No verão de 1924 conheci em Nice Tamara de Lempicka, uma pintora polaca na moda entre a aristocracia de Paris.
![]() |
Tamara Lempicka (1890 - 1980) |
Eu tinha chegado de Cuba há uma semana e naquela manhã tomava um aperitivo com Colette num café da costa, debaixo de um desses toldos às riscas que protegem os turistas do sol mediterrânico.
![]() |
Colette (1873 - 1954) |
Enquanto bebíamos, coscuvilhávamos e entretínhamo-nos a observar as pequenas figuras dos veraneantes que se deslocavam languidamente pelo Passeio dos Ingleses. Reconhecemos Cocteau e Radiguet pelos seus andares de bailarina e as condessas de Polignac e Noailles pelos seus chapéus ridículos.
(...)
Uma mulher aproximou-se da nossa mesa. Chamavam a atenção a sua face nórdica de maçãs-do-rosto altas e os seus olhos cor de jacinto, com uma expressão de virgem depravada. Um rosto deslumbrante no seu descaramento total e, no entanto, ameaçado por esse peculiar matiz de lonjura que se adivinha precocemente naquelas pessoas a quem o futuro reserva a demência. Vestia calças e casaca pretas, camisa branca e um leve cachecol de seda sem nó sobre a lapela. Parecia-se a George Sand e supus que, tal como outras mulheres a quem Colette já me tinha apresentado, esta também teria sido sua amante. Beijou Colette nos lábios com naturalidade e de seguida sentou-se entre nós. Cruzou as pernas e com um gesto graciosamente masculino fez sinal ao empregado.
(...)
Contemplei-a dissimuladamente, fascinada pelo seu ar soberbo e impúdico ao mesmo tempo. Uma rajada de vento agitou o seu cabelo de um loiro muito pálido, com esse tom acinzentado que Dante atribui às asas dos anjos. Ela susteve o meu olhar com aprumo, e percebi, escondida no fundo das suas pupilas, essa espécie de preia-mar sub-reptícia que flui quase sempre de todos os que desfrutam de mais de um sexo.
*
Este é o início do conto 'O príncipe dos lírios', pertencente ao livro 'Óleo sobre Tela' da autoria de Gina Picart, escritora cubana de 56 anos, formada em arte, filologia e jornalismo.
Gina Picart, aqui sem óculos |
Este conto recebeu a Menção Honrosa do Prémio Ibero-Americano de Conto Júlio Cortázar.
Talvez volte a ele pois tem que se lhe diga. Além do mais, como deverão estar lembrados (os que me lêem e têm memória de elefante), Tamara de Lempicka é outra das pintoras cuja vida dava um filme.
*
Este não é o meu único post do dia. Há pouco já escrevi um desabafo que pressupõe que visualizem alguma mímica da minha parte (ou deverei dizer expressão gestual?). Por isso, aqui a seguir, um pouco mais abaixo, lá o encontrarão.
*
E, como habitualmente, ainda quero convidar-vos a deixarem-se ir na minha conversa, vindo comigo até ao meu Ginjal. Hoje o tema é a fina haste da melancolia, tal como a ela se referiu Eugénio de Andrade. Para espantar melancolias, temos uma animada música de Rameau.
*
E, por hoje, já chega. Tenham, meus caros Leitores, uma bela quarta feira!