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segunda-feira, agosto 30, 2021

Ménage à deux

 



Estamos tão formatados para ter coisas para fazer e para dar no duro que parece que não sabemos fazer outra coisa. Este domingo estivemos sozinhos in heaven. Dir-se-ia que seria normal que aproveitássemos para estar de perna estendida. Mas qual quê? 

Esta casa, já o contei, sendo grande, tem, contudo, falta de espaço para arrumação. Arquitectonicamente é interessante mas com poucas paredes onde se encostem móveis. Para arrumações temos uma casinha, lá fora, onde se guardam máquinas (a roçadora, a serra eléctrica, etc) e tintas e tabuleiros e trinchas e rolos, escadote, etc. Na casa há o que seria uma despensa mas que, na prática, funciona como arrecadação. Como a cozinha é ampla, é nos seus armários que guardo os produtos de alimentação. Só tem móveis baixos mas neles cabe o que é preciso. Portanto, na suposta despensa, numa parede tenho o tal móvel gigante, um multi-usos que os anteriores proprietários tinham na sala, e, na parede em frente, há uma estante de arrumação embutida. Nesta estão as caixas de ferramentas, produtos de limpeza, caixas com cenas, etc. Na parte de baixo, estão os sapatos e num outro separador também em baixo, vários garrafões de água para um just in case. 

No móvel havia de tudo: brinquedos, coisas da escola, sacos com indefinidos, vinhos, livros, roupas, bibelots, candeeiros, whatever. 

A divisão é estreita. Ao fundo, na parede onde está a janela (que raramente abrimos), está o aspirador, a tábua de passar a ferro e o ferro de engomar, algumas cadeiras de tipo realizador e outras de exterior e almofadas das espreguiçadeiras. Na parede oposta, a da porta, está um cabide de parede onde estão impermeáveis, sacos, chapéus de chuva. E, num canto, estão as vassouras, os baldes e as esfregonas. A babel da bagunça. Tão cheia estava que já tínhamos perdido o fio à meada.

Então, hoje o meu marido tirou praticamente tudo cá para fora. Apenas a zona das ferramentas lhe escapou. Diz que está bem assim, que encontra sempre o que quer. Eu acho que está a maior confusão. Nunca consigo encontrar o que quer que seja. Penso que deveria ter umas caixas grandes com compartimentos para poder ter as coisas organizadas por tipo e não, como está, tudo ao molho e fé em deus. Mas ele diz que não me meta no assunto e que não chateie. 

Mas, então, foi tirando coisas de todos aqueles compartimentos do móvel grande e de cima (porque estava até ao tecto). E eu, cá fora, ia triando. A quantidade e diversidade de coisas que saiu à cena é indescritível. Coisas que há muito julgava que se tinham perdido para sempre ali estavam. As coisas mais inenarráveis. Até um par de barbatanas e uma prancha de skimming. Não percebo. Vai-se encafuando e perde-se o rumo às coisas.

E tralha, tralha. Felizmente tínhamos cá um rolo de sacos pretos para o lixo. Fui enchendo. 

Apareceram mais uma porção de livros infantis e juvenis que eu não sabia onde andavam. Até livros meus, incluindo os da Berthe Bernage de que tanto gostei quando era miúda.

Os brinquedos e jogos estão agora todos na salinha de baixo da zona antiga da casa. Assim, é possível ver tudo e escolher o que se quer.

Temos ao fundo do corredor uma estante estreita de tamanho intermédio. Supostamente todos os livros infanto-juvenois estavam lá embora eu desde sempre me intrigasse por achar que deveriam faltar outros tantos. Mas como nunca os tinha contado e não fazia ideia de onde estavam os que achava que faltavam acabei por desistir de alimentar a dúvida. Apareceram. Como sobrava espaço nessa estante, tinha-se completado com livros de viagem e alguns de arquitectura que já não cabiam na zona deles. Agora estamos a pensar reorganizar algumas estantes, deixando esta apenas para livros para a maltinha jovem. Teremos é que arranjar sítio para os que de lá se tirarem.

