Numa ideia criadora revivem milhares de noites de amor esquecidas que a enchem de nobreza e de altura. E os que se unem na noite e se enlaçam numa volúpia embaladora, fazem obra séria e acumulam doçuras, força e profundidade para o canto de qualquer poeta que há-de vir, que se erguerá para dizer delícias indizíveis. E convocam o futuro; e se também errarem e se abraçarem às cegas, o futuro vem na mesma, levanta-se um homem novo e, no terreno do acaso que aqui parece realizado, desperta a lei que impele uma semente forte e resistente para o óvulo que se abre ao seu encontro. Não se deixe iludir pelas superfícies; nas profundezas tudo se torna lei.
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O pequeno texto é um excerto da carta de Rainer Maria Rilke a Franz Kappus datada de 16 de Julho de 1903. Da mesma carta foi extraído o título deste post.
Fotografias feitas hoje cá em casa
Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini
O Segredo de Maria Teresa Horta é dito por Pedro Lamares
Sabes? Hoje li que as borboletas estão a desaparecer. Notícia triste, não achas?
No outro dia dei comigo a pensar que não sei para onde vão as borboletas quando morrem. Nunca as vi caídas no chão. Pensei que, se calhar, vão para o céu. O que achas? Um céu cheio de borboletas, já pensaste?
Li que o desaparecimento tem a ver com as alterações climáticas. As borboletas e outros insectos. Li que a polinização pode ficar em perigo e, sem polinização, o que acontecerá é tão mau que nem quero falar-te nisso.
Mas deixa que te conte outra coisa. No outro dia, vieram chamar-me para ver. Fotografei-a, claro. Uma borboleta muito bonita.
Uma semana depois fotografei outra, igualmente bonita. Mais colorida. Depois, no mesmo sítio da primeira vez, vi outra igual à primeira e pensei que poderia ser a mesma. Depois pensei que não sei se as borboletas conhecem os lugares, se voltam a eles, se pensarão que estão a voltar a um lugar onde já foram felizes. Também não sei se pressentem as pessoas por perto.
(Tu pressentes-me?)
Contemplei-as, encantada com a sua beleza. E intrigada. Faz-me muita impressão que um ser tão belo -- uma daquelas belezas perfeitas para as quais conseguimos encontrar explicação: simetria, harmonia, conjugação feliz de cores -- resulte de uma metamorfose que parece um passe de mágica. Sabes o que penso? Penso que o mundo real é, afinal, um mundo de magia onde os milagres acontecem. E isso enche-me de esperança.
Eu não sei como explicar que seres tão sublimes habitem o mesmo mundo que eu. Não sei se para seres assim, que nascem outros e que são tão efémeros na sua extrema beleza, o tempo é o mesmo que o meu. Não sei se uma borboleta, recém nascida depois de ter sido outro ser, tem consciência de como o tempo passa. Não sei se sente que o seu tempo se esvai mais rapidamente do que para mim. Talvez não. E talvez seja o meu tempo que passe sem que eu o sinta, tão longe estou. Tão longe estou. Tão longe. Sentes isso, não sentes?
Que tempo é o nosso?
Sentirá a solidão, a bela borboleta cujo tempo se esvai? Sentirá que um dia ninguém mais saberá dela? Saberá que um dia o bicho anterior não mais se transformará, deixando-a por acontecer? Quantas coisas, diz-me, quantas coisas ficam por acontecer sem que ninguém o saiba?
Olha. Fecha os olhos e pensa. Como ficará o mundo sem a beleza efémera das borboletas? Consegues imaginar? A tristeza e a escuridão descerão sobre nós? Ou teremos nós, entretanto, adquirido a capacidade de nos transformarmos em seres sem destino, inexplicáveis, fatalmente belos e efémeros?
Faço muitas perguntas, não é? É que não sei respostas, sabes? Tu sabes? Tens respostas para mim?
Saberás tu que contemplo a beleza das borboletas? Saberás que sinto que o tempo, um dia, nos surpreenderá na sua suprema sabedoria? Será que deus, afinal, é o tempo? O tempo que está em todo o lado, infinitamente sábio, infinitamente bondoso. Um deus que nos transporta, que nos suspende, que nos traz os sonhos que nos mantêm vivos. Um deus que nos abraça. Que nos traz a palavra que nos abraça. Que nos traz aquele olhar. Aquele sorriso. A tua mão que se estende até mim. Mesmo que em sonhos.
Olha, não me respondas. Prefiro não ter respostas, prefiro sonhar com borboletas livres e eternas voando e dançando in heaven. Prefiro adivinhar-te. Prefiro pressentir-te aí, imóvel, escutando em silêncio a minha respiração.
Há aniversários todo o ano mas, quando começa a chegar o verão, eles começam a apertar. Hoje foi um.
No fim do dia de trabalho, que hoje aconteceu um pouco mais cedo, fui buscar um pequeno bando ao pé do rio. Viémos cá para casa e os meninos, depois de lancharem, estiveram a jogar à bola com a big bola azul. Eu a dizer que bola pelo ar não, pontapés com força não, na direcção de portas de vidro não e, mal as costas viradas, já uma barulheira de futebol a sério. Não vale a pena querer que se portem bem. A avozinha consegue isso que lá em casa dela ninguém salta ou corre ou joga à bola. Nem sequer falam alto. Há pessoas que impõem respeito. Eu não.
Depois fomos para casa da aniversariante.
Estiveram todos a jogar à bola no relvado, grandes disparos de bola com o bebé a passar por entre eles e eu a temer que uma bolada o deitasse ao chão. Até a menina, à falta de outras meninas, jogou à bola.
Depois foram chegando mais pessoas, incluindo mais primos e incluindo um primo para a futebolada e uma prima bebé que não quis misturas, preferindo sentar-se ao piano e cantar com microfone, o que, mais tarde, viria a dar confusão pois o primo bebé fez de tudo para tirar-lhe o microfone. Isto no intervalo de comer folhado de salsicha, massa com carne, tigelas de arroz doce e carradas de melancia e, no fim, bolo de anos -- um bebé devorador, com boa boca.
