No post abaixo já falei do admirável mundo invisível que vive junto a nós. É um dos temas que muito desperta a minha atenção: a natureza tal como geralmente não a olhamos, a beleza quase desmedida do invisível.
Não sabemos nada. Nem do que nos rodeia nem do que vive dentro de nós.
Ou o que somos sem percebermos porque o somos.
Ou o que somos sem percebermos porque o somos.
É o caso agora deste post. A história não é nova mas, no outro dia, Leitor que vive no meio de objectos que um dia foram caros a alguém e que, mais tarde, foram postos à venda, enviou-me referência a este caso que, na altura, deu que falar.
Mas vamos com companhia: Solveig Slettahjell em "Wild Horses" (que acabei de conhecer aqui)
Vivo rodeada de livros, de fotografias, de quadros, de objectos que me encantam, uns oferecidos outros adquiridos. Pode ser uma caixinha de música em madeira pintada em rosa velho e ouro, adquirida junto ao lago de Zurique, pode ser uma peça Armani em biscuit, pode ser um castiçal, pode ser um leque com bem mais de um século. Ou pode ser um pequeno galo de chapa pintada, de corda, comprado numa feira, que faz a delícia das crianças e que, por isso, passa temporadas desaparecido, para aparecer mais tarde onde menos se espera. Tantos objectos de que me rodeio. E livros. Tantos livros. Quando os vêem, perguntam-me sempre quando os vou conseguir ler. Tantos que nunca vou conseguir ler.
Estou a escrever e nesta mesa mal tenho espaço para o computador, cercam-me pilhas de livros, o Montedor de J. Rentes de Carvalho mesmo aqui ao meu lado. Vou folheando, lendo ao acaso, pois sempre é assim que tomo o pulso aos livros
A razão deste contar deve ser bem pequenina e sem importância, que mesmo quando paro e me pergunto a não encontro. Um passado assim, sem colorido, sem dor a que possa dar dimensão, os meses contados como horas, as horas arrastadas como anos, uma névoa, nada do que prometiam os livros, nada do que pediam os sonhos, 'os melhores anos da tua vida' nem esbanjados nem gastos, perdidos, como se perde uma bugiganga. Que quero eu?
Poderia ficar o resta da noite a espreitá-lo-lo, a tentar reconstituir o fio à meada através da leitura assim, solta, até não resistir a lê-lo a preceito, percorrendo-o então como se percorre uma casa já conhecida.
[Ando com vontade de ter aqui J. Rentes de Carvalho a dialogar com Adélia Prado - aqui comigo, aqui convosco. Acho que pode resultar numa conversa gostosa. É gente que anda em sítios altos, a sua escrita tem oxigénio. Um dia destes talvez.]
E as caixinhas de porcelana? De vidro? Tantas, sempre que via uma que achava muito bonita trazia-a para casa. Agora já evito.
Um dia quem ficará com tudo isto? Terão as suas casas, não terão onde pôr tantos livros, tantas caixinhas, tantas molduras.
Gostava que fossem como eu que quis ficar com coisas dos meus avós ou tias, coisas que mais ninguém queria. Lençóis bordados, copos de vidro coloridos, o cadeirão onde o meu avô se sentava, Mas eu tenho a sorte de ter duas casas.
E quando eu for velha e já não conseguir mover-me entre as duas casas?
Tenho uns amigos que também têm duas casas, duas casas enormes. Quando os pais dele morreram, mudaram-se para lá, uma moradia enorme, a casa da infância e juventude dele, na Linha, perto do mar. E têm a outra no campo, enorme também. Ela é como eu. Rodeia-se de tralha de toda a espécie. Mas acho que é pior pois vai muito a antiquários, tem peças enormes, oratórios, santos, jarrões, e tem a mania dos crucifixos, tem-nos de todos os tamanhos e feitios. No entanto, há tempos ele disse-me que estavam cansados de tanta coisa, que tinham vontade de se desfazer de tudo, que a filha não liga a nada daquilo e o filho odeia. Que estavam a pensar vender a casa da Linha, ficarem para já com a casa do Alentejo e, em Lisboa, comprarem um andar pequeno, um T1, no Chiado ou por aí. Fiquei chocada. E as coisas? Ele disse: Vendemos tudo. É o melhor. E para que é que aquilo serve?
Ainda não o fizeram. Dá muito trabalho e ainda não tiveram motivação para o fazer mas ele diz que um dia o farão.
Eu acho que não conseguiria desfazer-me de todas estas minhas coisas, sinto necessidade de me sentir cercada pelos que me são queridos e pelas minhas coisas.
Mas também admito que possa chegar o dia em que não queira quase nada, só o afecto dos meus, e que tenha vontade apenas de levar uma vida simples, varrer a casa, ir à praça, fazer o almoço, passear, ver o mar. Mas sempre com alguns livros.
Mas, enfim, isto veio a propósito da tal história.