E separámos alguns testes escolares ou trabalhos dos meus filhos que me pareceram com potencial interesse estimativo para que eles vejam se querem aproveitar alguma coisa. E brinquedos da minha filha para que ela decida se ficam, se vão fora.

E lavei alguns cortinados ou peças de vestuário que cheiravam a coisa guardada. E um vestido estampado de verão de que gostava muito e que acho que talvez sirva e fique bem à minha filha. É certo que o vestido era o 36 e que ela varia entre o 38 e o 40 mas pode ser que o 36 de antes seja o 38 de agora. Ela fica sempre surpreendida ao ver como eu cabia em roupinhas tão delgadinhas. Mas a vida é assim mesmo: as mulheres são como as árvores, o seu tronco vai ganhando espessura. 

Quanto ao resto -> lixo.

Sacos e sacos. Roupa para dar. Sacos com livros e cadernos para reciclar. E coisas para o lixo-lixo. O meu marido viu-se aflito para conseguir enfiar tudo no carro. E nunca mais aparecia de volta. Diz que esteve o tempo todo a separar os sacos pelos respectivos contentores.

Almoçámos às quatro da tarde.

Depois ainda pus uma cortina de casa de banho em lixívia, lavei uns tapetes, sei lá. E ele andou a desbastar a figueira e outros arbustos aqui em frente da janela da cozinha para que, ao estarmos aqui, tenhamos a sensação de que estamos em plena natureza. 
A janela é muito grande. Antes tinha umas cortinas de renda a meia altura. Agora achamos que preferimos a nudez do vidro que nos traz a visão integral do exterior. 
Sentámo-nos, entretanto, no sofá a descansar. Ele adormeceu logo. Eu não. Depois vimos dois episódios da Grace & Frankie.

Para o almoço limitámo-nos a restos (do peixe de ontem e de carne que trouxemos). Para o jantar, fiz ovos de tomatada que comi com pão pelo meio e que ele acompanhou com arroz.
E, com esta tomatada, acabei com os belos tomates do vizinho. Era bom que ele se lembrasse de cá voltar a pô-los à disposição. Mas, na volta, viu-me tão reticente em agarrá-los que agora se inibe. E isso será uma pena. Pode trazê-los à vontade que eu rapidamente lhes chamarei um figo.
Agora estive a fazer uma encomenda à ikea e, a seguir, adormeci. 

O meu marido há bocado perguntava: agora já está tudo ou ainda falta alguma coisa? Falta. Falta arrumar a parte de cima da escrivaninha. Está uma confusão desgraçada. Anos de crianças a mexerem e nós a fazer com que o tampo feche. Para encontrar alguma coisa é preciso muita destreza e equilibrismo. Uma coisa tipo mikado.

Se calhar, quando tivermos arrumado tudo, e ele desbastado mato e eu varrido tudo à volta da casa, vamos sentir-nos fatigados por já não termos nada que fazer. Mas, por enquanto, não descansamos enquanto não nos esfalfarmos a trabalhar.

Há explicação para isto? Estamos a ficar uns workaólicos da ménage? Ou what?

Será que não vou conseguir passar um dia de perna estendida...? Pergunto-me.

