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segunda-feira, maio 18, 2020

Porque sì dolce è'l tormento, be kind -- até porque dizem que dano e virtude andam a par e passo
Um domingo de Maio in heaven





Difícil falar do que penso e sinto. No fundo, se calhar isto tem a ver com o facto destes dois meses terem sido muito desgastantes. No outro dia uma pessoa dizia-me que o teletrabalho para algumas pessoas é um passeio. Diz ele que há pessoas de quem nada sabe vai para dois meses. Acredito. Há trabalhos que se prestam a que, em casa, haja pouco que fazer. Mas para mim não tem sido fácil. A minha filha dizia-me hoje que eu não devia trabalhar tanto. Mas como? E as pessoas que dependem de mim? Vou deixá-las meio ao abandono? Sou de me envolver, sou de puxar por eles. Não sou de me recolher e deixá-los entregues à sua sorte.

O meu marido, que agora observa de perto, diz que ninguém trabalha assim, que é demais. E eu, que sempre trabalhei assim, agora, vendo com o este excesso invade a minha vida familiar e doméstica (porque trabalho em casa, à vista da familia), também acho, também acho que merecia uma vida mais descansada. Só que não sei onde pôr a fronteira entre trabalhar como gosto (e que é a única maneira que conheço) e o baldar-me, deixar os meus colaboradores decepcionados, ficar aquém das minhas próprias expectativas.

Mas, portanto, ando com isto na cabeça.


O dia esteve mesmo bom, um calorzinho bom, um sol suave, todos bem dispostos. O meu marido pelo campo, entregue àquilo de que gosta, depois a arranjar os caminhos, a fazer uma queima de sobrantes, os meninos a brincarem às mangueiradas, com jogos, a minha filha ao sol, a ler, ou a jogar ténis com os filhos. Pelo meio fiz duas máquinas de roupa, estendemo-la ao sol, fiz limpezas. Para o almoço fiz frango no forno e ela fez esparguete para acompanhar. Para a sobremesa tentou replicar aquela gelatina com frutas do self do CAM que todos adoramos. Também ficou boa mas menos compacta e as natas não ficaram bem em chantilly porque não tenho batedeira, só tenho varinha. Mas ficou saborosa na mesma. Para o jantar fiz sopa de tomate com corvina e ovo escalfado, que eles comeram com pão torrado no fundo do prato (eu não, tenho que dosear, caraças, senão ainda acabo a quarentena com meia dúzia de quilos a mais). Os meninos comem como uns lobos. Pasmo. Fazem-me lembrar o meu filho na idade deles, também comia quantidades desconcertantes. Só que, como ela nunca foi de comer muito, a coisa, no conjunto, não era excessiva. Agora estes dois lobinhos comem que é uma coisa do além. Dá gosto. Eu, que gosto de cozinhar e ver que à minha mesa toda a gente se alimenta bem, fico consolada. O meu marido, volta e meia, desabafa: 'Eh pah, já estão a comer outra vez... Eh pah, assim não dá, daqui a nada já não há, outra vez, fruta...'. Quem diz fruta diz pão, que são coisas que voam. Mas, por hoje, ainda ali há um tabuleiro cheio de maçãs, peras, um prato de bananas, um saco de laranjas. Temos nêsperas nas árvores mas ou estão lá em cima demais, outras caem, outras os pássaros comem-nas. Por isso, não rendem nada.


Hoje perguntei ao meu marido: 'Vês-te a regressar ao trabalho em Lisboa?'.  Respondeu-me apenas: 'Vejo'. Espantei-me: 'A sério?'. Limitou-se a dizer: 'Tenho que voltar'. Mas já estava noutra, dali não dá para arrancar muito. 

De televisão, de novo, pouco ou nada vi. O Marcelo a festejar, de máscara, creio que a beber uma imperial e a fazer selfies. Não sei onde mas andava muita gente de roda dele. Quando uma pessoa vive no campo, ocupada de manhã à noite, é quase como se estivesse noutro lugar, noutro tempo, fora da realidade que tanto dá que escrever e falar a comentadores, jornalistas e afins.

Ah, ainda outra coisa. De manhã, alarido lá fora. Fui ver. Tinham encontrado a pele de uma cobra. Prateada, quase transparente, bonita. 


