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segunda-feira, junho 13, 2022

Com vossa licença, agora vou falar um bocadinho a sério

 


À hora de almoço, já por volta das três da tarde, liguei a televisão. Não sei qual o canal ou o programa mas sei que se apresentavam equipamentos que aliam a inteligência artificial à realidade aumentada. Mostravam como um cirurgião pode estar a operar e, através dos óculos, não apenas vê o doente como vê imagens ou instruções relacionadas com o que tem que fazer. Ou como a cirurgia pode decorrer sob orientação de um outro médico num outro país. 

Nada disto me é estranho. A par dos avanços a nível da computação (tantas vezes tão perigosamente desregulada*) há os avanços a nível das comunicações. Quando se faz uma incisão ou quando se tem que extrair um tumor não se pode ficar à espera que as comunicações se refaçam, caso vão abaixo ou caso haja um delay que ponha em perigo a saúde do paciente. 

Agora, com as tecnologias 5G (e 6G) e com a computação na nuvem, poderosa, ubíqua, a ciência médica está numa daquelas fronteiras em que, daqui por algum tempo, olharemos para trás e ficaremos espantados com a falibilidade e demora nos resultados dos exames, na falibilidade na interpretação e diagnósticos por parte dos médicos.

Só que, no mesmo dia, era notícia de abertura a falta de médicos nas urgências e as fatais consequências que isso está a provocar. Várias urgências fechadas em várias especialidades. Um bebé que se perdeu por falta de assistência atempada. E não sei se foi o único.

A ideia de que uma mãe, depois da alegria e ansiedade da gravidez, quando vê chegada a hora, não tem quem a acuda, deixa-me muito perturbada, parte-me o coração.

Há poucos médicos no país e há pouca organização nos hospitais. Não sei se os horários estão bem feitos, se as escalas estão ajustadas. Mas sei que quando se fazem horas extraordinárias, em especial ao fim de semana, se adquire o direito a dias de compensação. Fazer horas extraordinárias é uma bola de neve de custos e ineficiências. Quando se gozam esses dias de compensação, como as equipas estão curtas, alguém terá que compensar, fazendo mais horas extraordinárias. Mas há limites legais às horas extraordinárias. Portanto, é um círculo vicioso do qual é difícil sair.

Supostamente, não se podem gozar férias ou compensações sem autorização. Por isso, se os médicos e enfermeiros foram todos gozar férias ou dias de compensação durante estes dias de junho é porque alguém os autorizou.

Mas para isso, as chefias têm que estar a ver os dias de férias que as pessoas pretendem gozar e têm que avaliar se não estão a ir vários ao mesmo tempo. Se as chefias não o fazem, quando se dá por ela, chega o dia e a escala está incompleta. E se faltam enfermeiros, anestesiologistas, técnicos de eletromedicina ou médicos, a equipa não pode funcionar. Fecha o serviço.

Ou seja, a ciência avança a toda a velocidade em tudo o que é de ponta mas descura-se o básico, descuram-se os processos. Aí onde deveria haver automatismos para racionalizar horários e escalas, automatismos para calcular o número de técnicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos, médicos por especialidade, não há nada que se aproveite. É tudo a olho, à mão, ingerível, sujeito a todo o tipo de falhas e erros..

Não sei quais os projectos que o PRR vai financiar mas a área da organização, da automatização de processos em organizações complexas, deveria estar contemplada. Sem gestão, sem boa gestão, sem gestão controlada, nada funciona.

E não apenas a da automatização de processos deveria estar contemplada: também a da construção de modelos de apoio à decisão. 

A Investigação Operacional -- e, no caso dos Hospitais, a teoria das Filas de Espera -- deveria ser obrigatória. Atendendo à sazonalidade das doenças, à criticidade das enfermidades e à reputação da instituição que se pretende manter, consegue determinar-se qual a duração máxima admissível para uma espera numa sala de atendimento hospitalar. Haverá casos em que a espera pode chegar às duas horas e daí não virá mal ao mundo. Mas se chegar às seis ou oito, de forma continuada ou se alguém morrer sem ser atendido, aí ter-se-á pisado a linha vermelha. Com o indicador do tempo máximo de espera, a estimando-se o afluxo de doentes e a duração média de atendimento, consegue determinar-se qual o número de equipas de atendimento. 

