos nós, os filhos (já habituados – mas ainda não confortáveis com o que vêem ou lêem) e netos (na altura ainda não existiam), o genro (que deve achar isto uma coisa do além), a nora (que talvez ache piada), na altura os meus pais (o meu pai não dizia nada e a minha mãe ria-se como se eu fosse um caso perdido). Mas o pior foi no dia em que, pela primeira vez, depois de eu lá ter colocado o quadro, lá foi uma família, agora nossos parentes, pessoas conservadoras, tradicionais, católicos praticantes, gente atilada, tudo o que eu não sou. Quando ele começou a fazer o périplo por aquelas pinturas eu senti um calafrio, ó caraças que não me lembrei, devia ter escondido o sacana do quadro. Bonito serviço. O que é que ele vai pensar? Ai… Mas enfim, educado e cavalheiro, reparei que esboçou um quase imperceptível sorriso e seguiu, sem fazer uma referência. Depois disse que tinham muita força, muita vida, coisas assim. Pois. 

Agora imagine-se se algum sábio da coisa, um crítico de arte ou coisa do género, se metia a comentar aquilo. O que eu me ia fartar de rir.




É como a poesia. Leio e gosto ou não gosto. E por vezes não me diz nada, outras abre-me portas, outras varre-me a pele, outras é uma melodia que murmura dentro de mim. O que eu gosto de fazer, e faço muito (quando escrevo no Ginjal - coisa de que tenho andado arredada porque o tempo de verão leva-me para outras solicitações), é escolher um poema, copiá-lo para o blog e depois, sem pensar, tem que ser logo de seguida, enquanto as palavras do poema estão à solta dentro de mim, ou seja, ainda não assentaram nem se dissiparam, desatar a escrever o que me ocorre acerca daquilo. Recrear a situação, ou inventar uma situação em que as palavras do poema fizessem sentido. Ou outra coisa qualquer. Não sei. Não paro para pensar. E mal acabo de escrever, bye, bye, fecho o Ginjal e parto para outra. Aquilo fez sentido no estrito momento em que ocorreu, mal acabou, já sou outra. Já me aconteceu, raramente mas aconteceu, reler o que escrevi (acontece, por vezes, quando me quero certificar de que ainda não coloquei um certo poema, fazer uma pesquisa e ir parar a certa pagina que releio). Fico sempre espantada com o que escrevi.  Mas nem tento perceber o que escrevi, nem o que poderia aquilo ter significado na altura, ou as técnicas que usei ou o que for. Felizmente ninguém se deita a tão inútil e descabido exercício.




Li o exercício que o JCM escreveu na quinta feira no seu excelente Kyrie Eleison. Claro que, lendo o que ele escreveu, percebo que faz sentido. E está bem escrito e é inteligente o que ele diz. Mas acrescenta o quê à compreensão do poema? A intenção é que, quem o não tinha percebido, lendo a explicação, o releia com outra atenção e o compreenda melhor? Se calhar é. Quando tive aulas de língua Portuguesa no liceu fazíamos este tipo de exercícios. Tanta gente se entrega a isto que com certeza faz sentido. Eu é que sou atípica ou rústica (e não estou a  ironizar). Eu leio o poema sobre o qual o JCM se debruçou e a única coisa que me ocorre é que gostava que o meu amor o decorasse e mo dissesse num sussurro ao ouvido. Em francês de preferência. Mais do que isto não sei dizer sobre "Le Toucher".




Já no outro dia o JCM tinha falado sobre a análise poética e trocámos impressões sobre o tema. 

Para mim, ler aqueles exercícios de análise é como se eu, gostando de uma flor - e tanto que eu gosto de flores - em vez de me limitar a vê-las, tocar-lhes, cheirá-las, fotografá-las, pintá-las, me pusesse a ver compêndios de botânica, a estudar a respectiva taxonomia, a ver se o rebordo da folha é assim ou assado, se a superfície da folha é assim ou assado, etc. Devo dizer que tenho livros desses: por gostar muito de flores, pensei que, estudando-as, as apreciaria melhor. Errado. Não apenas não tenho paciência para isso como não percebo qual a utilidade prática para mim que sou amante em estado bruto. A beleza para mim tem que vir nua, em estado primitivo, sem taxonomias, gramáticas, burocracias.



Paul Klee


Já aqui uma vez o fiz e é exercício que gosto de fazer: um cadavre exquis poético. Ou seja, pegar em bocados de outros poemas e ir juntando peças até que soem como um poema. O resultado pode parecer um poema que nasceu pelas vias normais mas eu sei que nasceu de um exercício de assemblage, que é um patchwork, um ser fabricado.

Mas vamos supor que eu não explicava isso. E vamos supor que, por algum estranho acaso, algum estudioso resolvia analisá-lo. Poderia resultar um exercício muito racional. Mas faria sentido atribuir significados a coisas que resultaram de puro corte e costura?

Não sei. 

Agora que falei nisto, vou fazer outro cadavre exquis. Vejamos o que vai sair.




                                                    Olho. 
                                                    Um mecanismo de seda
                                                    de gaivotas traídas pelo fogo da tarde
                                                    rasga o horizonte 

                                                    São as horas solitárias em que a noite nasce,
                                                    traça um rumor de alfazema sobre a terra

                                                    A noite desceu pelo rio da saudade. 
                                                      
                                                    Sentemo-nos no silêncio desta hora.
                                                    Ergue-se flamejante
                                                    a sombria sombra da minha sombra. 
                                                    a sombra da minha sombra ao partir.

                                                    E deixo fermentar as imagens
                                                    que trago no fundo do corpo.
                                                    São restos do mundo que amei,
                                                    os montes, a luz verde da salvação.


Gosto de fazer isto.

Todos os versos foram retirados dos vários poemas do JCM publicados durante este mês de Agosto no Kyrie Eleison. O que é que eu quis dizer com este poema? Nada. Não escrevi por mim uma única palavra. E, no entanto, agora que o leio, parece fazer sentido e parece ser algo que eu, um dia, poderia ter dito ou vir ainda a dizer. Vá lá alguém explicar isto.




***

Uma vez mais que me desculpem os linguistas, os estudiosos apaixonados pela língua, os amantes de literatura, os investigadores. Sabem o que fazem. Eu se calhar não. Mas é que eu acho mesmo que da poesia ou se gosta ou não - e a única coisa a fazer em relação a isso é ler. Ou ouvir ler. Ou esperar que a vida nos traga a maturidade ou a leveza para que saibamos gostar. Pode ser um ano, uma vida. Ou um dia. E por vezes, ah por vezes, num segundo se evolam tantos anos.




E por vezes, David Mourão-Ferreira


***

É tarde e daqui a pouco estou a caminho. Tenho que me ir deitar e, por isso, não vou reler. Espero que não existam erros graves, coisas sem sentido, porque não vou poder corrigir. E mal chegue a casa, ao fim do dia, tenho baby sitting. Por isso, vou fazer figas para isto não estar tudo baratinado, tal o sono que tenho em cima de mim e dado que não vou poder atender a SOS's que me avisem de enganos.

Relembro: as coordenadas para o novo blogue do Papa Pedro Mexia estão no post seguinte.

***

E nada mais senão pedir-vos desculpa, uma vez mais, pelos meus excessos: se isto é tamanho que se apresente na internet, senhores...? 

E, sobretudo, resta-me desejar-vos uma belíssima sexta-feira!