Fui ver, fotografei. Regressei à lida. Passado um bocado, um alarido ainda maior. Tinham visto a cobra. Dizem que era grande, gorda. A minha filha também a viu, diz que teria um metro ou metro e meio. Fui ver mas já não a vi. O meu marido só dizia que não queria ninguém descalço ali onde a cobra andava. Passa-se com a falta de cuidado de toda a gente. 

O mais novo veio a correr a casa e passado um bocado andava a dizer que era uma cobra rateira. Perguntei como sabia. Disse-me que tinha pesquisado. Depois foi o mais crescido que me apareceu a pedir o tubo de aspirador para a apanhar, que tinha pesquisado e que era a maneira de a caçar. Depois engendrou uma armadilhae passou à prática: um tubo com uma ponta no lugar por onde a cobra se tinha esgueirado e a outra ponta dentro de um jerricã. Mas não foi bem sucedido. Quando estava a falar com a minha mãe fui várias vezes interrompida, queriam isto, aquilo e o outro. Contei à minha mãe. Ficou assustadiça. Tem medo de cobras. Descansei-a, que a cobra é pacífica (sei lá se é...), que já fugiu para longe (sei lá se fugiu...). 

É a vida do campo, sempre uma animação.


À noite, estávamos aqui na sala, a minha filha de costas para a porta, vimos o gato a passar encostado, a espreitar. O meu marido disse: 'Olha o gato'. A minha filha deu um salto, assustada. Como à noite costumamos ter as portadas de fora fechadas e, portanto, não se vê para a rua, ela pensou que o gato estivesse dentro de casa. Mas não, tínhamo-nos era esquecido de fechar as portadas de fora. O meu marido, que passa a vida a avisar para não deixarmos as portas todas abertas deve ter pensado que qualquer dia, quando dermos por ela, temos mesmo o gato cá dentro. 

E é isto. Vou parar de escrever pois, por muito que escreva, pouco mais digo do que isto. 


Só que dei a ler à minha filha o Dano e Virtude da Ivone Mendes da Silva. Devorou-o. Gostou muito. Eu também. A autora é a autora e a personagem e o argumento e o fio que percorre o argumento e as palavras que dão corpo ao fio que vai tecendo, parágrafo a parágrafo, os dias que parecem iguais mas que são todos diferentes.

E eu, ao escrever o que estou a escrever, penso: e se eu agora abrisse as portadas de vidro e também as de fora e, de repente, vindo do nada, devagar, na ousadia, na malícia, assomasse aqui à porta o leopardo azul que todos os dias me deixa pétalas azuis voando no espaço, pétalas cujo perfume só eu reconheço? Que faria eu? Se calhar apagava a luz e ia para a entrada da casa, sentava-me no chão, deixava que ele viesse cheirar-me, dir-lhe-ia, em silêncio, palavras inventadas, sorrisos feitos só de olhar, um olhar feito de luz e de lágrimas. Talvez ele se sentasse também, talvez se deitasse olhando o céu e, de vez em quando, olhando os meus olhos como só ele sabe olhar.

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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven
Lea Desandre & Thibault Cauvin interpretam Sì dolce è'l tormento de Monteverdi
E, como não há duas sem três, despeço-me com Be Kind de Charles Bukowski
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Uma boa semana!

domingo, outubro 06, 2019

Crónica de um dia de reflexão in heaven
[Sendo que reflecti sobre muita coisa excepto, que me lembre, no que desaprendi durante a campanha pouco alegre destas eleições]





No outro dia dei dois vestidos meus à minha filha. Ela olhou para os vestidos e espantou-se por eu ter cabido neles. Não foi há muito tempo. Tento localizar no tempo e diria que talvez uns seis anos, por aí. Usava o 38 que, em letra, equivale ao M. A minha mãe diz que com ela foi a mesma coisa, diz que, com a menopausa, a roupa deixou de lhe servir, diz que, nessa altura, parece que alargou e que ficou com mais peito. Agora não, agora está outra vez mais delgada, elegante mesmo.