Nada disto é transcendente. Mas requer conhecimento, requer compreensão pelos factores que influenciam o comportamento dos sistemas, requer investimento, requer liderança.

Muitas vezes tudo isto parece óbvio e, no entanto, não se consegue levar adiante pois haverá sempre alguém que se opõe, alguém que não acredita, alguém que boicota, alguém que desiste perante as dificuldades.

E, no entanto, enquanto isto não for encarado sem os holofotes do mediatismo e sem a leviandade dos néscios, somos nós, os utentes, nós que quando ficamos doentes nos sentimos impotentes e indefesos, que ficamos à mercê de uma máquina complexa -- em que uns estão cansados, outros desmotivados, outros distraídos, outros contrariados -- que nos pode deixar entregues a um acaso que, por vezes, não é misericordioso.

Mas uma coisa é o cálculo digamos que mais ou menos científico dos recursos necessários por especialidade -- outra é a capacidade para pôr em prática o resultado dos cálculos. Por exemplo, se não houver recursos, não os podemos inventar.

Então, é preciso alargar o âmbito da análise e, neste caso, pensar a montante. 

Não seria difícil às equipas de investigação das Matemáticas determinar o número de vagas que deveriam ser abertas nos próximos anos das Faculdades de Medicina para optimizar o preenchimentos das necessidades (seja no Público, seja no Privado). Se há x doentes disto, y daquilo, localizados geograficamente consoante uma distribuição conhecida, se em média, as pessoas de cada grupo recorrem às urgências ou ao ambulatório z vezes por ano, se isso desencadeia internamentos em w% dos casos, se implica t% de cirurgias, etc, etc, então, deve haver n médicos de cada especialidade e o mesmo para as restantes categorias profissionais. Conjugue-se isso com a idade dos que hoje trabalham para prever quando saem do activo e conseguir-se-á chegar à matriz das necessidades.

Ouço dizer que é a Ordem dos Médicos, podre de corporativismo, que boicota a abertura de vagas nas Escolas de Medicina. Não sei se é, se não. Mas sei que as políticas públicas e a necessidade nacional devem ter prioridade sobre os interesses de classe.

¨[via PdC]

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Caminhamos, pois, a diferentes velocidades. As tecnologias avançam, a ciência avança. Mas a organização e a compreensão do que deve ser feito para que a organização seja mais eficiente não avançam. Pelo contrário, por vezes até parece que regridem.


Isto é agravado, naturalmente, pela maior longevidade das pessoas, que acarreta mais doentes a tratar durante mais anos e, cada vez mais, pelas epidemias, pelos novos vírus, por uma série de ínfimos organismos em transumância dos bichos para os homens e, se calhar, dos homens para os bichos, pelas doenças resultantes de um planeta cada vez mais exausto, instável e febril.

Sabemos sequenciar os genomas, sabemos fotografar estas células misteriosas que imobilizam o mundo. Mas não sabemos como evitar ficar reféns delas nem como restituir as coisas à sua normalidade primordial.


Já aqui o disse várias vezes: deve haver grupos de reflexão que identifiquem os grandes desafios dos próximos anos. São muitos e todos eles urgentes. Prioritizá-los e arranjar recursos humanos e financeiros para os tratar requer uma conjugação de ideias. E quem deve contribuir para essas ideias não devem ser os assessores de pacotilha que pululam pelos centros de poder nem os amigos dos amigos dos amigos. Não: tem que ser gente com cabeça e que contribua com ideias para o bem de todos, sem pensar no seu próprio bem.

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Há uns anos, muitos, um amigo foi passar férias a Marraquexe. Quando chegou vinha encantado com os hábitos daquelas gentes mas dizia que mau, mau, tinha sido o calor. A temperatura era elevada, a humidade baixa. Falava: para cima de 40º, insuportável. Nessa altura, eu era ainda muito novinha, não tinha ideia de ser habitual temperaturas tão elevadas, custava-me até pensar como seria possível viver com temperaturas tão elevadas. Agora, por cá, temperaturas assim começam a entrar na nossa habituação. Mas o que custa... Estes dias têm sido terríveis, um calor abafado. E sabemos que não vai voltar ao que era antes pois estamos na recta ascendente das temperaturas.

O mundo não está a ser capaz de inverter a tendência da decadência do planeta. A habitabilidade estará cada vez mais comprometida num número crescente de pontos do planeta. E nem falo na loucura da guerra que um qualquer psicopata pode desencadear e em que o resto do mundo fica impotente, incapaz de travá-lo.