E quando a mesa grande toda aberta se revelou insuficiente para os grandes -- porque os sete pequenos estavam numa mesa redonda à parte (a bebé menina ficou ao colo da mãe, senão seriam oito) -- teve que ser aberta uma outra mesa para juntar à grande.
E toda a gente conversou em várias conversas cruzadas, eu com a minha parceira do lado, o meu parceiro do lado conversando com o vizinho da frente, os do fundo conversando uns com os outros, outra brincando com um e outro e etc e tal e as crianças chilreando e rindo -- porque toda a gente tem coisas para dizer e piadas para contar e o meu filho esteve a contar coisas de mim, uma coisa muito recente, e pôs toda a gente a gozar e a rir. E depois o bebé quis sair da cadeirinha e os outros meninos também se levantaram e foram cirandar para a outra sala e eis senão quando uma música imprevista ecoa pela casa.
Ficámos todos parados, em silêncio, a olharmos uns para os outros. Perplexos.
E, então, o bebé apareceu à porta da sala de jantar como se a ver se aprovávamos a escolha. Perguntámos se tinha sido ele. Disse que sim. E tinha mesmo sido. O pai, que estava sentado na direcção da coluna, disse: 'Tirou o CD que lá estava e pôs este'.
E a música que se ouviu foi esta:
Perguntei-lhe: Gostas desta música? E ele, com ar de quem responde a uma pergunta parva, diz: 'Sim...!' e o tom foi o mesmo que se dissesse 'óbvio...!' ou 'dahhh...'.
E até ao final do jantar estivemos a ouvir a Callas, alto e bom som. E os outros meninos, ao contrário do que se poderia esperar, também não protestaram. E todos, espantados, ficámos de gosto na conversa, a Callas ali connosco à mesa.
Se falo verdade, há quem ache que ficciono. Tem graça isso -- e digo que tem graça porque, na realidade, não segue qualquer lógica. Se digo que fui boa aluna, desacreditam. Se dissesse que tinha sido má aluna acreditavam. Não percebo o racional dessas pessoas. Uma vez, numa história toda ficcionada que se bem me lembro incluía príncipes marroquinos a dizerem poesias, inventei uma cena que metia um jantar num palacete numa das mais belas vilas do país. Descrevi a casa, a decoração, o requintadíssimo repasto que lá tinha tido dias antes. Pois foi nisso, que era a única coisa verdadeira da história, que algumas pessoas não acreditaram. Acharam que estava a armar-me ao pingarelho.
Licenciei-me num estabelecimento de ensino do mais clássico que há, fiz um curso que só não foi uma tareia das valentes porque sou dada a pôr os pesadelos para trás das costas. E, não sei com base em quê, há quem aqui chegue para dizer que devo ter feito daqueles cursos à Relvas, equivalências e diplomas ao domingo. Uma vez mais, não consigo compreender a linha de raciocínio de quem assim pensa.
E dizem-me que gosto que me massagem o ego. Nada mais errado. Se há coisa que detesto -- mas que detesto mesmo -- é de ser bajulada. No meu dia a dia, se alguém ensaia puxar-me o saco nem chega ao primeiro acto, vai logo de asa. E se há coisa que me diverte e me dá pica é que tentem arreliar-me. Tal como na 'vida real' gosto de uma boa disputa, gosto de discutir política, gosto de debater ideias sob visões antagónicas, aqui acontece o mesmo. Mas isso é diferente do insulto gratuito. Mas, mesmo assim, fico com vontade de dar troco. Se aqui calha aparecer um daqueles comentários que destilam fel ou parvoíce, é com entusiasmo que me atiro a dizer das minhas.
Também há quem se queixe que falo muito de mim. Presumo que sejam pessoas que não gostem do registo autobiográfico. Mas essas pessoas devem perceber que o que se passa aqui é coisa marginal na minha vida. Ponho-me a escrever porque gosto de escrever. À hora a que escrevo não tenho discernimento para ter muito assunto. Tal como os pintores que, à falta de modelo, se põem ao espelho e fazem auto-retratos, também eu, à falta de melhor assunto, falo de mim. Não frequento redes sociais, mal vejo televisão e, se não me ocorrem umas bocas sobre a actualidade, não tendo do que falar mas fervilhando-me os dedos para escrever, falo do que fiz ou do que me lembro. Se falo de mim, não invento. A menos que escreva uma história na primeira pessoa, mas aí é óbvio que se trata de ficção, no resto o que digo é tal e qual. E acho que se percebe quando é e quando não é história.
Por exemplo, se escrever assim:
Estava a conduzir numa das mais movimentadas avenidas da cidade. À minha frente, um carro branco, que reparei que tinha muitos anos, abrandou. E, para minha estupefacção, uma porta abriu-se e de lá saltou um pequeno gato preto. Travei, assustada, o coração acelerado, temendo matar o gatinho e, ao mesmo tempo, temendo que um carro me batesse. Sem ver o gatinho, sem saber em que direcção tinha ido, fiquei sem saber se podia andar. Os carros atrás de mim travaram. Avancei devagar, aflita. Mas não senti nada. Olhei para todos os lados. Nem sinal do gato. O carro branco acelerou, mudou de faixa e saíu por uma rua à direita. Ainda atordoada, pensei na maldade extrema de quem tinha feito aquilo de propósito para matar o bichinho.
ou
Estava a conduzir. Num semáforo, ao parar, reparei que no carro ao lado estava um advogado que costumo ver frequentemente na televisão. Via-se que falava em alta voz. Ria, falava. A vantagem do bluetooth. Depois, como o sol lhe batesse nos olhos, pôs uns óculos escuros. Homem com muito charme. O sinal abriu, arrancámos. Encostei para virar e ele também, na faixa ao lado da minha. Estava calor, abri o meu vidro. Do carro dele vinha agora o som de uma ária. Pensei: Tosca. Mais à frente, pouco antes de passar por uma rua onde se encontra um dos grandes escritórios de advogados, o carro dele abrandou para virar. Reparei que ao seu lado estava agora uma mulher. Não estava antes e, no entanto, nenhuma mulher tinha entrado. Quando olhei, reparei como sorriam, ela ajeitando o cabelo.
penso que é claro que uma das narrativa é cem por cento verdadeira e que outra tem uma pitada de ficção (embora não mais que uns cinco por cento de ficção), pitada essa que, só por si e em conjugação com o lado deliciosamente verdadeiro, me deu vontade de desenvolver um suculento folhetim.