Os vestidos que dei à minha filha são intemporais; se calhar, se daqui por uns anos voltar ao 38, ainda me ficariam bem. Mas acho que não faz sentido estar a guardá-los, ficam-lhe a ela muito bem. São ambos de tecidos muito fininhos, ambos em verde, um em verde mais colorido estampado em flores cinzentas e outro num mesclado mais pastel em diferentes tons de verdes secos e beige. O primeiro é forrado mas o segundo não, fica completamente transparente. A minha filha disse que deveria ter um interior mas não o encontrei. Lembrei-me depois que sim, tinha, em malhinha de seda muito fina, em verde seco. Mas perdi-lhe o rasto. Há coisas que, na minha casa, desaparecem. Nunca me preocupo pois sei que voltam a aparecer. Só que agora é que dava jeito, não é quando lhes apetecer ver a luz do dia. Por isso, ela não o tem conseguido vestir. Lembrei-me que a minha mãe devia ter combinações. Este sábado de manhã, lá em casa, lembrei-me disso. Foi a uma gaveta do roupeiro e estava cheia de combinações e camisas de dormir de alças, umas de seda muito fina, outras de algodão também muito fino, com rendinhas ou bordados. Nunca usei combinação, nunca me dei bem com muita coisa em cima do corpo. Mas acho bonito, assim, dobradas, perfumadas, macias. Trouxe uma em seda numa cor que não sei definir, talvez um beige-profundo, talvez um rosa-velho esbatido. Tem cortes e pinças para se colar ao corpo, tem um decote elegante, tem umas rendas bonitas. Não sei é se não lhe estará um pouco larga na cintura. A minha mãe diz que não faz mal, se ela gostar, aperta-a nos lados. Trouxe-a para ela experimentar.


Ontem a minha nora também estava com uma blusinha arrendada, às flores, num colorido suave, que era minha. Também me estava justa demais e a ela fica mesmo bem. No outro dia, quando chegou lá a casa, disse que não tinha era um casaco quentinho que ficasse bem com o vestido que vai levar a um casamento, daqui por uns dias. Fui à procura e encontrei um casaco curto, escuro, em veludo muito leve. Ela achou que ficaria a matar. Disse que à noite já está frio e que preferia ir prevenida. Perguntei-lhe se precisava de uma estola e fui buscar uma de pele para ela ver. Ela, que estava de saia de verão, tshirt e sandálias, vestiu o casaco de veludo e colocou a estola e apareceu assim ao pé do meu filho que não tinha acompanhado a conversa. Espantou-se: 'O que é isso?!'. Ela disse que era para o casamento. Ele respondeu: 'Não me parece bem que vás mascarada'. Ela explicou que não ia levar a estola mas o casaco sim. Entretanto, a bonequinha mais linda agarrou no casaco e na estola, aperaltou-se e desfilou, linda. A mãe disse: 'A ela tudo lhe fica bem' e o meu filho olhou para a filha e não disse nada, penso que também achou que estava linda. Depois, toda coquette, pôs uns óculos meio malucos, de carnaval, que por lá andam e ficou deliciosamente extravagante. Tentei fotografá-la mas fez-se rogada. Tem alma de sedutora, um caso sério. Penso que ela herdará muitas roupas minhas. Tem um gosto muito parecido com o meu. Não receia ousar.


Mas é isto, passamos a roupa de umas para as outras. Por exemplo, no verão, usei muito, aqui, in heaven, uma blusinha fininha que era da minha filha e que ela já não veste e gosto da forma como me cai. E uso cá, por vezes, um vestido comprido, de alças, de algodão indiano em vermelhos florais, que era da minha cunhada.

Com os miúdos, então, nem se fala. Tirando o que se estraga, herdam tudo, passa de uns para outros. Só o mais crescido é que as inaugura a todas. Ela, a bonequinha mais linda, herda da filha de uma prima da mãe. 

Hoje a minha mãe, quando abriu o roupeiro, olhando para a roupa do meu pai, disse: tanta roupa que já não vai voltar a vestir, só se houver um milagre. Pensei que há milagres que, mesmo sendo milagres, são inexequíveis. E mostrou uns blusões bons e disse que, se calhar, ficavam bem ao meu marido. Ainda nem lhe disse. Nessa altura já estava no carro à minha espera, já não ouviu a conversa. Aliás, já estava era a ligar-me. Nem atendi, já sabia que era para me despachar.


No carro continuei a leitura de A mulher do meio. Gosto mesmo muito da forma como a Ivone Mendes da Silva escreve. O que ela conta não é nada de extraordinário, é apenas o seu dia a dia. Vai ao café, escreve, evita as pessoas conhecidas para não ter que lhes falar, caminha, gosta de olhar para dentro das casas quando à noite têm as luzes acesas e alguma janela aberta, enrola-se num xaile, bebe chá, fala do barulho do vento, fala das molhas que apanha quando está a caminhar e desata a chover, fala de uma mulher que faz árvores genealógicas no café, fala de uma flor no parapeito, fala do silêncio e da distância de que precisa. Mas fala de uma maneira tão fractal, uma escrita tão perfeita, que é um prazer lê-la.