Como será viver neste planeta daqui por um par de anos? Temperaturas insuportáveis, seca, doenças, pragas, escassez de profissionais, escassez de materiais, descontentamentos generalizados... e as instituições desorganizadas, sem recursos suficientes, desnorteadas sem saberem como acorrer a todas as necessidades?

O mal não é apenas nosso, português, mas compete a cada país traçar as políticas que invertam o declínio que parece estar a tornar-se inexorável. Seria bom que o Professor Marcelo, em vez de andar por aí num permanente carrossel de 'bocas', condecorações, visitas e abraços, pensasse no que poderia fazer para que por cá, neste nosso pequeno rectângulo, se começasse a equacionar o futuro com o pragmatismo que se impõe.

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E o futuro já aqui tão próximo. 

Por exemplo: Calor mata trabalhadores migrantes no Catar


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A música é Falling na interpretação de Julee Cruise que se foi há poucos dias

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Desejo-vos um bom Dia de Sto António
Saúde. Confiança. Paz


domingo, outubro 10, 2021

E que tal deixar de alimentar o monstro?
[Conhece bem todos os riscos que corre ao usar o Facebook ou o Instagram?]

 



Quem por aqui me acompanha sabe que não estou no Facebook ou Instagram (que são basicamente a mesma coisa embora com aparência distinta). Desde o primeiro momento, achei que o modelo de negócio é escuso, enganador, perigoso. Aplica-se na íntegra aquilo de que quando não percebes qual o modelo de negócio é porque o negócio és tu.

Poderia dissertar aqui sobre o perigo que é haver milhões e milhões de pessoas a alimentar aquele imenso reservatório e processador de informação com os seus dados pessoais, as suas fotografias, as suas preferências, os seus contactos mas, afinal, já quantas vezes o fiz antes...? É que o grave não é apenas isso, o mais grave é que é possível cartografar e indexar toda a informação. É possível saber por rua, por bairro, por cidade, por pais, de que gostam e desgostam as pessoas. É possível dar uma volta ao cubo e saber a mesma coisa mas agora por profissão. Ou por empregador. Ou por estado civil. Ou por faixa etária. Ou pelo que se quiser. É possível mapear cada pessoa e os seus contactos e os contactos dos seus contactos e por aí fora, percebendo até onde pode chegar uma informação que cada um, na sua inocência, julga que trocou de forma privada. Esquece-se que essa pessoa pode partilhá-la, privada e secretamente, com outra e assim sucessivamente. As pessoas não percebem (ou não querem perceber) que plataformas assim são uma guloseima para quem queira prejudicar, manipular, chantagear ou ameaçar alguém. 

Na melhor das hipóteses são o terreno fértil onde a publicidade pode ser plantada. Ou a falsa informação.


Uma geração que mal lê e que se alimenta de notícias truncadas, mal processadas, mal digeridas, falseadas, uma geração que se alimenta de casos e, a partir de casos individuais, constrói teorias, é uma geração que desperdiça parte da sua vida alimentando um mega-monstro, enquanto distorce a sua personalidade. Ocupadas a ver as fotografias dos outros ou as partilhas das partilhas das partilhas,, as pessoas abdicam de se informar correctamente, abdicam de se cultivar, abdicam de pensar genuinamente nos outros, entretidas que estão a autofotografar-se ou a fazer reportagem das suas irrelevantes acções. Tornam-se frívolas, autocentradas.


Tem coisas boas? Claro que terá. A informação pode circular livremente e, quando é boa informação, claro que isso é bom.

Mas sendo uma ultra poderosa, ultra ubíqua, ultra ramificada e totalmente desregulada rede com milhões de pontos de acesso é um perigo que não será possível de controlar.

Começam a aparecer denúncias e, a mais alto nível, começam a surgir preocupações. Mas vêm tarde. O gigante já colocou as patas em tudo o que era sítio e, em todo o sítio, é diligentemente alimentado pelos seus fiéis seguidores.

