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terça-feira, outubro 16, 2018

Portanto, dizia eu: só se algum flamingo salvar a coisa...


Dizia eu, ontem à noite, depois de ter elaborado um raciocínio em torno das cuecas da menina Louise e antes de apagar, que ia ver se me ocorria alguma coisa esperta para dizer ou, se não fosse bafejada pela sorte, se algum flamingo salvava a coisa.

Acontece que a coisa se resolveu de outra maneira. Fui violentada pelo Morfeu que se aboletou aqui em cima de mim e que não apenas não pediu previamente o meu consentimento como veio ao engano já que não trouxe um único sonho de presente.

Portanto, ontem à noite os flamingos ficaram a fazer equilíbrio nos pernões para nada. Mas, lá está, guardado está o bocado para quem o há-de comer e ei-los aqui, agora, para nos virem brindar com a sua rosada existência.



As fotografias estão assim a modos que etéreas porque foram feitas de longe, quando estava a fazer bird watching no domingo à tarde num lugar lindo demais para explicar.

Foi a minha filha que me falou e que nos convenceu a ir lá passear. Juntámo-nos lá. De longe fiquei espantada com a altura dos meninos. Estou com eles todas as semanas mas, sei lá, talvez seja seja por vê-los ao longe, ao pé da mãe. Tão grandes. Não tardará muito que não estejam da altura dela. E ela é alta. Ou seja, antes disso, vou eu, quando estiver ao pé deles, parecer uma insignificante vovózinha lilliput. 

Mas, então, dizia eu, fomos dar a um lugar que parece fora deste mundo. Se eu andasse com veia poética poderia aqui descrever aquela paisagem encantada. Mas não. Ando prosa, prosa, prosa. Mas prosa de primeiro ciclo. Só consigo dizer coisas terrenas, básicas, assim como as vedes. 

Onde é que eu ia? Ah, sim. Que os fotografei de longe. Zoom ao máximo e uma aragem desmiolada. Ou seja, algumas desfocadas e outras reduzidas a pormenores no infinito.

Salvaram-se umas quantas -- e vai lá, vai -- que, com vossa licença, aqui partilho convosco.


E isto para dizer uma coisa que se tem vindo a firmar dentro de mim como irrefutável e horrorosa: a gente passa pela vida sem saber nada. Julga que sim mas está bem, abelha. Por exemplo: até há algum tempo pensava que conhecia razoavelmente a terra onde nasci. 

Pois bem. Basta ir a um lugar destes para perceber que conheço é uma ova. Nem sonhava. Ia andando e parecia que estava a entrar num outro comprimento de onda. Salinas, sim, já tinha visto não muito longe, zonas de sapal, também mais ou menos. Mas uma coisa destas. Que surpresa. Horizontes largos, ar limpo, uma luz clara, uma forma de natureza inesperada.

Pássaros, flamingos (que não são bem pássaros mas enfim; pelo menos acho que não fazem piu-piu), barcos de verdade onde não se espera. 


E o espaço do Moinho de Maré muito bem reabilitado, uma sala de estar que não dá para acreditar,  só mesmo vendo, uma  esplanada muito acolhedora, uma varanda pequenina e com uma vista ampla. Tudo muito recomendável. 

E esculturas de flamingos no passadiço. Uma graça, uma ideia agradável.
Não sei se tudo aquilo tem dedo da presidenta mas não me admiraria que tivesse pois parece ser mulher de acção e bom gosto. 
Chega-se à Mourisca e, ao aproximarmo-nos do moinho, vamos vendo aquelas elegantes esculturas da autoria de Pedro Marques e percebemos logo que estamos a chegar à terra deles.


Fiquei a pensar: se calhar, numa casinha aqui talvez eu conseguisse ser escritora. Uma casinha pequenina -- e não era para brincar aos pobrezinhos, era mesmo só para ser fácil de limpar -- com vista para os flamingos, com um pinheiro manso no quintal, com chão de tijoleira e uma mesa azul encostada à janela. E vasinhos com flores na parte de fora do beiral das janelas. Podia fazer caminhadas por entre as pequenas lagoinhas, podia fazer fotografias, quando a maré estivesse cheia podia pôr-me num barquinho a remos e, quem sabe, ir à pesca. Se apanhasse peixinho podia assá-lo num fogareiro. Depois, podia ir beber um café ao moinho. E à tarde poderia ficar sentada numa cadeira de balouço a ouvir os pássaros.

Não sei é quando é que escrevia. Se calhar, tinha que ser a partir das onze da noite. E na volta tudo se haveria de resumir a um post fajuta no blog. Uma sina, um desconsolo. 


Bem, escritas à parte, aquele lugar é abençoado. Muitos deuses esvoaçam por ali.

Acho que vou ter que lá voltar para melhor os poder ver e fotografar a voar. Uma mancha alada e rosada.

Também gostava de os ver a marchar. Les flamants roses. Um pequeno exército de vaidosos insolentes que só têm de desculpa o serem tão deliciosamente efeminados. Uns pássaros não vos digo nem vos conto: bichas, bichas, bichas. Parecem ser divertidos e alegres como as bichas malucas costumam ser.