E, uma vez mais, estou com isto não porque seja importante para mim que saibam tão relevantes frioleiras mas porque me apetece escrever e não me ocorre outro assunto. Há assuntos fantásticos, fracturantes ou sensíveis sobre os quais deveria, a esta hora, dissertar em vez de estar com esta conversa de nada? Pois, acredito que sim. Por exemplo, poderia falar sobre a beleza monástica dos lírios ou sobre a lucidez sensata dos substantivos que não carecem de adjectivos ou ainda da delicadeza angelical dos olhares que caem, oblíquos, sobre o meu decote. Ou poderia falar da tristeza dos ramos nus dos plátanos ou da alegria saltitante dos passarinhos que cantam nos beirais dos blogs. Poderia, claro, mas não seria a mesma coisa.
É que aqui não há regras, não há agenda, não há propósito. Aqui não há altares, muito menos santinhas. Aqui, quem vem, vem para jogar. Mesmo que seja ao jogo da verdade ou consequência. Ou apenas para jogar às verdades. Ou para esconder o jogo. Ou para piscar o olho. Ou para mostrar as cuecas.
E espera-se que quem cá vem alinhe. E dance. E escute. E olhe. Ou seja respeitador e desvie o olhar.
Ou não.
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E para os que não acham graça a estas desconversas, tenho aqui dois vídeos muito bons que espero que compensem a falta de substância das minhas desnutridas palavras.
Na casa de Maggie Gyllenhaal e Peter Sarsgaard em Brooklyn
Arte é vida - A colecção de Marianne e Pierre Nahon
Já aqui o digo desde o início: estávamos habituados a respeitar a profissão dos enfermeiros. Víamo-los como gente digna, dedicada a bem servir a vida humana, gente em quem podíamos confiar. Os verbos estão no passado: infelizmente, não mais o poderemos fazer.
Ana Rita Cavaco, essa sinistra criatura -- presumo que numa de fuga para a frente (e ela saberá porquê e não vou ser eu a dizer que as denúncias sobre a forma como exerce o cargo podem ter a ver com isso) -- destruíu (e quase me apetece dizer que o fez de forma criminosa) essa boa imagem.
Os sindicatos -- que parecem subjugados às orientações da passista Cavaco, PSD encartada -- encabeçados por criaturas que parecem igualmente sinistras, têm feito o resto.
Estou chocada com a frieza dos enfermeiros que afirmam com frieza que, se for preciso, se não os deixarem fazer a sua sinistra greve às cirurgias, faltam ao trabalho. Pelos vistos podem dar 5 dias seguidos de faltas injustificadas ou 10 interpolados sem que nada lhes aconteça. E sabendo-se que ninguém se submete a cirurgias no Serviço Nacional de Saúde por desporto mas por necessidade de saúde, não consigo imaginar o que é estar doente, mal, sem qualidade de vida, com medo, e ter que ver a vida adiada, à espera que os enfermeiros continuem a brincar com a saúde e a vida dos portugueses, em especial dos que não têm posses para ir a hospitais privados. Estou chocada por saber que, por não terem respeitado sequer os serviços mínimos, foram adiadas cirurgias a neoplasias graves, a crianças, etc. Fico chocada. Aliás, creio que todos os portugueses com um mínimo de humanismo e decência estão igualmente chocados. O que esta gente está a fazer é simplesmente imperdoável.
Querem reformar-se antes do resto da população, querem aumentos de 400 euros, querem sabe-se lá o quê que vão acrescentendo à medida que lhes apetece. Querem privilégios que exigem sob chantagem sobre os mais indefesos. É imperdoável. E, face a este imoral comportamento, será só a legitimidade que está em causa? Parece-me bem que não.
Quando está a vida das pessoas em jogo, actuar desta forma tão fria, gananciosa e sinistra (repetirei mil vezes a palavra sinistra, se necessário for), parece-me coisa criminosa. Ilegal.
E há aquela surpreendente verba que recolheram através de crowd funding, já acima de 780 mil euros, e através da qual os grevistas recebem um dinheiro que ainda não percebi se é limpinho de impostos. E há aquele mistério sobre quem são os generosos beneméritos que se prestam a financiar estes actos de malvadez.
É que uma greve é um movimento reinvindicativo contra a entidade patronal. Ora esta greve é exclusivamente contra doentes que necessitam de ser operados, gente que fica a sofrer, que se arrisca a morrer. Que movimento é este?
E, depois, tenho aquela dúvida de fundo já antes aqui formulada: os enfermeiros no sector privado ganham melhor do que no SNS? os enfermeiros nos hospitais privados têm uma carreira mais promissora? os enfermeiros nos hospitais privados têm melhores condições de trabalho? os enfermeiros nos hospitais privados não têm razões de queixa ou reivindicações?
Poderia dar já uma resposta que tornaria esta greve ainda mais intrigante. E revoltante.
Mas fico-me por aqui. Os jornalistas que divulguem. Já começaram a fazê-lo mas ainda de forma muito incompleta. Escavem. Encontrem enfermeiros que trabalham simultaneamente nos dois sectores. Investiguem as condições num e noutro. E, quando digo as condições, digo as condições todas: condições de trabalho, ordenados, subsídios, garantias. Tudo. Percebam porque armam este escarcéu num lado e nem piam noutro. Investiguem. E os políticos acordem, façam o trabalho de casa.
É que só isso, arrisco eu a dizer, bastaria para desmascarar rapidamente esta sinistra ofensiva contra o SNS e contra o Governo -- e, infelizmente, contra os doentes.
E mais uma dúvida, que, também, já antes aqui formulei: não será caso para a rapaziada do Ministério Público avançar? Li que a ASAE já está em cima dos 'donativos' -- mas é pouco.
Quase a terminar: até há uns dias, andava incomodada com o silêncio de Marcelo sobre esta escabrosa situação. Honra lhe seja feita: já falou e falou bem. Mais: já deixou claro que há instrumentos jurídicos para se actuar. Actue-se, pois. Rapidamente.