Por razões que não alcanço, as pessoas parece que sentem necessidade de mostrar à sua rede de 'amigos' todos os sítios por onde andam como se a sua existência dependesse de os outros saberem disso ou, talvez, dos gostos e corações que os outros lá deixam. As pessoas parece que se tornaram como o cão de pavlov, colocando fotos e esperando a recompensa de um smile ou de um coração como se fosse uma guloseima. Não percebem que estão, simplesmente, a alimentar o monstro. E não percebem que o grupo de amigos se está nas tintas para o que lá põem, a não ser no que se refere à bisbilhotice que é também fomentada e diligentemente alimentada, mostrando aos outros onde se foi, com quem se foi, como se estava vestida ou penteada. Futilidades. 


E, nessa ânsia de mostrar aos outros as mais completas irrelevâncias, esquecem-se que estão apenas a fornecer elementos úteis para o funcionamento da máquina amoral que é o Facebook e o Instagram.

Quando vejo que algumas empresas assentam a sua publicidade e, por vezes, até o seu negócio em plataformas como estas penso que não devem estar cientes que aquilo pode deixar de funcionar, que tudo o que lá põem pode ser perdido ou mal usado e que depois, se se quiserem queixar, podem muito bem ficar a chuchar no dedo.

Poderão dizer que também escrevo no blog. É verdade. Mas o modo de funcionamento da plataforma do blog nada tem a ver com a da plataforma do Facebook ou Instagram. E não coloco os meus dados pessoais, não tenho redes de 'amigos', não há partilha em modo de grafo (como nas redes sociais), não sou campo em que o blog possa plantar publicidade. E ainda assim, apesar de não haver comparação possível, sei os riscos que corro.

Seria bom que os matemáticos, na Academia, desenvolvessem modelos que demonstrassem ao público, em especial aos que pensam que só estão a partilhar informação pessoal com os sues 'amigos', a total devassa que são estas redes. Seria ainda interessante que demonstrassem, com situações facilmente compreensíveis, o poder arrasador e descontrolável que plataformas como o Facebook ou o Instagram podem ter na propagação de notícias falsas, notícias que espalhem o pânico, o ódio, a desinformação em geral.

Quem pense que estou paranoica lembre-se de como a campanha (bem sucedida) do Brexit foi conduzida com recurso a marketing político dirigido com base em informações 'sacadas' ao Facebook. A população, grande parte dela totalmente ignorante das consequências do Brexit, foi conduzida a votar sim à saída da União Europeia. Deverão estar lembrados que no dia seguinte ao voto favorável à saída, o google foi bombardeado por parte dos britânicos com a  pergunta: O que é o Brexit?

Qualquer matemático que goste de modelos fica a salivar perante o manancial de possibilidades que os dados e metadados residentes nessas plataformas podem proporcionar. Digo-vos: poderá fazer-se o que se quiser. Nas mãos de gente doida ou mal intencionada, aquilo serve para o que se quiser.

Uma vez que a regulação já não é possível, só há uma maneira de se vencer a besta antes que a besta nos vença a nós: deixar de a alimentar.


Tal como a Greta Thunberg teve o mérito de pegar na bandeira da causa das alterações climáticas, seria bom que emergissem figuras que soubessem erguer também bem alto a bandeira do fim das redes sociais tais como hoje as conhecemos. 






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Desejo-vos um bom dia de domingo

quarta-feira, março 25, 2020

Chega de conversa e vamos mas é ver como é que a Dona Helena está a viver a sua quarentena





Um outro dia, Filo. Mais um dia sem história, um daqueles dias que, mal acaba, imediatamente desaparece esvaindo-se no buraco negro que parece querer sugar-nos.

De novo, desde que me levantei até depois das dez da noite, não tive um segundo de descanso. Tempos complexos. E à noite confeccionei o almoço de amanhã pois durante o dia não consigo. E só às sete e tal da tarde, quase a correr, depois da última reunião, consegui uns minutos no campo. E depois os telefonemas. Muitos. Cheguei à sala depois das onze da noite. Não consegui, sequer, ver os noticiários. Chegam-me, das reuniões, notícias arrepiantes nas quais nem quero pensar. Contudo, inevitavelmente os telefonemas da família giram em volta disto. O meu marido zanga-se, já não consegue ouvir conversas sobre o assunto. Mas, todos confinados, como não desabafarmos quando falamos uns com os outros?