De tarde, depois de almoço, deixei-me dormir. Só aqui, quando estamos apenas os dois, é que eu ponho verdadeiramente o sono em dia. Não há barulho, não há compromissos. Há apenas quietude e sossego.  

Depois, quando acordei, andava ele a regar e eu fui caminhar um pouco. Foi enquanto caminhava que tentei ler o maravilhoso poema da flor e não consegui. Há pouco estive a lê-lo ao meu marido, consegui. Ele ficou em silêncio e, quando lhe perguntei, disse-me que sim, que era muito bonito, que tinha gostado. E percebi que também o tocou.

Enquanto andei a caminhar, o frio já se fazia sentir, tive que vestir um casaco.

Fotografei tudo. Estava com saudades, tudo me pareceu de uma beleza reconquistada.


Descobri na rocha, num lugar para onde não vou muito, outro daqueles buraquinhos redondos. Enfiei lá dentro um pau comprido e não lhe senti o fundo. Não sei até onde irão estas misteriosas aberturas na rocha, nem sei o que lá dentro se esconderá. 

Está tudo dourado, naqueles suaves tons outonais que fazem desejar que venha o frio e os tempos de aconchego. Há também tons de cobre ou rubro. As folhas das parreiras estão quase transparentes, num matizado muito bonito. As árvores desenham bordados nas paredes e nos muros e eu, encantada, ponho-me a fotografá-los.

O eucalipto gigante está lindo. Ao fim do dia, parecia conter fogo nas veias. Creio que seja um deus pois só um deus poderia ter tal grandiosidade, tal beleza, tal superior perfeição.


Depois de jantar estive a ver um documento enorme, uma contestação. Um colega pediu que eu esclarecesse alguns aspectos e desse a minha opinião. Fiquei furiosa, cada vez mais à medida que ia lendo. Como é que deixaram que um assunto de pouca importância escalasse daquela maneira, falando-se já em milhões de indemnização? Nos homens o gosto pela guerra é responsável pela maioria dos disparates que se cometem no mundo. E aqui quando digo homens digo mesmo homens, seres com testosterona, e não género humano. A minha resposta espelhou a minha opinião: todo o processo era escusado, nada fazia sentido, sentassem-se e resolvessem as coisas a bem. E espero que a minha fúria tenha perpassado ao longo do texto e que os três destinatários estejam agora a ver como descalçam a bota.


Agora estou a ouvir o vento a namorar a copa das árvores. Ouço as ramagens num animado bailado. A natureza é sobrenatural. E eu, insignificante, frágil e efémera, penso que testemunhar isto é felicidade à qual tenho que estar sempre muito agradecida.

E estou a beber um chá. Há pouco li um texto em que a Ivone falava num chá de frutos da floresta. Também o tenho. Tenho vários, sou maluquinha por chás e infusões. A minha filha deu-me uma vez uma caixa com compartimentos, cada um com seu chá. Tinha pena de os beber, pareciam-me jóias raras. Receando que o que me apetecia, o chá branco misturado com gengibre, tivesse alguma coisa que me tirasse o sono, não me arrisquei, joguei pelo seguro: erva-príncipe. Uma das minhas avós tinha erva-príncipe no jardim. Este cheirinho faz-me sempre lembrar esses tempos e eu gosto.

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E o texto já vai indecorosamente longo. Não aprendo a ser contida. Não aprendo a moderar esta torrente de palavras que deseducadamente brota das minhas mãos.

Se conseguiram chegar até aqui são uns valentes, é o que vos digo. Eu não tenho essa paciência razão pela qual nem vou rever o que escrevi, pedindo-vos duplamente desculpa, seja pelo excesso do texto seja pelo mais do que provável bando de gralhas.


Finalmente: se ainda não leram, por favor desçam e vejam com os vossos olhos o poema que a flor escreveu:  'das paredes rompem flores'.