E, para acabar, um apelo à consciência dos enfermeiros: reflictam. Querem ser vistos como uma classe de gente irresponsável, desumana, um bando de anjos da morte? É que, se não querem, dêem um passo atrás, acabem com esta actuação sinistra, peçam desculpa aos portugueses e, em particular, aos doentes.
A sua honra profissional está maculada, muito maculada, mas mais vale parar já do que persistir e vir a carregar com uma série de crimes às costas.
Há um ponto de apoio imaginário que dá para levantar o mundo: é a indignação. Nas mulheres, esse ponto obscuro no coração delas, que as faz profundas e sedutoras, é também a indignação.
Foi assim que aconteceu com a Callas. Tentem compreendê-la e não conseguem. Tentam interpretá-la na sua carreira amorosa e no discurso da sua arte. Não chegam a conclusão nenhuma. Ela foi uma mulher arrebatada pela própria humilhação. Traída, apreciada, castigada e caída em desgraça, a Callas perdura como a pessoa indignada que foi. Não contra os homens, os sistemas, os factos.
Simplesmente porque o seu ponto de apoio era o canto e este é, confidencialmente, a indignação pura que até o céu comove.
[in 'Caderno de Significados', Agustina Bessa-Luís]
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Vissi D'arte por Maria Callas
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A escolha das fotografias e do vídeo é de minha lavra.
Não sei se é da neblina, se é de estarmos envoltos em nuvens, se é mesmo assim. Ou se é dos meus olhos. Talvez seja. Quando se gosta muito de alguma coisa ou de alguém, parece que os contornos se esbatem, as arestas perdem relevância, as cores se tornam subtis, que tudo se adoça e aninha em nós. Sei disso. Mas que seja. É bom gostar muito de alguma coisa ou de alguém. E se tudo nos parece mais perfeito do que é na realidade, pois que assim seja.
A cada passo eu quero fotografar, olhar bem, guardar dentro de mim. Penso que era bom que o que por aqui vejo ficasse tatuado em mim, por dentro, onde o tempo não esbata. Gostava que, de cada vez que me entedie ou aborreça, pudesse trazer de volta estas imagens, embalá-las com carinho, apresentá-las aos outros: 'tomem, é também para vocês, vejam o que é importante, o que vai ficar para além de nós, para além de tudo, esqueçam os pequenos e sujos nadas, esqueçam os dias incolores, os afectos sem alma, esqueçam o que não vos comove, vejam, vejam esta natureza acolhedora, serena, afável'
Vejam a terra molhada, vejam as árvores nuas ao pé das de folha perene, vejam as cores, sintam com a água escorre dos troncos, dos ramos nus.
Vejam com os montes se deixam envolver pelo suave abraço da névoa, vejam com a graciosa mulher de pedra protege a criança, vejam como o chão está molhado, como a paz é tão boa, tão, tão plena de harmonia.
Vejam as casas tão bonitas, vejam as cores que os seus donos escolheram para as pintar, como quem pinta um livro de desenhos, vejam a neblina tão limpa, vejam como tudo é tão próximo de um sonho bom.
Vejam de novo o chão atapetado de fetos ruivos, vejam a macieza do musgo tão verde, vejam a transparência fresca da água que abre caminho e onde é tão bom mergulhar as mãos, lavar o rosto, e onde tudo parece tão, tão irreal.
E vejam esta árvore, uma de muitas, tão elegante ela é, tão elegantes todas, quanta beleza, quanto despojamento. Não poderia eu encostar-me a uma árvore assim e deixar que o meu corpo se fundisse com o corpo da árvore, eu feita árvore, eu ser das florestas, livre, livre, serena, imersa nas cores abstractas da natureza?
É que a pintura tem em si uma força inteiramente divina que não somente, como se diz da amizade, lhe permite tornar presentes os ausentes, mas ainda faz surgir após muitos séculos os mortos aos olhos dos vivos, de tal modo que são reconhecidos para grande prazer daqueles que olham com a maior admiração pelo artista.
Leon Battista Alberti, De pictura, II
A montanha Sainte-Victoire é o emblema da destituição do objecto. Eis um maciço que oferece, simultaneamente, a solidez de um corpo (que se mantém uno) e a realidade do tempo (que fluidifica tudo). Sainte-Victoire desaparece como objecto para reaparecer como corpo irradiante. A montanha pintada presentifica o tempo, a passagem que não se fixa a nenhuma posição, e a tela é o lugar da trepidação interna a cada forma (e a cada instante).
A tela abre -- dilata e planifica -- o instante pictural. Ela é a pele dos corpos ressurrectos, o exacto reverso de La peau de chagrin (esse outro extraordinário livro do Balzac sobre o desejo -- e que Cézanne tanto admirava). Ali, na vida, a pele não cessa de minguar na proporção inversa dos desejos realizados; aqui, na tela, a pele dos corpos excresce -- e a vida -- a vida desejante -- vai sempre além de si mesma. Na tela, uma outra vida eclode do corpo mortal.
Os devaneios da pintura,
os anelados cabelos do poema, o jorrar da música,
e também o respirar negríssimo
do medo e do desejo.
Tudo
baixo e liso como a terra e o verme,
a moleza da carne,
as ramagens que se esvaem na transparência dos rios.
Tudo
o que nos dá a ver este evangelho vivo
que reduz o homem à sua segunda natureza,
cega, insultuosa,
feita humilhação, pavor sem nome.
....
As pinturas de Cézanne representam a montanha Sainte-Victoire
Os textos (em prosa) são excertos de Incandescência [Cézanne e a pintura] de Tomás Maia
O poema é Tudo de Armando Silva Carvalhoin 'A sombra do mar'
Lá em cima, Angela Gheorghiu interpreta a ária "Vissi d'arte" na ópera de Puccini 'Tosca'
....
No post abaixo poderão ver uma anedota sobre um alentejano.