Angustia-me não saber quando poderemos retomar a vida normal, ter a mesa grande de novo cheia, a bancada cheia de travessas de comida que voam num abrir e fechar de olhos, os meninos a brincarem, as sessões de cantoria, ou todos no jardim da minha mãe, ela toda contente com a família em volta. Enquanto cozinho, um cheirinho gostoso pelo ar, penso que eles iriam gostar e depois penso, com pena, que, se calhar, nem tão cedo eles poderão comer a comida que tão dedicadamente confecciono. Angustia-me pensar nisso.

E depois há o medo. De tarde, nas VCs (vou escrever assim para abreviar as VideoConferências) quase sinto que o diabo -- em forma de milhões de bichos malignos e invisiveis -- começa a aproximar-se de cada um de nós. Ouço que uma pessoa com quem estive a semana passada deve estar infectada e que parece que não está nada bem. Outro esteve num local carregadinho de bicheza e estive também com ele várias vezes durante a semana passada.
Aliás não, que disparate. Já viu como ando, Filo? Estava a escrever 'semana passada' depois de recordar os dias e os locais onde estive com cada um deles. E agora reparo que não, que já foi na outra semana. O tempo confunde-se na minha cabeça. Tão depressa me parece, para algumas coisas, que já foi há muito tempo, talvez até numa outra vida, como, para outras, me parece que foi há três e quatro dias e, afinal, há que somar a semana de hibernação que já passou.
Quando percebo que devo ter estado ao lado de alguém que, se calhar, agora está infectado, penso: ainda bem que não fui a casa dos meus pais. Tenho tanto medo de ser veículo de um bicho que, dada a idade e condição deles, os encontre indefesos. Mas, ao mesmo tempo, custa-me tanto não ir lá. Há muitos anos que vou todas as semanas. Agora é a minha mãe que não me quer, insiste: 'não preciso, tenho tudo, não preciso, não venhas'. E eu, perante estas situações que, na altura, desconhecia penso que é mesmo melhor que me mantenha aqui, acompanhando-a à distância, a ela (e ao meu pai, coitado, sem se dar conta de nada disto).

É verdade, sim, Filo, esta mudança súbita, este afastamento e este desconhecimento e temor pelo que aí vem, assustam-me, preocupam-me, deixam-me um bocado desalentada.

Claro que a minha maneira de ser leva-me, durante o dia, a atirar estes estados de alma para trás das costas e penso que os que trabalham comigo me acham capaz de virar o mundo do avesso. Mas, ao contrário do que é costume, chego a esta hora e estou tão exausta e apreensiva que não consigo disfarçar.

Mas, ao mesmo tempo, tenho esta sensação -- talvez absurda, João, talvez acabe mesmo por desiludir-me -- de que este era o tropeção na linha do tempo de que o mundo estava a precisar para recuperar o equilíbrio e voltar a encaixar-se no planeta. Como se na vida de excessos que nós levávamos (e falo em nós de forma genérica, claro), consumistas até à medula, distantes da natureza, narcisistas e estúpidos, histéricos e absurdos, estivéssemos a precisar de um par de estalos. E, saído das profundezas na terra, um insignificante e insignificante bichículo está a ser suficiente para nos provar que temos pés de barro, que somos umas frágeis criaturas que vão ao tapete num abrir e fechar de olhos.

Diz o João, o outro João, que o René Thom (o matemático da Teoria das Catástrofes) escreveu um livro há muitos anos (e não me lembro bem se o diz explicitamente ou se fui eu que tirei umas pelas outras) onde defende que grandes transformações e saltos evolutivos/qualitativos na Biologia e na sociedade ocorrem nas bifurcações que as catástrofes abrem; ou vamos por um lado ou pelo outro, irreversivelmente. E é isso que eu acho. Tomara é que, a seguir, não sigamos pelo lado errado.

Mas acredito que não, acredito que, ainda que trôpegos e apalermados, haveremos de cair na real e passar a ter uma vida mais racional, mais respeitadora do habitat em que nos foi dado o privilégio de viver.

Só não sei é se acredito mesmo ou se quero acreditar. Mas isso agora também não interessa para nada.

Agora não é tempo para grandes dissertações, agora é tempo de sobrevivência e de quarentena. Nós e a Dona Helena.