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Lá em cima coloquei o Manon (uma coreografia Kenneth MacMillans dançado pela Tamara Rojo e pelo Carlos Acosta do The Royal Ballet) porque foi o que me ocorreu quando me apeteceu ter aqui um bailado interpretado por humanos.

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terça-feira, maio 03, 2016

É nómada a tua língua e a minha, dizemos palavras sem morada.
Porque não há nada em vez de tudo? - perguntou o cientista.





Sob a superfície dos dias procuro o que não se vê, o oculto sob as águas verdes do lago, o obscuro entre a folhagem, as palavras não ditas, as que ainda não encontraram a expressão à luz do dia. Tacteio emoções, afloro aproximações. Receio e recuo.

Espreito as sombras, tento adivinhar os pensamentos ainda em esboço, procuro a luz nos espaços entre as ideias que ainda não se formaram, colo frases às imagens, a voz aos sonhos. 

Passo o olhar pelas árvores que ondulam na rua, passo o olhar em distantes fotografias, passo as mãos nas páginas nuas de livros que me trazem novas toadas, desconhecimentos, intimidades longínquas, experimentações.

Fecho os olhos, ouço a música, releio em pensamento palavras novas.

Depois olho outros livros que me falam da imensidão do infinito, de espaços sem fronteiras, quase esferas, paradoxos, equações impossíveis, espirais à solta num espaço vazio.

E penso outra vez: a elegância da ciência, a estética das descobertas.

O prazer de cruzar fronteiras.

O prazer de querer e não querer atravessá-las, o prazer dos primeiros passos.

Outro livro: 'a minha vida' de Isadora Duncan. Cruza-se a inquietação e a paixão de uma mulher livre com os espaços infinitos, os números primos, os irracionais e os imaginários, as redes complexas, os poemas novos. 

Não sei se há um denominador comum nos meus gestos, nas minhas divagações, nas minhas palavras, na forma como desenho interrogações para as quais não procuro resposta. Talvez apenas estenda linhas paralelas no espaço, talvez espere que alguém agarre na outra ponta e estabeleça um alfabeto comum. Há paralelas que se tocam -- leio-o e acredito. Novas geometrias, marés, voos, camadas de sonho, fractais de uma abstração simétrica, perfeita.

Detenho-me em silêncio. Vocês aí tão longe.

Conjecturas, dualidades, palavras estranhas para quem não procura senão a simplicidade do perfume de uma flor.

Fecho os olhos. Penso. Peço.
Conta-me do percurso do perfume da rosa dentro de mim, conta-me se são também paralelas as estradas que as palavras percorrem quando falam de perfumes e se são convergentes os olhares que se desconhecem. Conta-me os teus sonhos, fala-me de mundos transcendentais, de loucuras de uma pureza sem igual, de teorias de uma elegância nunca imaginada, fala-me de céus muito azuis, de águas muito límpidas, fala-me das tuas mãos.
Falo como se falasse para alguém que segurasse as pontas das linhas que lanço no espaço mas não sei se esse alguém existe. Talvez exista um ser igualmente estranho. Intangível como eu.

E, entretanto, enquanto aqui estou à espera de um sinal, fala-me, Daniel Jonas, de uma certa Casa Despida. Eu ouço.


Uma vez mais
a casa despida.
Lentas fotografias, moles molduras,
álbuns blindados, o pó de tudo,

o silêncio prevalecente
da despedida.
Uma casa mais
eu deixo.

Por vezes parece que
sou eu quem fica
e ela que me deixa.


E tu, Eugénia de Vasconcellos, responde-lhe que não é possível Tanta luz. Eu ouço-te e o Daniel também. Fala, que te queremos ouvir. Fala enquanto danças ao sol procurando onde guardar tanta saudade.

Na hora mais madura do sol,
tanta luz, e na curva da duna
nem uma nesga de sombra
onde guardar a saudade:
o tempo passou.


E olha, bela Eugénia, diz como acaba esse Não faz meu coração fronteira com o teu? 
Diz que estamos aqui para te ouvir.

O sol declina
e o esplendor não veio a derramar doçura.
Este dia e as horas deste dia são
um número a menos dos que me cabem contar.

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Tamara Rojo dances the first two waltzes of Frederick Ashton's one-act ballet Five Brahms Waltzes in the Manner of Isadora Duncan, 2004.

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Os poemas de Eugénia de Vasconcellos e a primeira parte do título desta mensagem pertencem ao livro 'o quotidiano a secar em verso' da Guerra e Paz. O poema de Daniel Jonas e a segunda parte do título da mensagem pertencem ao livro 'Bisonte' da Assírio e Alvim. 


Lá em cima Avishai Cohen Quartet interpreta Into the Silence - Live @ Blue Note Milano (com os meus agradecimentos ao Leitor que tão generosamente mo deu a conhecer)

As fotografias mostram Isadora Duncan.
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E caso tenham estômago para o absurdo e deslocado Passos Coelho que, no meu texto, se faz acompanhar por uns despudorados anjinhos papudos, queiram, por favor, descer até aqui abaixo antes que alguém o mande pôr-se ao fresco.

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