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Martha Argerich e o neto, David Chen, interpretam Laideronnette de Ravel. As maçãs são aqui mostradas por William Mullan

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Saúde. Alegria. E força nisso.

segunda-feira, agosto 16, 2021

Um fds de tareia

 



O meu marido, ao fim do dia, disse-me: Tu olhas para mim e não vês um idoso... mas olha que sou...'. E sorriu, dúplice. Estava em cima do escadote a colocar um varão metálico, enorme e pesadíssimo. Respondi-lhe que, de facto, o vejo como sempre vi: um homem à altura das circunstâncias. Riu-se e fez que sim com a cabeça, como quem pensa: está bem, abelha; dá-me música

Ficaram os três varões colocados e as cortinas levezinhas de uma das salas também mas os cortinados pesados já não deu. Estiveram ao sol, sacudimo-los, mas achamos que devem ser aspirados. São uns reposteiros de um tecido muito encorpado e, ainda por cima, forrados. Pegar neles requer músculos frescos e, ao fim do dia, a canseira já se fazia sentir. Deixei-os estendidos no chão da sala, a repousar, a ver se não se amarrotam. Quando lá voltarmos logo tratamos deles.

Ainda há muita coisa para arrumar. Como toda a casa foi pintada por dentro, na prática só lá ficaram os móveis. Bibelots, louças, roupas, livros, quadros, espelhos, tapetes, almofadas... tudo foi para o estúdio. 

Agora que já limpámos e lavámos a casa, começámos a trazer as coisas. Mas deparam-se-nos dúvidas. Como quero ter muito menos tralha à vista, há que arranjar local para guardar a remanescente. Não quero deitar fora coisas boas e de que gosto pois quem sabe um dia não me apetece voltar a ter algumas coisas à vista. No entanto, já foi fora imensa coisa.

Depois há os brinquedos e jogos que, por acharmos que os miúdos gostam de os ter à vista quando lá vão, estavam numa das salas. Agora acho que já estão grandinhos e, sobretudo, gostava de ter menos coisas que dificultem a limpeza. 

Acontece que a minha casa, por características arquitectónicas muito particulares, tem pouca arrumação. Também são opções decorativas minhas. Não gosto de móveis grandes que encham as casas, deixando-lhes pouco espaço para respirar. Já contei que, quando lá chegámos, in heaven, a casa era soturna, escura. Havia móveis escuros em toda a casa. 

Os anteriores proprietários tinham-se separado. Ele gostava daquilo e de fazer obras e melhorias em casa. Ela odiava a vida no campo, a pasmaceira, e o marido sempre entretido em coisas que pouco lhe diziam. Lembro-me de um vizinho contar que ela, às vezes, saía a correr de casa, como se quisesse fugir daquele fim de mundo. Divorciaram-se e deixaram tudo para trás. E o que deixaram revelava bem o desinteresse pela harmonia e a tristeza que a habitavam (melhor: que os habitavam a eles também).

A sala da lareira era tristíssima. Para começar, a própria lareira era acanhada, tímida. Mas o pior é que a parede maior estava preenchida com um daqueles móveis modulares, em mogno escuro, que, em tempos, se usaram. Portas em cima, portas em baixo, nichos, estantes, bar -- tudo aquele móvel tinha. Devia ter quase uns três metros de comprido e, de altura, não sei bem, talvez uns dois ou mais. Em madeira escura. De facto, aquilo tinha arrumação para tudo e mais alguma coisa mas tornava a sala sorumbática. Foi logo para a despensa. Vai de parede a parede e do chão ao tecto. E está cheio de brinquedos, de livros infantis, de trabalhos dos meus filhos de quando andavam na escola, de garrafas, de material de revelação de fotografia... sei lá. Um dia que me reforme hei-de dedicar-me a pesquisar o que por lá há... e certamente encherei vários sacos de lixo. Mas isto para dizer que o único móvel com arrumação está atafulhado, já não cabe lá mais nada, acho que nem um alfinete. 

Há ainda, cá fora, a casinha das ferramentas mas está na mesma, a precisar de arrumação à séria. Disse isso ao meu marido: Havíamos de arrumar a casinha a ver se arranjamos espaço. Respondeu-me: Força, estás à vontade. Calei-me pois aquilo não é petisco para uma lady, muito menos alone

Portanto, agora temos uns três caixotes com coisas que não sabemos onde pôr. 