Estava sem saber o que fazer, agora que estás longe. As minhas irmãs vieram fazer-me companhia, tentam sempre animar-me. Animada eu estou, sinto é a tua falta, parece que nada faz muito sentido sem te ter aqui comigo. Durante o dia penso que te devia contar o que pensei, contar-te sobre a música que ouvi, relatar-te as conversas que tive. Mas, depois, ao falar contigo, não ia maçar-te com isso e ficava com tanta coisa dentro de mim, sem as partilhar contigo. Parece que nada vale muito a pena se é para ficar apenas comigo. Há uma dimensão que se acrescenta ao que se vive, que é a que resulta da partilha com quem conhece o nosso coração.
Então elas vieram, buliçosas, e as três escolhemos vestidos de verão, e os vestidos que escolhemos não tinham alças e mal cobriam o peito e então escolhemos blusinhas justas para vestir e despimos os soutiens, e vimos como os nossos seios permanecem iguais, pequenos, mamilos pequenos, peitinhos de adolescente, e rimos, e dissemos graças maliciosas, e depois escolhemos laços para pôr na cintura, cada laço de sua cor, e sapatilhas bordadas com brilhantes, e penteámo-nos umas às outras, e pusemo-nos com ar de noivinhas antigas e, rindo, saímos para o jardim e fizemos uma roda em volta da árvore e cantámos e dançámos. E voltámos a ser meninas, as manas sorridentes, as meninas com uma vida feliz pela frente.
Depois sentámo-nos na varanda, cansadas, e, ao verem-me calada, logo se puseram em minha volta, e desfizeram-me o penteado, e contaram-me histórias, tentaram fazer-me rir. Ri-me para não as preocupar, para que se fossem embora. Sei fazer de conta que estou contente. Mesmo elas, que me conhecem tão bem, não percebem, julgam que desviam o meu pensamento para sítios onde tu não existes. Deixo-as julgar, rio-me com elas.
Vendo-me alegre, foram. Vi-as saírem, conversando, de braço dado, cabelo solto, disponíveis para serem felizes. Viraram-se, fizeram adeus, atiraram-me beijos no ar. Retribuí, rindo.
Mal se afastaram, voltei para dentro. Olhei para o relógio. Vontade de falar contigo. Vontade de saber de ti, vontade de te ouvir a contares-me o que fizeste. Podias dizer coisas simples, assim: atravessei a rua, a árvore ao pé do semáforo está florida, almocei numa esplanada, pensei em ti, depois o sol batia-me na cara, não consegui ler, pensei em ti. Podiam ser coisas assim, simples, que eu ouviria com interesse, como se fossem histórias raras. Mas a esta hora podes estar a trabalhar ou em casa, não posso ligar-te. Tenho que esperar que me ligues, que me escrevas, que te lembres de mim.
Despi o vestido das flores, despi tudo. Fiquei nua. Olhei-me ao espelho, a pele branca, macia, sem préstimo. Senti a falta do teu olhar que acariciava a minha pele, que procurava o meu olhar. Querias perceber se eu te queria tanto como tu me querias. E depois olhavas o meu corpo que dizias que tinha sido feito para ti. Lembras-te de como olhavas o meu corpo? Lembras-te de como querias que eu me despisse devagar para olhares? Lembras-te de como querias aproximar-te e eu te afastava até que não aguentasses mais? Ah, como eu gostava de me despir para ti, de deixar que o sol entrasse para pousar no meu corpo, para que me visses envolta em luz. E tu dizias, afasta-te da janela, ainda te vêem e eu provocava-te, aproximava-me ainda mais, e dizia, pois que me vejam, que vejam como me dispo para ti, para que me vejas nua, tua. E fechava os olhos, e dizia, se eu não vir, também não me vêem a mim, e tu dizias, eu vejo-te, e eu dizia-te, ah, mas eu quero que me vejas, é para ti que danço ao sol, e o sol dançava na minha pele e tu que eu fosse mas é para perto das tuas mãos. E eu dizia, já vou, quando o meu corpo não puder esperar mais, quando as tuas mãos não puderem esperar mais. E tu dizias, já não posso esperar mais. Ainda te lembras?
E, como eu não fosse logo, insistias, vem, traz o teu corpo para os meus braços, vem, vem que não vivo sem o teu corpo junto ao meu, vem que os meus braços ficam vazios sem o teu corpo, vem, vem.
E, então, eu ia, e ia devagar, e ia antecipando o prazer de me ter entre os teus braços que me abraçavam com tanto amor, como se não fossemos separar-nos nunca. Lembras-te?
E assim estive, envolta em lembranças, em silêncio e saudades, em frente do espelho, até que a tarde tombou e trouxe o véu que prenuncia o anoitecer. Sozinha, num quarto quase sem luz, sem a tua voz, sem o teu olhar, olhei o meu corpo inútil. Podia ter tido pena de mim. Mas não tive. Já não te lembras de mim. Não mereces estas minhas tão fundas saudades.
Depois tive uma ideia: vesti o vestido com que um dia me sonhei, e assim, vestida de branco, voltei ao jardim, entrei pelos fetos macios, deitei-me como numa cama feita para o amor, acariciada pelas folhagem macia como os teus dedos. Que saudades tenho dos teus dedos, eu era uma dócil harpa nos teus dedos, lembras-te?
Esperei a noite, que a noite esconde segredos, por vezes traz mistérios que se desvanecem pela aurora. Se me ligares ou escreveres não me encontrarás. Pensei: se um dia voltares a lembrar-te de mim, talvez já eu não me lembre de ti, talvez já me tenha apaixonado pelos mistérios que a noite esconde.
Fechei os olhos e deixei que o sono ou o sonho ou os segredos tomassem o meu corpo. O meu corpo é o corpo de uma mulher livre. Lembras-te disso, não te lembras?
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As fotografias fazem parte da exposição 'Vogue: Like a Painting' que pode ser vista no Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid entre o próximo 30 de Junho e 12 de Outubro.
A primeira fotografia é One enchanted evening, Taormina, Sicilia de Peter Lindbergh, 2012.
A segunda não sei.
Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini
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E, por falar em liberdade, desçam, por favor, até ao post seguinte.
Ali fala-se da liberdade e da dignidade no berço da democracia e junta-se um link para um magnífico post onde se desvendam alguns mistérios.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado feliz, sereno.