E outra coisa: votem, por favor. Não arranjem desculpas para não votar. Não votar não tem desculpa. O meu pai não vai votar porque está acamado e porque o mundo exterior já é, para ele, uma realidade distante cuja existência presumo que até desconheça. Tem, pois, uma boa razão para não votar. Mas tirando casos assim, extremos, não há desculpa. Vão votar, está bem?

sábado, outubro 05, 2019

A mulher do meio largou as vírgulas da mão





A semana foi de tal ordem que ainda nem me parece que a semana esteja a acabar. De tarde caí em mim e pensei que uma sexta-feira tem que ser festejada e que talvez uma boa maneira fosse ir ao cinema. Falei ao meu marido. Vita & Virginia. Que não, que devia ser chato. Sugeri-lhe que podia ir para outra sala, ver outro filme. Perante essa perspectiva, que ele sabia ser impossível pois eu não lhe perdoaria se aceitasse a minha sugestão, acabou por aceder. Mas teríamos que sair a horas decentes para dar tempo a jantar antes. Mas os deuses protegem os corta-baratos pois vimo-nos ambos, cada um em seu lado da cidade, ensarilhados no trânsito. Portanto, ao telefone um com o outro, percebemos que cinema já era. Salvou-se de ver em filme a história que conhecemos dos livros. No entanto, acho que iria gostar. Eu iria. A ver se para a semana. Nisto, manda-me o meu filho uma sms a perguntar se não queríamos ir jantar com eles. Não sabíamos se conseguiríamos chegar a tempo, que avançassem que logo veríamos. Quando lá chegámos já lá estavam e já o bebé tinha virado meio prato de sopa com bocados de pão à mistura. 

Logo de início, o menino que sabe tudo de futebol estava entusiasmado, queria que eu visse uma coisa na televisão. Pensei que era alguma jogada espectacular. Mas não: 'Olha, olha agora, o António Costa a zangar-se com um senhor que disse uma mentira'. E era mesmo.

E eu e o meu marido dissemos que, ao fim de muitos dias de cansaço,  é natural que a uma pessoa lhe salte a tampa ao ver-se acusado de uma mentira. Nada de mais. Alguém quer ter governantes que sejam máquinas, indiferentes a calúnias e a acusações injustas e maledicentes? Eu não quero. E também me parece que uma sociedade de censores em que não se admite uma reacção humana aos políticos não será uma sociedade saudável. 
No carro já tinha ouvido 'o caso', mais um 'caso', bem como as reacções do Rio e da Cristas e de vários comentadores que de imediato tinham sido convocados para opinar. Já vinha saturada. Um homem chateia-se por ser acusado de uma coisa grave que não aconteceu -- e cai o carmo e a trindade. Não indignados com a mentira mas com a reacção. Não se aprende nada nestas alturas. Estas gentinhas que vivem de comentar o que os outros fazem e dizem só me parecem vizinhas coscuvilheiras, só acusações, só parvoíces polvilhadas por polígrafos e papagaiadas. Não há pachorra.
E eu, a esta hora, aqui chegada ao meu sofá acolhedor e silencioso, já não estou nem aí. 

Estou aqui a pensar é noutra coisa. Tenho um colega que é muito culto. Cultíssimo. Culto de uma forma invulgar. Junta a isso o ter uma memória como nunca vi. A meio de uma frase minha pode lembrar-se de um verso de um poema e di-lo na língua original. E se eu, desconfiada, à socapa, depois, for googlar, constato, espantada, que aquele verso existe mesmo, que o autor é mesmo aquele. Uma coisa que descrita parece mentira mas que é estranhamente verdadeira. Tenho alguns livros que ele me tem oferecido e são sempre invulgares e surpreendentes. Pois bem. No melhor pano cai a nódoa. Hoje, num mail que me enviou, mail que, como sempre estava muito bem escrito quer na forma quer no conteúdo, as ideias sempre muito bem sistematizadas e apresentadas, quase no fim, um erro ortográfico. Onde deveria estar 'podemos' estava 'pudemos'. Fiquei ali parada a olhar para aquela letra trocada. Doeu-me como uma nódoa. Pensei devolver-lhe o mail e pedir que o revisse e mo enviasse de novo sem o erro. Por pura ironia e por saber que ele perceberia o meu desconforto. Mas depois pensei. Temi que ficasse a sentir-se mal. Se fosse comigo, eu ficaria doente se enviasse um mail com um erro daqueles. Depois pensei em responder-lhe ao tema em questão e, no fim, como uma notinha insignificante, um alerta para o typing mistake. Mas depois não fiz nada disso. Para quê? Para quê ir aborrecê-lo? Quantas vezes já eu troquei letras, deixei restos de frases alteradas no meio das frases novas, quantas vezes mudei de ideia a meio da frase deixando a vírgula onde antes fazia sentido e depois deixou de fazer? Quantas vezes, ao reler o que escrevi, fico perplexa com os erros que encontro? Quantas vezes me auto-recrimino por publicar coisas sem antes as reler, sem antes as editar? E isto já para não falar no corrector automático que, às vezes, de sua lavra, escreve palavras que não queremos e que, se não damos por elas, seguem viagem mesmo assim.