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Pinturas de Edward Hopper na companhia de Julee Cruise a interpretar Falling
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Sabe, Filo, quando, num outro tempo, fui passar três dias à Barragem da Aguieira éramos para ter ido ao lugar onde agora está. Não fomos porque estava chuvoso e achámos mal empregado ir para aí com tempo assim. Tinha visto fotografias e tinha achado um lugar muito bonito. Um dia destes tenho que lá ir conhecer. Perto do mar, perto da Lagoa, perto de terras muito bonitas.  Desfrute. E daqui lhe envio um sentido agradecimento pelo carinho que me enviou por outra via.

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A todos desejo um dia bom

quinta-feira, outubro 31, 2019

E sobre Sócrates, Rosário Teixeira, Ricardo Costa, João Miguel Tavares, Ivo Rosa e outros a UJM agora não diz nada?

Diz, claro que diz.





Não que tenha grande coisa para dizer. Mas digo. Digo, por exemplo, que me limito a ir acompanhando o pouco que se vai sabendo e a constatar que não há nada de novo. Ou que acompanho também sem grande surpresa as reacções de jornalistas e comentadores a esse pouco que vai soando. E que os vejo a começarem a titubear, a vacilar nos alicerces. E que não me surpreendo. Até porque, salvo raras e honrosas excepções, têm quase todos umas cabeças de maria-vai-com-as-outras.

Mas eu, pela parte que me toca, estou como fiquei naquela noite em que a minha filha me ligou a dizer que visse a televisão, que Sócrates tinha sido preso: estupefacta. Tudo, naquela noite, me causou estupefacção.
Porquê? O que é que ele tinha feito? E como estavam já ali os jornalistas à espera dele, a seguirem o carro onde ia, detido? Que cegada era aquela?
E daí em diante ouvi de tudo, toda a espécie de acusações, de suspeições -- uma investigação e uma crucificação na praça pública de tipo arrastão. Meio mundo a ser envolvido, um processo megalómano, com vários suspeitos a surgirem de todo o lado, por vezes num registo que me pareceu delirante. 

Teria Sócrates que ter estado a tramar esquemas durante vinte e quatro horas por dia em vez de estar a governar o País para conseguir engendrar tanta tramóia. E, note-se, não estou a fazer juízos de valor nem a tomar partido. Não: estou apenas a usar a lógica, disciplina mental que me é cara. Ou seja, não digo que não é culpado, porque não faço ideia, apenas estou a verbalizar um raciocínio. 

É que a minha posição é a mesma de sempre: a Justiça avaliará as provas existentes, a Justiça avaliará a razão de ser da acusação, ajuizará se há matéria para julgamento e, se o houver, ajuizará se há matéria para condenação. Sou fiel aos meus princípios e tenho bem cravado na minha consciência aquela máxima vintage que reza que, haja o que houver, toda a gente é inocente até prova em contrário. E quem tem que fazer essa prova é a Justiça. Não os jornais, não os comentadores, não as redes sociais, não os bloggers, não o diz-que-diz-que, não as vizinhas, não as primas.

Agora uma coisa é certa: apesar da péssima opinião que tenho sobre o Super-Juíz Carlos Alexandre ou sobre o Procurador Rosário Teixeira, tenho que fazer o exercício mental de admitir que, para terem feito o que fizeram -- e não foi pouco -- incluindo manterem Sócrates preso, é porque devem ter provas ponderosas contra ele. Não suposições mas provas. E, note-se, já se falou no BES, na PT, na Venezuela, em Angola, em Vale de Lobo, no Grupo Lena e sei lá em quem mais. E tudo isto sem que os ministros responsáveis pelos assuntos dessem por nada. Portanto, estou curiosa para saber que provas são essas que enchem milhares e milhares de páginas porque, até ver, de provas, provas, não dei conta de nada.

Não faço ideia do que é que o Juíz Ivo Rosa vai concluir de tudo o que tem lido. Agora acho que temos todos que lhe tirar o chapéu: merece respeito. Quando vejo imagens daqueles caixotes e caixotes cheios de uma papelada infinita nem consigo imaginar como é que algum ser humano consegue digerir tal pesadelo. Eu entraria em burnout só de ver tanto caixote.

Decorreram vários anos desde essa noite em que Sócrates foi detido ao chegar ao aeroporto. Desde aí a sua vida tem estado como que suspensa, naquele limbo em que nem consigo imaginar como se consegue sobreviver mantendo a sanidade mental.