Depois de um dia de trabalho, a mulher foi a um debate seguido de concerto. São normais estes convites. O local não podia ser mais agradável. Um edifício apalaçado com um grande jardim mesmo no meio de Lisboa.
No entanto, tinha estado com uma certa dor de cabeça. Tinha acordado de madrugada, tinha ficado com calor apesar da janela estar aberta. E as muitas reuniões do dia, umas complicadas, tinham ficado a desfilar na sua mente. Isso e outras coisas. Muita vida a decorrer em muito pouco tempo, muitas camadas de vida, umas visíveis, outras ocultas, muita canseira, muito livro para ler, muitas viagens por cumprir, e saudades, e incompreensões e preocupações, e, em cima de tudo, muito sono para pôr em dia; e logo, a meio da noite, o sono haveria de se evaporar.
Finalmente, já de manhã. adormeceu. Passado um bocado tocou o despertador e, obrigada a levantar-se de imediato, não conseguiu ter um despertar progressivo e, logo ali, a cabeça mostrou desconforto.
E foi em crescendo, ao longo do dia. Desabituada de comprimidos, foi esperando que passasse por si. Mas não passou.
Portanto, pouco antes da hora de sair da empresa para atravessar a cidade em direcção ao local do evento, hesitou. Pensou que devia era ir para casa, meter-se debaixo do chuveiro, comer um pêssego e um iogurte, atirar-se para o sofá e adormecer. Mas o programa e o local eram aliciantes. Foi à copa, preparou uma infusão. Sentou-se a bebê-la devagar. Sentiu que talvez estivesse a melhorar.
Foi à casa de banho, viu-se ao espelho, avaliou-se. As olheiras estavam fundas mas nada de dramático. Foi, então, ao gabinete, desligou o computador, avisou que ia sair mais cedo. Entrou de novo na casa de banho, passou uma sombra nos olhos, nos lábios um gloss em tom nude, passou o pente ao de leve pelo cabelo de modo a mantê-lo com ar despenteado. Despiu a blusa, ficou apenas com o top. Desceu à garagem, dirigiu-se ao carro, trocou de sapatos, os de salto alto normal por outros mais elegantes, mais altos.
E arrancou.
Na rua, deixou-se ir com a janela do carro aberta. O ar fresco da tarde sabia-lhe bem. Ajeitou o retrovisor e viu-se ao espelho. De repente, lembrou-se de uma coisa. Que esquecimento. Na estação de serviço mais à frente parou. Tinha uma fita preta, larga, na carteira. Apanhou o cabelo ao de leve com uns ganchos quase invisíveis e prendeu-o melhor com a fita a que deu um nó de lado, as pontas curtas espetadas, quase um turbante. Riu. Será que já não tinha idade para isto? Riu de gosto. Pensou: que se lixe. Arrancou, prego a fundo, a janela aberta.
Na rádio, a Callas interpretava o O mio babbino caro. Perfeito.
Quando saíu do carro, vestiu o blaser. Atravessou a rua. A sala estava cheia. Sentou-se numa das filas de trás. Debatiam a futuro da Europa, falaram da Grécia, uns a favor de uma valente lição a ver se aqueles malandros aprendem, outros que o problema é político e que é melhor não abrir a caixa de pandora. Tretas. O drama grego já a servir de entretenimento de fim de dia a gestores, empresários, advogados, jornalistas. Olhou em volta. Não viu jeito de estarem ali académicos, artistas, gente desempoeirada. Tudo executivos e a fauna que os rodeia. Uma maçada.
Levantou-se, então, e foi espreitar as salas em volta. A dor de cabeça tinha desaparecido. Sentia-se, de repente, aliviada, a cabeça leve. E toda ela se sentiu leve, livre.
Começou, então, a ouvir a música. Era chegado o momento musical. Então parou. A mesma música. Espreitou. Uma jovem cantava o que tinha vindo a ouvir no carro.
Em silêncio foi avançando pelas salas. Esculturas, pinturas, belos cadeirões revestidos a tapeçaria, pesados cortinados, um conforto requintado, uma decoração que preservado a riqueza de outros tempos.
De repente, sentiu-se observada. Um homem estava junto a uma janela mas, em vez de olhar para fora, olhava-a a ela. Sobressaltou-se. Colocou a mão no peito, como se querendo acalmar o coração. Disse: 'Assustou-me...'. Ele disse apenas: 'Não fiz nada'. Ela desculpou-se 'Sou eu, sou assustadiça e também não pensei que estivesse aqui alguém'. Ele disse: 'Se quiser, vou-me embora'. Ela sorriu, 'Que ideia'.
Então ele disse 'Estava a ver o jardim, daqui vê-se um recanto, a esta hora está bonito'. Ela aproximou-se, 'Que bonito, que paz'. Da outra sala chegava o canto, a luz que vinha da rua era uma luz coada, o jardim lá fora estava envolto em dourado: um momento perfeito. A mulher ficou ao lado do homem. Em silêncio. Depois, quando ela se virou para se afastar, o homem começou a dizer qualquer coisa em voz baixa, uma toada. Ela parou, pôs-se a ouvir. Aos poucos a sua pele foi ficando arrepiada. O homem, olhando o jardim, dizia
paraíso de espaços múltiplos
e velozes,
entranhado em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses um espelho que a árvore despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado,
brilhando.
A mulher ficou parada a olhar para ele. No fim, como ela o olhasse, em suspenso, ele disse: 'Herberto'. Ela quis sorrir mas estava quase emocionada, e surpreendida. 'E sabe de cor?'. Ele encolheu os ombros, 'Sei algumas coisas'.
Então ela aproximou-se e com ar zangado disse: 'Fez mal'. Ele admirou-se: 'Fiz...?'. Ela confirmou 'Muito mal'.
Sério, ele tentou perceber: 'E posso perguntar o que fiz eu de tão mau assim?'. Ela fez um ar ainda mais zangado, 'Não se faça de inocente. Fez mal e vou ter que o castigar'. Ele sorriu ao de leve, 'Assim? Castigo directo? Sem acusação? Sem culpa formada?'. Ela zangou-se ainda mais: 'Ora, não brinque com coisas sérias; acha que podia dizer um poema destes, num fim de dia destes, com uma música de fundo destas, a olhar pela janela para um jardim destes, e nada lhe acontecer...? Não brinque comigo...!'.