Já tenho uma ideia mas não consegui expô-la cabalmente pois o meu marido ficou logo arreliado: não estejas sempre a arranjar coisas para eu fazer...  Não disse coisas, claro, utilizou uma palavra menos perfumada.

Agora, enquanto escrevo, reparo que ainda não consegui tirar a tinta toda de mim, ainda tenho um ou outro salpico no braço e uma unha quase toda coberta.

Já pintei uma mesinha de branco. Mas o branco é ingrato. Gastei quase uma lata de spray e o escuro do mogno não ficou bem coberto. Com as outras cores tem sido mais fácil.

Tinha também daqueles pequenos móveis que acho que se chamam colunas, umas mesinhas minúsculas, com pés fininhos, altos, com uma prateleirinha em baixo. Eram das minhas avós. Pintei uma de cor-de-rosa pastel, pálido, e outra, a maior, de um verde que pensei que ficasse mais pálido mas que, ainda assim, não ficou mal. Os móveis ganham logo outra graça e a casa também.

E ainda tenho mais umas duas ou três para levarem igual tratamento. 

Tinha, na parede da casa de banho maior, uma moldura escura em volta de um azulejo pintado à mão. Não gostei de ver. Pintei-a também. Mas deu luta pois tem um friso dourado que tentei preservar; não foi fácil. Tenho que arranjar fita-cola de pintor. Usei fita-cola larga normal e rapidamente percebi que não é a mais aconselhável.

Tenho umas outras que vou ver se arranjo spray dourado ou prateado para as aclarar e iluminar. 

Na sala da lareira também já há um tapete novo, mais claro que o anterior que foi para outro sítio.  A sala está muito mais alegre, iluminada, envolvente. Para a cozinha foi um outro que estava quase escondido. Talvez seja mais pequeno do que devia mas é bonito. Tenho que ver se me habituo à sua dimensão.

Não temos tido um minuto de descanso entre ir comprar o que nos faz falta e limpar, arrumar, colocar. 

Por exemplo, atrás das portas do quarto e das casas de banho, portas que eram de madeira escura, havia uns cabides de madeira, aparafusados às portas pelo lado de dentro. Agora com as portas branquinhas, nem pensar em atarrachar-lhes aqueles cabides. Entã,o fomos este domingo de manhã comprar uns branquinhos, daqueles que se põem a passar pela parte de cima da porta, não sendo preciso parafusos ou pregos. 

Nas mesas de cabeceira tínhamos uns candeeiros de pé dourado e com abat-jour de papel de tipo pergaminho com filet dourado. Dantes eu gostava sobretudo de coisas elegantes. E não pensava se eram ou não frágeis. E geralmente eram. Com o tempo, os frágeis abat-jours queriam separar-se do aro dourado que os sustinha e tínhamos que andar sempre a obrigá-los a um equilibrismo. Então, resolvemos dar-lhes tréguas. Comprámos uns simples e aparentemente indestrutíveis. Já lá estão. As mesas de cabeceira, tal como a cómoda, já não são escuras: são agora de um branco com toque a verde-água. Com o tampo em mármore, tudo fica clarinho a sereno. Os candeeiros ficam lá muito tranquilos, sólidos e, ao mesmo tempo, discretos.

Fomos no sábado e trabalhámos no duro até que, ao fim do dia, interrompemos para irmos visitar a minha mãe e virmos jantar a esta casa (a lindas horas, diga-se...). De manhã, neste domingo, estava eu a dormir o sono dos justos, acorda-me ele: 'estive aqui  pensar que, se calhar, o melhor era voltarmos lá para ver se damos cabo daquilo'. Não costumo ser receptiva a propostas desonestas quando sou acordada no primeiro sono mas, assim como assim, a ideia pareceu-me boa. Arranjei os mantimentos e fomos, parando para irmos às referidas compras. 

