À hora de almoço, já por volta das três da tarde, liguei a televisão. Não sei qual o canal ou o programa mas sei que se apresentavam equipamentos que aliam a inteligência artificial à realidade aumentada. Mostravam como um cirurgião pode estar a operar e, através dos óculos, não apenas vê o doente como vê imagens ou instruções relacionadas com o que tem que fazer. Ou como a cirurgia pode decorrer sob orientação de um outro médico num outro país.
Nada disto me é estranho. A par dos avanços a nível da computação (tantas vezes tão perigosamente desregulada*) há os avanços a nível das comunicações. Quando se faz uma incisão ou quando se tem que extrair um tumor não se pode ficar à espera que as comunicações se refaçam, caso vão abaixo ou caso haja um delay que ponha em perigo a saúde do paciente.
Agora, com as tecnologias 5G (e 6G) e com a computação na nuvem, poderosa, ubíqua, a ciência médica está numa daquelas fronteiras em que, daqui por algum tempo, olharemos para trás e ficaremos espantados com a falibilidade e demora nos resultados dos exames, na falibilidade na interpretação e diagnósticos por parte dos médicos.
Só que, no mesmo dia, era notícia de abertura a falta de médicos nas urgências e as fatais consequências que isso está a provocar. Várias urgências fechadas em várias especialidades. Um bebé que se perdeu por falta de assistência atempada. E não sei se foi o único.
A ideia de que uma mãe, depois da alegria e ansiedade da gravidez, quando vê chegada a hora, não tem quem a acuda, deixa-me muito perturbada, parte-me o coração.
Há poucos médicos no país e há pouca organização nos hospitais. Não sei se os horários estão bem feitos, se as escalas estão ajustadas. Mas sei que quando se fazem horas extraordinárias, em especial ao fim de semana, se adquire o direito a dias de compensação. Fazer horas extraordinárias é uma bola de neve de custos e ineficiências. Quando se gozam esses dias de compensação, como as equipas estão curtas, alguém terá que compensar, fazendo mais horas extraordinárias. Mas há limites legais às horas extraordinárias. Portanto, é um círculo vicioso do qual é difícil sair.
Mas para isso, as chefias têm que estar a ver os dias de férias que as pessoas pretendem gozar e têm que avaliar se não estão a ir vários ao mesmo tempo. Se as chefias não o fazem, quando se dá por ela, chega o dia e a escala está incompleta. E se faltam enfermeiros, anestesiologistas, técnicos de eletromedicina ou médicos, a equipa não pode funcionar. Fecha o serviço.
Ou seja, a ciência avança a toda a velocidade em tudo o que é de ponta mas descura-se o básico, descuram-se os processos. Aí onde deveria haver automatismos para racionalizar horários e escalas, automatismos para calcular o número de técnicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos, médicos por especialidade, não há nada que se aproveite. É tudo a olho, à mão, ingerível, sujeito a todo o tipo de falhas e erros..
Não sei quais os projectos que o PRR vai financiar mas a área da organização, da automatização de processos em organizações complexas, deveria estar contemplada. Sem gestão, sem boa gestão, sem gestão controlada, nada funciona.
E não apenas a da automatização de processos deveria estar contemplada: também a da construção de modelos de apoio à decisão.
Muitas vezes tudo isto parece óbvio e, no entanto, não se consegue levar adiante pois haverá sempre alguém que se opõe, alguém que não acredita, alguém que boicota, alguém que desiste perante as dificuldades.
E, no entanto, enquanto isto não for encarado sem os holofotes do mediatismo e sem a leviandade dos néscios, somos nós, os utentes, nós que quando ficamos doentes nos sentimos impotentes e indefesos, que ficamos à mercê de uma máquina complexa -- em que uns estão cansados, outros desmotivados, outros distraídos, outros contrariados -- que nos pode deixar entregues a um acaso que, por vezes, não é misericordioso.
Mas uma coisa é o cálculo digamos que mais ou menos científico dos recursos necessários por especialidade -- outra é a capacidade para pôr em prática o resultado dos cálculos. Por exemplo, se não houver recursos, não os podemos inventar.
Então, é preciso alargar o âmbito da análise e, neste caso, pensar a montante.
Ouço dizer que é a Ordem dos Médicos, podre de corporativismo, que boicota a abertura de vagas nas Escolas de Medicina. Não sei se é, se não. Mas sei que as políticas públicas e a necessidade nacional devem ter prioridade sobre os interesses de classe.
¨[via PdC]
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Caminhamos, pois, a diferentes velocidades. As tecnologias avançam, a ciência avança. Mas a organização e a compreensão do que deve ser feito para que a organização seja mais eficiente não avançam. Pelo contrário, por vezes até parece que regridem.
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Há uns anos, muitos, um amigo foi passar férias a Marraquexe. Quando chegou vinha encantado com os hábitos daquelas gentes mas dizia que mau, mau, tinha sido o calor. A temperatura era elevada, a humidade baixa. Falava: para cima de 40º, insuportável. Nessa altura, eu era ainda muito novinha, não tinha ideia de ser habitual temperaturas tão elevadas, custava-me até pensar como seria possível viver com temperaturas tão elevadas. Agora, por cá, temperaturas assim começam a entrar na nossa habituação. Mas o que custa... Estes dias têm sido terríveis, um calor abafado. E sabemos que não vai voltar ao que era antes pois estamos na recta ascendente das temperaturas.
O mundo não está a ser capaz de inverter a tendência da decadência do planeta. A habitabilidade estará cada vez mais comprometida num número crescente de pontos do planeta. E nem falo na loucura da guerra que um qualquer psicopata pode desencadear e em que o resto do mundo fica impotente, incapaz de travá-lo.
Como será viver neste planeta daqui por um par de anos? Temperaturas insuportáveis, seca, doenças, pragas, escassez de profissionais, escassez de materiais, descontentamentos generalizados... e as instituições desorganizadas, sem recursos suficientes, desnorteadas sem saberem como acorrer a todas as necessidades?
O mal não é apenas nosso, português, mas compete a cada país traçar as políticas que invertam o declínio que parece estar a tornar-se inexorável. Seria bom que o Professor Marcelo, em vez de andar por aí num permanente carrossel de 'bocas', condecorações, visitas e abraços, pensasse no que poderia fazer para que por cá, neste nosso pequeno rectângulo, se começasse a equacionar o futuro com o pragmatismo que se impõe.
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E o futuro já aqui tão próximo.
Por exemplo: Calor mata trabalhadores migrantes no Catar