Então tirou a fita do cabelo, apeteceu-lhe sentir os cabelos soltos sobre o rosto. Encostou o homem à janela. Depois ainda ensaiou puxá-lo a si pela gravata mas, vendo o ar assustado dele, desistiu. Resolveu, então, tratá-lo bem. Chegou-se, encostou o seu corpo ao corpo do homem, sentiu que ele estava expectante, sem saber o que fazer. Ela não se importou com o espanto dele. Roçou o seu rosto pelo rosto dele, sentiu o corpo dele no seu, sentiu o calor que vinha do corpo dele, o perfume dele, deixou que ele sentisse o seu.
Depois afastou-se, virou-lhe as costas. Abriu a portada de vidro e foi para a varanda. Ele foi atrás e, cavalheiro, colheu uma rosa branca de um grande vaso; num gesto tímido, ofereceu-lhe.
Ela disse, 'Não pense que é por me oferecer uma rosa branca que está absolvido'. Ele olhou-a, 'Eu? Não penso nada. Deixei de pensar'.
Sedutora, ela brincava com a rosa, mas não abrandou, 'Quê...? Está a querer passar por inimputável...? Não... Vai ter que pagar, não pense...'. Ele disse: 'Grande foi, então, o meu pecado'. Ela assentiu, ar de caso, ' Foi. Foi mesmo. Vai ter muito que rezar'.
Depois afastou-se e virou-se para trás como que querendo, de novo, puxá-lo pela gravata, como se fosse uma trela. O homem hesitou. Ela largou-o. Ele ficou parado.
Ela avançou, entrou noutra sala, escondeu-se. Pouco depois, ouviu-o a entrar. Procurava-a e ela escondida. Quando ele saíu para outra sala, ela foi atrás dele. Via-o procurando por ela. Perseguiu-o. Ele inquieto e ela atrás, predadora.
Até que viu um outro homem, mais jovem. Disse, então, em voz alta para o diseur, que apanhou um susto: 'Então está com medo...? Anda a fugir de mim...?'. O homem disse 'Não, andava era à sua procura'. Ela disse, 'Não se arme em simpático, não pense que escapa ao seu castigo'.
Ele riu, 'Pronto, rendo-me, faça o que quiser'. Ela disse, implacável, 'Ah pois faço... E sabe qual vai ser o seu castigo?'. Ele sorriu 'Não faço ideia'.
Ela empurrou-o para a sala onde estava o homem mais jovem e disse 'Vai ensinar-lhe um poema para ele também me dizer, quero que me digam poemas, ora à vez, ora em coro, baixinho, quase num sussurro. Quem disser melhor, ganha um presente'. O mais jovem, muito admirado, disse, 'Não sei se vou ser capaz'. Ela riu-se, ficava amoroso com aquele ar atrapalhado, o aprendiz. Ela tranquilizou-o 'Será, será. Cuidarei que o mestre seja paciente. E temos a noite toda para o ensinar'. E, maliciosa, olhou o diseur. Este corou. Ela sorriu e fechou-se lá dentro, com eles.
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O poema é um excerto retirado de Photomaton & Vox de Herberto Helder.
"O mio babbino caro" da ópera Gianni Schicchi (1918), de Giacomo Puccini é interpretado por Maria Callas em Paris, Junho de 1963.
O vídeo, muito recente, é The AristoCrazy Collection, da campanha Outono/Inverno 2015 relativa aos elegantésimos sapatos de Giuseppe Zanotti.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quinta-feira.
(E não é que escrever esta historinha infantil me fez passar a dor de cabeça...?
A sério. Passou mesmo.
Ora aí está: quando tiverem uma dor de cabeça, nada de aspirina ou ben-u-ron:
basta escrever uma história infantil. Boa. Já tenho matéria para um paper científico)
Na fisioterapia, enquanto faço alguns tratamentos, as fisioterapeutas arranjam-me revistas. Aceito todas as que me dão não apenas porque me despertam curiosidade como tento, desta forma, não adormecer.
Fico a saber que afinal o Manuel Luís Goucha não se zangou com o companheiro como se chegou a noticiar, que os seus natais sempre foram, desde sempre, quatro gatos pingados, que a Rita Pereira ainda sente saudades do Angélico e está todas as semanas com a mãe dele a quem presta o apoio possível, que uma porção de artistas de novelas perderam a exclusividade com as estações, que na RTP várias estrelas tiveram que baixar o ordenado, que as que tiveram bebés estão radiantes e dizem que é melhor do que pensavam, que a Alexandra Lencastre tem gravado umas cenas escaldantes com o ex-marido Virgílio Castelo e que toda a gente acha que há química entre eles mas que eles dizem que é uma química profissional, que Luciana Abreu teve uma crise de rins antes de estrear um musical no gelo, que a namorada do príncipe Andrea de Mónaco está completamente grávida, que o Senhor Fernando, pai da Fanny, se tem metido em trabalhos com umas raparigas esculturais que não sei se são da Casa dos Segredos ou de outros carnavais, que meio mundo discute se o Cláudio, salvo erro, um rapaz da última Casa dos Segredos, era gigolo, prostituto, homossexual ou outra coisa qualquer… e poderia continuar por aqui adiante pois vou tomando boa nota de todas estas interessantes notícias.
Por vezes, quando dou por ela, a revista já tem mais que um ano mas isso não desmerece a relevância do relatado. Isto é na parte da electroterapia.
Já na parte do ginásio a coisa fia mais fino.
Aí as revistas abordam temas mais psicológicos, quando não mesmo filosóficos, De que gostam as mulheres nos homens? É normal uma mãe ter preferência por um dos filhos? O auto-prazer é benéfico na vida sexual do casal? Quando a melhor amiga é amante do marido.