E, depois, quem me diz que o meu sentido de rigor na escrita não está furado, ultrapassado, gatado?

Tanta preocupação que tenho de pôr as vírgulas no sítio em que a conversa inflecte ou que a respiração precisa de pausa e, afinal, na volta, a conversa pode fluir, refluir, estacar, voltar atrás, dar uma volta, abrir um parêntesis, gargalhar, chorar, tudo, sem precisão alguma de vírgulas. 

E não estou a falar de cor, não. Estou a falar porque constatei. Não foi a primeira vez, claro. Mas desta vez eu estava a ler o livro, a ler, a ler, e não dei por isso. Eu lia fazendo as pausas todas sem dar pela falta das vírgulas. Quando dei, voltei atrás para verificar se a ausência vinha desde a primeira página. E vinha. E não me tinham feito falta nenhuma.

Exemplifico.
38. Tenho desde há muito o hábito de em algumas noites acender uma vela dentro de um pequeno castiçal junto à janela. Penso que se verá da rua. Creio que os anjos de grandes asas pesadas se háo-de abeirar ainda que por pouco tempo do lugar onde eu moro. Sei que nada é mais terrível do que a perfeição de um anjo e por isso os espero assim. Perdidos nas rotas da chuva e com um cansaço quase humano no rasto que deixam.
214. A tristeza tem mil e uma formas de ser dita mas a alegria não tem história. Claro que isto já foi escrito e com mais eficácia mas hoje voltei a comprová-lo. Encontrei uma pessoa que me convidou para um café e pensei oh diabo tenho para umas duas horas. Mas não. Disse-me logo não vou maçá-la está tudo a correr bem não tenho nada para contar. Com efeito em meia hora bebemos um café e conversámos sobre platitudes. E eu pensei nos caprichos do acaso mas nada disse.
Não concordam comigo? Percebem a minha dúvida? Para quê incomodar as vírgulas, andar com elas em preparos, com rodeios e mesuras, em bolandas? Porque não deixá-las em paz? Não viveremos, afinal, bem sem elas?

Tenho que tentar. Mas não me vai ser fácil, ainda estou muito apegada às maganas.


Os excertos em itálico pertencem ao belo diário de Ivone Mendes da Silva, 'A mulher do meio'. 

A bela mulher retratada podia ser a Ivone mas não, é Ida Rubinstein

Abaixo, Alessandra Ferri dança enquanto Sting interpreta Bach, suite 1 para cello


Desejo-lhe um belo sábado. Tudo de bom para si.

domingo, julho 08, 2018

A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as hortas




Almocei um peixe a saber a mar na beira-praia. Antes tinha ligado à minha mãe, que se arranjasse, que passaríamos lá a apanhá-la. 
Não, não, o teu pai. Não. Já sabes que não. Não quero. Já sabes. Não.
       -
Sempre isso. O pai nem dá por nada. É como ir às compras. Vá.
Não é, não é a mesma coisa. Não. Não gosto de sair e deixá-lo aqui. Já sabes.
       - Ora, deixe-se disso e vá-se arranjar. Não demoramos. Vá.
Mas tenho que avisar a Z., tenho que lhe pedir que fique cá. 
       - Sim, claro, ligue-lhe.
Mas agora ela foi tratar de uma senhora longe daqui e nunca leva o telemóvel. 
       - Vá, então ligue daqui a nada para o fixo de casa dela 
Pouco tempo depois, apanhámo-la. Tudo combinado com a Z. Com a blusa nova em tricot, de meia manga, muito elegante, acabada de fazer por ela a partir de fios de linha que há muito tempo uma tia do meu marido lhe tinha mandado, um em cor de pérola e outro em cor de mel claro. Estava como sempre, toda jovem e solar, sorridente e conversadora.