De tudo,  jornalistas, comentadores e meio mundo já o acusaram e condenaram. Mas eu, nestas coisas, não consigo pular etapas. Coisa de DNA temperada por deformação académica acrescida de deformação profissional. Mas podem achar que não é nada disso, que sou é burra, teimosa que nem uma mula, besta quadrada da pior espécie. O que quiserem. Mas pular etapas, numa coisa destas, eu não pulo.

Pode ser que a Justiça venha a dar por provado tudo aquilo de que o acusam. Nessa altura eu saberei. Até lá não sei e, sem saber, não condeno. Bem pode o João Miguel Tavares sacramentar mil condenações com aqueles fracos argumentos que a sua fraca cabeça constrói, bem pode Ricardo Costa tecer as suas usuais frouxas considerações ou exibir os seus bons conhecimentos armando-se em bom, bem podem Felícia Cabrita ou Clara Ferreira Alves escreverem as suas inabaláveis certezas ou as suas doutésimas opiniões, bem pode o Dâmaso e outros que peroram no Correio da Manhã, na Sábado ou nem sei onde, denunciar, difundir 'segredos' ou lançar parangonas acusatórias -- que eu fico onde estava. 

E, portanto, como acima disse, não é muito nem nada de novo o que tenho para dizer. É só isto: continuo estupefacta com tudo isto e sem perceber o que se passou e tem vindo a passar desde então. Ou seja, na mesma. À espera que a Justiça faça o seu trabalho. 

(Poderia ainda acrescentar que estou também à espera que a Justiça seja justa e lesta -- mas isso já seria esperar de mais. Ou, dito de outra forma, seria lirismo e eu, como é sabido, é mais prosa. Poesia eu gosto mas é de ler, fazer não é para o meu bico)


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As pinturas que usei para dar alguma graça ao texto são, respectivamente, de Francisca Vogel, a primeira, Shawn Ashman, as três seguintes, e Pierre Subleyras, a última. Tudo ao som de Falling na voz de Julee Cruise.

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E uma história para crianças para terminar: Os homens cegos e o elefante

"The Blind Men and the Elephant" de John G. Saxe (lido por Tom O'Bedlam)

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domingo, abril 16, 2017

Dia novo in heaven





É isto um diário? 

Penso que não. Sou indisciplinada por natureza. Tenho dificuldade em seguir um guião, mesmo que seja meu, mesmo que não me seja imposto. 

Se isto fosse um diário eu falaria sobre o que fiz ou pensei ou sobre o que, de alguma forma, me impressionou durante o dia. Ora, se é verdade que muitas vezes é isso que aqui trago, outras há em quem falo de coisas tão díspares ou aleatórias que dificilmente encaixarão no género 'diário'. 

Aquilo a que, aqui, mais graça acho é, de facto, à liberdade de escrever ou divulgar o que me der na bolha. Não sei se esta diversidade agrada ou desagrada aos leitores. Se vêm à espera que eu comente a política do dia e lhes aparece bailado ou, se vêm à espera que eu fale de livros e eu apareço com uma palhaçada qualquer, não sei se ficam desconsolados ou agradados.

Mas acho que não há nada a fazer. Já pensei em criar páginas dentro do blog para arrumar os posts por temas mas acho que isso não iria funcionar. Parece que, sei lá eu porquê, isso poderia coarctar-me a liberdade de movimentos. 


Isto para dizer que aquilo sobre que me apetece escrever se calar não faz grande sentido.

Eu conto.

Estive agora aqui a pensar no que ainda me falta fazer a nível de limpezas de fundo e, na verdade, é sobre isso que me apetece falar. Podia falar no livro que hoje li com textos e entrevistas a Rui Chafes, 'O silêncio de...', mas agora não sei que é feito dele. Andei com ele cá dentro e lá fora e na volta ficou ao relento.

Mas, dizia eu, limpezas. 

Quando chove e tudo está húmido, não parece fazer muito sentido andar lá fora a varrer ou a limpar. Mesmo cá dentro, a motivação não é muita. Tirando um ou outro episódico dia de férias, só aqui vimos ao fim de semana e nem sempre o conseguimos. E, aqui chegados, está frio, a casa húmida, apetece é estar ao pé da salamandra ou da lareira a preguiçar, com uma mantinha quente nas pernas, um livro bom por perto, uma chávena de chá a fumegar. Portanto, no inverno, as limpezas são as mínimas indispensáveis.

