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Manuela Moura Guedes, de entrevistadora temida a dona de casa desempregada,
confessa-se agora sozinha e isolada
Capa da edição da Flash agora nos escaparates |
Talvez sejamos mesmo uma ilha, nós próprios rodeados de gente. Ou rodeados de nada, um imenso vazio à nossa volta. Ou nós e outras ilhas, um pequeno arquipélago na imensidão do espaço.
Talvez a lente de algum observador invisível suspenso no espaço, a que alguns chamarão deus, consiga ver o infinito espaço.
Nele verá constelações boiando, buracos negros, imprevistos movimentos; e talvez consiga também ouvir o silêncio, o imenso silêncio sideral. Ou uma música por nós nunca sequer antecipada. Curioso, atento aos pedidos que lhe chegam e infinitamente capaz de a todos analisar, esse distante e piedoso observador rodará a lente para se aproximar.
A sua visão entrará, então, apenas numa pequena fracção de espaço onde verá um imenso caldo de luz. E aproximará ainda mais e verá estrelas, umas muito antigas, luz branda, coada, outra maduras, e outras muito jovens, chispando, uma luz intensa e vibrante. E verá silenciosos planetas. Grandes, pequenos, gélidos, flamejantes, cinzentos, discretos, exuberantemente anelados: vários planetas.
E, tal como por vezes lhe acontece, um dia, no meio de tudo, verá um pequeno planeta azul. Pequeno, um pequeno ponto florindo no imenso espaço.
Aproximará ainda mais a lente. Um mar muito azul, serpenteando ao longo do verde, do branco, alguns salpicos de castanho ou amarelo: uma bolinha de brincar. E ao observador longínquo apetece-lhe brincar.
E então aproxima ainda mais a lente e começa a ver uma superfície recortada, parece quase um bicho de várias patas que se desenha sobre uma superfície de água.
Aproxima ainda mais a lente e vê casas, muitas casinhas, e estradas de brincar, comboiozinhos que atravessam os campos e barquinhos que cruzam os mares.
Ao longo de alguns anos alguém se entreteve a brincar, a fazer construçõezinhas com muitas luzinhas, lagos, jardins, um pequeno mundo em cada bairro.
Aproxima ainda mais, quase no limite. Vê figurinhas ínfimas, insignificantes criaturinhas, pontinhos. Animais, pessoas, árvores, rochas e outras pequenas coisas, umas quietas, outras mexendo-se.
Aproxima ainda mais a lente e foca-se nas pessoas mas tem dificuldade em distinguir uns de outros, são todos demasiadamente iguais. Uns choram, outros riem, uns andam vestidos, outros nus, uns cantam, outros dançam, outros guerreiam, outros insultam-se, outros abraçam-se.
Um deles sou eu, outro será você que me lê, quase iguais, quase irrelevantes.
E, no entanto, vistos não a esta escala infinita mas à nossa e limitada pequena escala que importantes nos achamos.
Mas não somos importantes. Somos pequenos, frágeis, pequenos seres que aparecem e desaparecem numa infinita sucessão de aleatoriedades.
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Uma ex-colega minha, de que aqui falei há dias e com quem trabalhei durante anos, sempre foi uma excelente pessoa, irrepreensível, nunca lhe conheci, com ninguém, nem o mais leve desentendimento. Frontal, sincera, trabalhadora, bem disposta, conciliadora. Uma vida tranquila, saudável. Talvez por isso, por ser assim, nunca se lhe tenha conhecido doença. No entanto, dentro dela uma pequena bolha silenciosa estava em contagem decrescente. Rebentou no outro dia, sem aviso prévio, sem qualquer sinal.
Foi operada e a operação correu bem. Está a reagir muito bem e toda a gente está muito animada. Diziam-me hoje que já vai respondendo a estímulos, mostra reacção quando se fala com ela, tentou abrir o olho e tentou olhar… enfim, devagarinho, vai melhorando.
Uma mulher dinâmica, independente, que vivia a ajudar os outros, passou num instante a uma criatura indefesa, dependente, numa situação em que abrir um olho já é uma vitória que a todos enche de esperança.
Precária, pois, a nossa condição.
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Vejo também na capa da revista Flash uma mulher que em tempos foi poderosa.
Nos tempos vitoriosos do Jornal Nacional na TVI ela era arrogante, quase ofensiva, permitia-se quase agredir os convidados, interrompia-os, insinuava maus comportamentos, sugeria más práticas, derrubava reputações, agrediu verbalmente, por mais do que uma vez, o primeiro ministro deste país a quem mostrava odiar – e agora aparece-nos quase como uma caricatura de si própria, uma mulher decadente, uma pose de vedeta arruinada.
A cabeça pende sobre o ombro, a mão eleva-se sem energia para tapar o decote, hesitante no agarrar da estola de pele que ali quase parece despropositada. Vê-se que tenta sorrir mas não consegue, e os lábios excessivos e excessivamente pintados tornam-na triste e quase grotesca. Olho-a e sinto quase pena.
Manuela Moura Guedes não previu, certamente, no período áureo da sua carreira, que não seria poderosa e temida toda a vida. Leio na capa da revista que está desempregada há dois anos, que queria trabalhar, que é uma dona de casa insatisfeita, que passa o dia a fazer limpezas e a cuidar dos filhos, que se sente sozinha e isolada. Passou de moda, passou à história. A sua glória alimentava-se do ódio que sentia ao socratismo que ela ajudou a derrubar. O socratismo está morto e a glória de Manuela Moura Guedes também.
Curtos e incertos são, pois, os caminhos da glória.
Curta, incerta, precária, insignificante a nossa vida. Que a usemos, então, enquanto podemos, da melhor forma, com generosidade, humildade e leveza, sentindo a beleza do que nos rodeia, agarrando cada instante, certos da volatilidade da nossa sorte. Ao menos isso. Não somos estrelas, ninguém o é: somos menos que ínfimos pontos no universo.
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Saíu tão longo este texto... Mas, mesmo assim, permito-me ainda convidar-vos a virem comigo até ali ao meu outro lado, até ao
Ginjal e Lisboa. Hoje temos uma estreia, José Gomes Ferreira. E em volta do seu poema escrevi palavras que contrariam o poema, levada pela fotografia que gostava mesmo que fossem ver. Nos meus passeios testemunho situações do além e a que ali reporto é, seguramente, uma delas. A música é, de novo, um momento feliz, João Gil e Jorge Palma.
Senta-te aí.
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E nada mais por hoje. Apenas desejar-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira, cheia de luz.