De facto, como balanço, posso dizer que ainda não foi desta que demos cabo daquilo. Mas trabalhámos alarvemente. Como de costume, andei descalça e não apenas andei de balde e esfregona como andei a lavar à agulheta uma série de coisas. E a pintar e a arrumar e a sacudir almofadas e tapetes. E sei lá que mais,

Viemos de lá tardíssimo, estafadíssimos. O que nos valeu é que os figos já estão bons senão também teríamos vindo varados de fome. 

Aliás, com este calorão, quer-me cá parecer que estão a ficar maduros à força, quase cozidos, sem terem tempo de crescer. 

Apanhei os que estavam à sombra, mais à fresca, e, logo ali, despachei o assunto. Estes aqui acima, que são os que estão mais perto de casa, são dos pardinhos, encarnado-rubi por dentro, doces que só visto. Depois de ter a barriga cheia, apanhei mais uma mão cheia deles para levar ao ancião que andava a esfalfar-se lá dentro. Isto por umas duas vezes.

Chegámos tarde e más horas e logicamente ainda fomos tomar banho. Portanto, jantámos (restos) bastante tarde. 

Passado um bocado de aqui estar deitado, adormeceu. Eu também estou capaz disso até porque já é tardíssimo mas, antes de me ir deitar, gostava de ainda ver um episódio da série que tenho andado a ver, o Bodyguard. Estou a gostar. O mundo dos Serviços Secretos interessa-me.

E ainda vou seleccionar umas fotografias quer feitas aqui quer in heaven. Já viram que consegui captar o pica-pau que por aqui estou sempre a ouvir?

E, pronto, é isto. 

Esta segunda-feira é dia de trabalho. Com sorte, consigo restabelecer-me da tareia que foi este fim-de-semana. 

[Tareia mas tareia da boa, note-se. É disto que eu gosto: de mudar, de limpar, de arrumar, de varrer, de lavar, de pensar em tornar a casa mais acolhedora, mais bonita]


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Desejo-vos uma semana muito boa.
Saúde. Alegria. Motivação.

quarta-feira, agosto 04, 2021

Dia de ida ao médico

 



Há dias em que tudo converge: todas as reuniões parece que têm que ser naquele dia, todas as urgências parecem inadiáveis. E calha no dia em que há consulta, também ela inadiável. E a campainha a tocar quando se está em reunião, telefonemas a chegarem quando se está ao telefone. Podem dizer que isto dos astros é treta mas, se isto não é um alinhamento astral destrambelhado, não sei o que seja.

Foi esta terça-feira. Hoje era dia de ir mostrar análises e um dos exames mas parece que não havia mais coisas para tentar encaixar. Um stress que tentei gerir sem me stressar.

No médico, nada de muito especial mas, ainda assim, necessidade de continuar e complementar a medicação e prescrição de novo e algo sofisticado exame, daqui por uns seis meses, para validar como estão as coisas e observar mais em pormenor o fluxo sanguíneo, em especial em determinadas condições. Ainda se tenta perceber o que me aconteceu e causou as sequelas que subsistem. Melhor: não propriamente a causa, que essa pode ter sido qualquer uma, mas, mais, tentar perceber os riscos de que volte a acontecer algum acidente ou se as sequelas são apenas as já identificadas ou se há outras.

Gosto do médico. É sóbrio, atento. 

Lê o relatório, vê as imagens, volta a ver e pergunta-me: 'Como se sente?'. Respondo: 'Bem'. Ele olha para mim com atenção. Faz-me impressão que me olhem assim quando tenho a cara quase toda coberta. Tenho vontade de tirar a máscara para que veja que não estou a mentir. Insiste: 'Não sente cansaço? Falta de ar?'. E olha-me. Confirmo: 'Não, não sinto nada.' Depois rectifico: 'Sinto-me normal'. Ele continua a olhar-me. Por momentos duvido de mim. Serei tão optimista que nem percebo que não estou bem...?. Mas não corrijo a resposta. Ele diz: 'Ainda bem'. Mas depois, volta ao mesmo: 'Não tem sentido dores no peito, tonturas, falta de fôlego?. Confirmo de novo: 'Nada. Normal'.