Mas chega a Primavera e é bom abrir a casa, as portas e portadas e as janelas tudo aberto de par a par.


Hoje foi dia disso. E de mudanças. Uma mesinha que estava numa sala veio para a sala de jantar (a família vai crescendo e mesmo a mesa grande que se abre começa a ficar curta; assim, esta, se for preciso, fica para os miúdos), uma cadeira que estava num lado, foi para outro, um sofá que estava desamparado, agora ingressou numa zona de estar do estúdio e está integradíssimo, um tapete que estava sem dono foi para o pé desse sofá, um psiché que era da minha avó agora está a servir de móvel da televisão. E os galos que estavam no chão subiram para cima de uma mesinha, desocupando aquela zona que agora é de passagem.

E apliquei restaurador de móveis, e sacudi tapetes, e lavei sofás e varri cá fora.

E o que eu gostava era de ter agora uma semana de seguida para andar nisto, lavar o chão da casa toda, varrer dentro e fora, lavar forras dos sofás e almofadas, pôr edredons e cobertores ao sol, lavar cortinados e colchas.

Cheguei à noite e senti as pernas doridas. Não estava a perceber porquê. O meu marido disse: 'Falta de hábito'. Nem percebi. Ele explicou: 'Andares a lavar os sofás, a baixares-te e a esfregares, andares a varrer'. Não sei. Aliás, coisa passageira, agora que escrevo já me passou.


Mas escrever isto aqui interessa a alguém? Ou seja, estou a escrever isto para mim ou para quem me lê? Não sei.

O que sei é que, com isto em mente, não me apetece falar das esculturas ou das ideias do Rui Chafes ou de outra coisa qualquer. Ou, agora que acabo de ouvir que o maluco da Coreia quis mesmo atirar um míssil, apenas não conseguiu, também não tenho paciência para esse peditório. Cambada de anormais. Cansam a minha beleza

Apetece-me é falar deste spray para lavar os sofás que é uma maravilha. É um spray que se vende na secção de automóveis, para lavar estofos. É uma espuma que se tira, depois, com uma esponja húmida. 

Também me apetece falar do detergente que usei e que cheira a sabão. Fica a casa a cheirar toda a lavadinho. Gosto muito de variar o cheiro do detergente: pinheiro, alfazema, mar. Mas este, com perfume de sabão, tem um cheiro a casa de antigamente. Conjugado com o cheiro do reparador de móveis e do óleo de cedro, fica a casa agradavelmente perfumada. E o sol traz também os perfumes das árvores e das flores e a casa fica verdadeiramente em festa.

E depois vim cá para fora, andei a apanhar sol e a fotografar. Até que, uma vez mais, aquela estranha sensação de estar a ser observada.


Virei-me devagar, olhei em volta. E lá estava ele. Enigmático. Imóvel, olhar fixo. Fui andando devagar e ele de olhos presos aos meus. Aproximei-me, a pele quase arrepiada, e ele sem se mexer, aqueles olhos misteriosos a fitarem-me. Baixei-me, fotografei-o.


Depois afastei-me. Já não foge de mim. Já me olha à descarada. É muito bonito. É tão dono daquele espaço quanto eu. Respeitamo-nos.

Os pássaros cantam, cantam. Os pinheiros estão enormes, os cedros também. As figueiras já quase compostas, a folhagem a ganhar aquela exuberância verde. As nêsperas começam a ganhar tamanho. Descobri uma última laranja e comi-a, dulcíssima. O rosmaninho começa a aparecer em flor. O tojo é o escândalo amarelo que se sabe,

Este é o lugar do mundo onde eu sou mais eu. Gostava que os meus átomos impregnassem esta terra. Quando vejo a minha sombra nas rochas, penso que uma parte de mim já vive dentros das pedras ou já percorre, na seiva, as árvores que ondulam ao vento. Talvez até parte de mim já viva nos pássaros que ali escolheram viver ou habite o corpo daquele gato branco de olhos cor de mel que me olha como se me conhecesse desde o início dos tempos.

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As fotografias foram feitas este sábado in heaven.

Julee Cruise, lá em cima, interpreta Summer Kisses Winter Tears

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E agora não desçam, por favor, até ao post seguinte. aquilo ali parece filme de terror, desde a casa aos habitantes. 
Cruzes, canhoto.

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E um feliz dia de domingo a todos.

E toca a renascer.

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