Uma mulher teve tudo o que quis, fama, amantes, riqueza. A sociedade reconhecia-a como uma entre as melhores. Não que fosse uma grande actriz. Mas era elegante, bela, espirituosa. Ciúmes, despeito, inveja, claro que tudo isso ela certamente despertou. Mas que interessam os olhares oblíquos quando se têm, frontais e sem pudor, os olhares de todos aqueles que se querem? O poder é afrodisíaco e a beleza desenvolta também. Na vida de Marthe havia de tudo isso. Bela, sedutora, actriz, conquistou presidentes, homens poderosos.
Depois um dia morreu. Herdou a sua casa no coração de Paris, uma casa tão cheia de histórias, a sua neta. Mas veio a guerra e a neta fugiu dos nazis, foi para o sul de França e nunca mais voltou a casa da avó, nunca se esquecendo contudo de pagar a sua renda e todas as despesas. Até que a própria neta morreu em 2010, já com 91 anos.
Um dia, o senhorio, porque a renda deixou de ser paga, foi ao apartamento. E foi como se tivesse entrado no passado. A casa estava intacta ao fim de 70 anos de abandono, pó, é certo, mas os objectos todos, parados no tempo como se Marthe pudesse voltar a qualquer instante.
Transcrevo em inglês porque infelizmente é tarde e não tenho tempo para traduzir:
Ou será o contrário?
Será que são os objectos que interessam, que permanecem, e nós é que passamos sem deixar rasto, irrelevantes como partículas de poeira?
Não sei.
[Quem tenha mais cabeça ou menos sono que eu, que responda.]
Relembro: no post já a seguir tenho um vídeo que não deve ser perdido, tem imagens surpreendentes e muito belas.
Um dia, o senhorio, porque a renda deixou de ser paga, foi ao apartamento. E foi como se tivesse entrado no passado. A casa estava intacta ao fim de 70 anos de abandono, pó, é certo, mas os objectos todos, parados no tempo como se Marthe pudesse voltar a qualquer instante.
Aliás, era mais do que isso: era como se ela própria ainda estivesse presente. Um belo quadro seu, pintado por Giovanni Boldini, um outro amante, quando ela florescia nos seus 24 anos, iluminava a casa, mostrava aquela que um dia ali vivera rodeada de espelhos, livros, quadros, muitos quadros, tantos queridos objectos. Marthe, nascida Mathilde, ainda ali vivia.
Transcrevo em inglês porque infelizmente é tarde e não tenho tempo para traduzir:
Madame Marthe de Florian (Paris, France; 9 September 1864 – France; unknown date) born as Mathilde Héloïse Beaugiron was a little known French actress and demimondaine (courtesan) during the Belle Époque. She was known for having famous lovers including Georges Clemenceau (before becoming the 72nd Prime Minister of France), Pierre Waldeck-Rousseau (the 68th Prime Minister of France), Paul Deschanel (11th President of France), Gaston Doumergue (13th President of France), and the Italian artist Giovanni Boldini. Her story resurfaced when in 2010 her belongings were discovered in a Parisian apartment, untouched for nearly 70 years, like in a time capsule.
Marthe de Florian lived in an apartment located in the 9th arrondissement of Paris between Pigalle red light district and the Opera very near the church of Sainte-Trinité, which apparently was eventually inherited by her granddaughter, presumably a daughter of Henri. At the outbreak of World War II her granddaughter escaped from the Nazis to the south and settled in the French Riviera, never to return, or at least never to come back to clear the apartment. The rent and expenses were paid regularly until her death in June 2010 at the age of 91. As a result, everything the apartment contained, including many paintings, furniture and all the usual elements of early 20th Century life remained intact for nearly 70 years. The identity of the granddaughter, as well as the date of the death of Marthe and the exact location of the apartment are all unknown to the public due to the current privacy protection laws of France.
Among the many paintings discovered in the apartment was a portrait depicting Marthe de Florian herself in a beautiful pink muslin evening dress, painted by one of her lovers, the artist Giovanni Boldini. The portrait had never been listed, exhibited or published, however a visiting card with a scribbled love note from the painter was found in the apartment, and a short reference found in a book from 1951 commissioned by the artist's widow Emilia Cardona also confirmed the provenance of the painting. According to the book, the work was painted in 1888, when the actress was 24 years old.
A história da casa de Marthe de Florian, mais conhecida por Madame de Florian, uma casa perdida no tempo, entristece-me. Mas, ao mesmo tempo, torna bem evidente a irrelevância dos objectos por muito queridos que sejam.
Ou será o contrário?
Será que são os objectos que interessam, que permanecem, e nós é que passamos sem deixar rasto, irrelevantes como partículas de poeira?
Não sei.
[Quem tenha mais cabeça ou menos sono que eu, que responda.]
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Relembro: no post já a seguir tenho um vídeo que não deve ser perdido, tem imagens surpreendentes e muito belas.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.