Gostou do restaurante, relembrou o lugar que tão bem conheceu quando não era nada disto. Agora tudo está mais bonito. Aliás, é geral: as cidades estão todas mais bonitas.

A comida boa mas o serviço demorado. Portanto, almoço longo. A ver o mar, os barquinhos, as pessoas na praia. Bom. Sem pressas.

Regressou contente e eu feliz por vê-la feliz. 

Depois, já só nós dois. Aqui chegados, estava aquele verão que aqui é tão intenso e bom. Biquini, espreguiçadeira, o perfume da figueira, os pássaros.


Mas, antes de preguiçar, caminhei, contemplei as flores, observei as diferenças desde a semana passada, a caruma que cresceu nos caminhos, os orégãos mais floridos, os figos a deitar corpo.

Quis registar-me imersa em verde. Fotografei-me. Um dia ainda me rendo à moda das selfies, provavelmente quando as selfies tiverem passado de moda. Não sei porquê, a mini-mini maquininha disparou o flash. Sabe que não quero mostrar-me e mostrou ser mais inteligente do que eu supunha.


Depois, deitei-me entre a sombra da figueira e a do telheiro. Pensava que ia dormir mas não. Olhei as telhas. Estão aqui há mais de vinte anos. Vão mudando de cor. Cada vez estão mais bonitas. Com o tempo estão tão verdes como o verde que aqui nos rodeia.

A estrela de vidro que tem lá dentro uma vela mantem-se amarelinha e eu gosto de vê-la suspensa das traves de madeira.


Uma paz tão boa, tão doce e luminosa.

Não sei porquê, resolvi fazer um exercício. De olhos fechados, pensei: agora a perna -- e senti a perna --, agora a outra -- e senti a outra --, devagar, agora o braço. Pensei: isto, se calhar, é meditação. E é bom.

Tranquila de corpo e alma, pus-me a ler.

Depois veio o meu marido e armou-se em cigano, daqueles que não conseguem ver sem mexer. E então, para nosso espanto, ouvimos um pipilar furibundo. Uma valente desanda, alto e bom som, com irritação e veemência. O meu marido tirou a maozinha e deitou o olhar ao alto, tentando descobrir o pássaro puritano. Eu também, intrigada. Mas só depois o vi a bater as asas apressadamente, enquanto levantava voo. Disse-lhe: Como vês, até irritaste o pássaro. Não ligou, riu-se. Não aprende a portar-se bem nem por mais uma.

Continuei a ler.


A prosa boa que conheci do blog que a autora em má hora tirou do ar. E eu, under a fig tree, os passarinhos, os verdes all around, tudo tão bom, chego ao apontamento 83 onde, a terminar, leio assim:
A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as hortas.
Parei. Gostei. Uma coisa que não lembraria a ninguém mas que me soou bem. Imaginei. Lá em baixo, na minha horta, um tigre, com o seu passo subtil e vagaroso, a avançar, lento, inteligente, perigoso.  Haveria de ser azul.

Gostei mesmo da ideia. De olhos fechados, para mim, repeti a frase. A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as hortas. Muito bom.


Numa horta ninguém espera que apareça um tigre. Se eu soubesse que, aqui in heaven, existia um tigre, eu haveria de andar, a respiração suspensa, arrepiada de curiosidade e medo, evitando a gruta e os locais mais sombrios do bosque, aqueles em que ele, traiçoeiro, haveria de se pôr escondido.


E, por isso, que susto sentiria quando inocentemente fosse à horta e... do nada... sentisse um olhar felino ameaçadoramente pousado sobre a minha pele, um olhar cor de mel num corpo sedoso e azul.

Resolvi transcrever aqui a frase.

Só que agora, ao transcrever, reparei que não era bem aquilo. A frase, afinal, é assim:
A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as horas. 
Reli, espantada. Horas? Afinal não é hortas? Bolas. Não pode ser. Logo agora que começava a habituar-me à ideia de que andava um tigre na minha horta.


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E, já agora, por falar em tigres azuis: Jorge Luis Borges


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As fotografias foram feitas este sábado.

Lá em cima Cohen canta Take this Waltz por sugestão contida no apontamento 119 do livro Dano e Virtude de Ivone Mendes da Silva

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