E tudo nesta base mas que não se pense que a coisa se fica pela teoria. Não senhor. Tal como a AESE (a escola de direcção e negócios, por acaso ligada à Opus Dei) tem como método de estudo o chamado ‘método do caso’, também aqui se segue esse método. Há sempre umas quantas pessoas, mulheres na maior parte dos casos, que relatam os seus casos pessoais. A Ana, 34 anos, confessa que antes não pensava assim mas que, há dois anos, por acaso, etc, ete, etc. – ou seja, muitos testemunhos, muita autenticidade. Além disso, essas revistas têm páginas e páginas com guias de compras e tenho descoberto muitas lojas e muitos produtos com que nem sonhava. Tudo coisas muito úteis.
Saio de lá a andar com uma leveza fantástica, muito zen, e com uma outra forma de ver as coisas.
(Vocês não conseguem ver a minha cara enquanto escrevo pelo que terão que tentar adivinhar qual a minha expressão quando digo coisas deste calibre.)
No entanto, ao fim deste tempo todo, o stock esgotou. Nas últimas sessões já andei a ler em repetido, tentando mentalmente estabelecer uma timeline (ou, se quiserem que me exprima de forma mais corrente, uma ordem cronológica) de forma a perceber se afinal quem casou foi a Pimpinha ou a Isaurinha, se a mulher do Nicolau Breyener tem ciúmes da Fernanda Serrano ou se se aquilo foi apenas uma 'boca' isolada e já está tudo bem.
Mas isso já é a areia a mais para a minha camioneta. E então, no último dia, enquanto estava na marquesa, pus uma revista de lado e declarei que a partir de agora tinha que ter um livro, que já não dava para continuar a ler aquelas revistas porque já sabia de cor o nome dos namorados de todas as vedetas que por ali desfilavam.
Quase preocupada, a fisioterapeuta disse, voz prestável, solicitamente querendo atender à reivindicação ‘Ah... está bem. De que é que gosta?’. Tão inesperado isso foi a pergunta que, durante uns segundos, tive que processar. Depois percebi que se estava a oferecer para trazer de casa um livro para eu ler. Agradeci a gentileza mas disse-lhe que não se preocupasse, que eu mesma traria. Muito simpática perguntou o que tenho eu andado a ler. Tive que processar de novo. É que nem sei e por isso tive que dar uma resposta vaga, ah, vários. É que abro e leio e vou abrindo e lendo vários, sem ordem nem disciplina. Já não tenho a preocupação de chegar ao fim de todos os livros que começo ou de ler todas as linhas de uma página. Agora leio enquanto gosto (e por vezes gosto de tudo, da primeira à última linha – mas nem sempre), leio anarquicamente, misturo géneros, autores, leio do princípio para o fim, do meio para o fim, como me apetece, conforme posso face à minha escassa disponibilidade.
Claro que não disse isto à jovem pois não quero que fique mal impressionada comigo, não vá ela, pensando que sou maluca, tratar-me com menos cuidado.
Hoje de manhã, antes de sair de casa, estive aqui a hesitar, o que hei-de levar? Não convém que seja coisa que requeira concentração ou raciocínio apurado pois há interrupções, ouvem-se conversas dos vizinhos do lado, temos que interagir de vez em quanto com as raparigas, etc. Hesitei entre Os logocratas de George Steiner, livro que estou com curiosidade de ler, constituído por ensaios, entrevistas e uma novela; e o que acabei por levar.
É que este não seria uma transição muito brusca face às revistas com que tenho ocupado a minha mente enquanto lá estou, nem eu nem a fisioterapeuta estranharemos muito. Divas rebeldes de Cristina Morato, relatando a vida de sete mulheres, Maria Callas, Coco Chanel, Wallis Simpson, Eva Perón, Barbara Hutton, Audrey Hepburn e Jackie Kennedy.
Vou ainda na primeira, na Callas. Lê-se muito bem.
Ao ver o livro, a fisioterapeuta ficou interessada e falou-me também na Ines de Fressange que agora faz roupa para a La Redoute, se bem percebi. Gostei da forma entusiasmada como ela falou e acho graça à curiosidade e atenção com que me ouve.
Um dia destes a ver se vos transmito alguns aspectos relevantes da matéria lá contida. Para já posso desvendar que a Callas começou por ser muito gorda, pesando entre 90 e 100kg e que, quando fez uma dieta valente, perdendo trinta e tal quilos em dois anos (o que a deixava com um humor insuportável), quis seguir como modelo de elegância, a Audrey Hepburn. Os vestidos, a maquilhagem, o penteado eram inspirados naquela que ela considerava o seu modelo de beleza e perfeição. Também poderia falar-vos do que se passou a bordo do iate Christina quando foi fazer um cruzeiro com o marido, Meneghini, no barco do Onassis que também ia com a mulher e amigos, mas isso é conversa que merece mais que duas linhas.
Agora vou-me deitar que estou perdidinha de sono. Jantei já passava das 10 da noite, estou com sono. Por isso, desculpem esta minha saída à francesa mas já mal consigo abrir os olhos.
*
Antes de me ir embora, ainda vos maço mais um pouquinho. Se quiserem ir até ao meu Ginjal(que ainda está em votação aqui *) hoje escrevi sobre um homem solitário que ainda não ganhou coragem para deixar de o ser. Quem me inspirou foi António Ramos Rosa. A música é um novo momento feliz: Katia Guerreiro e Martinho da Vila. Uma festa.
(*) De notar que agora, ao votar, aparece uma mensagem em inglês dizendo que é necessária uma validação ou coisa que o valha e aparecem aqueles irritantes caracteres ou letras inclinadas. O que há que fazer é reproduzir o que lá estiver e votar. Isso deve-se, certamente, a que desconfiaram que havia programas informáticos que faziam votações por forma a gerar muitos votos em alguns blogues. Por isso, agora para terem a certeza que são votos a sério, exigem isso. Nada de mais, apenas mais chato.
Para o caso de não terem dado por ela, este é o segundo post que escrevo hoje - já a seguir, se descerem um pouquinho mais, temos os 56 anos da futura avózinha Carolina de Mónaco. Candidatos a lobo mau é o que não deve faltar...
PS: Se neste texto descobrirem vírgulas à solta, letras trocadas ou acentos que deviam respeitar a gravidade da situação mas, em vez disso, se lhes deu uma crise aguda, não levem a mal mas é que estou mesmo perdida de sono.
*
E, com isto, me vou. Desejo-vos um dia muito feliz.