Explica-me e comenta os resultados do exame. Ouço com atenção. Por sua iniciativa, responde à pergunta que eu poderia ter feito: 'No limite o que poderá acontecer-lhe é...' e diz o que é. Não digo nada mas penso e ele, de novo adivinhando-me o pensamento, acrescenta: 'Mas, face ao seu estado actual, diria que é pouco provável que isso aconteça'. Não comento mas penso que também acredito que é pouco provável. 

Depois levanta-se, coloca-me a pinça no dedo e lê o valor no monitor. Então comunica-me, como se a tranquilizar-me: 'O oxigénio está bom'. Já no outro dia aconteceu o mesmo. Fico intrigada. Será que pensa que isso me preocupava? Melhor: será que isso é coisa com que deva preocupar-me? Não percebo. Mas, como ando numa de não querer saber tudo, não pergunto. Mas porque haveria de estar com o oxigénio baixo? Depois passa para a tensão. 'Está boa', diz-me. Ausculta-me. Como não diz nada, agora pergunto. Ele diz: 'Está bem'. Depois vê-me a pulsações nas pernas, um pouco acima do tornozelo. Diz: 'Também está bem'. Nunca tal me tinha acontecido, verem-me a pulsação na perna. Estive para perguntar mas logo me desinteressei. Se calhar acha os meus pulsos pouco credíveis.

Por fim, pergunto se há cuidados que deva ter. Detesto 'cuidados a ter' mas, apesar disso, acho que devo saber. 

No domingo estivemos in heaven e, na sequência das pinturas, a casa estava virada do avesso, tudo cheio de pó. Com a porta aberta e gente a entrar e sair durante uns dois meses (dois meses intermitentes pois acho que foram mais os dias em que não iam do que os que iam), deixaram a casa num lindo estado. Ainda por cima, levaram o balde e a esfregona. Por momentos pensámos que o melhor era contratar uma empresa de limpezas. Mas as coisas não estavam no sítio, tudo desarrumado e, sem lá estarmos, gente desconhecida, era outra chatice e mais demora. Fomos comprar o balde, a esfregona e produtos e deitámos mãos à obra. 

Gosto de fazer limpezas profundas. Limpo móveis ao pormenor, por trás, por baixo, escovo-lhes os meandros, lavo casas de banho, azulejos, esfrego. 

Há tempos uma conhecida cujo marido é um médico experiente, conceituado, disse-me dele, à sua frente: 'acho que a vocação dele é tratar da casa'. Ele sorriu e encolheu os ombros, com compreensão perante os desmandos da mulher. Eu entendo-me bem com ela, o meu marido entende-se bem com ele. Ela disse isso na sequência de estar a contar-me que o marido, uma ou duas vezes por ano, aluga uma máquina profissional de encerar, se bem percebi uma máquina que antes retira a cera anterior e, depois, aplica a nova e dá brilho. Dizia ela que ele andava pela casa com a máquina, parecia, dizia ela, um daqueles trabalhadores que, nos hospitais, andam com grandes máquinas a lavar e encerar os corredores dos hospitais. E eu às vezes penso que, na volta, a minha vocação também é fazer limpezas profundas, grandes arrumações. Não a banalidade e a pouca coisa. O dia a dia, na lida doméstica, não me despertam interesse. Mas andar descalça, meio despida, cabelo apanhado, de vassoura, balde, esfregona, panos e embalagens de produtos de limpeza, isso, sim, motiva-me à brava. 

Saímos de lá já tarde mas com parte da casa já habitável, limpinha, cheirosinha.

Felizmente, foi no domingo passado. É que o médico disse-me hoje: 'o cuidado a ter é, sobretudo, quando estiver cansada, descansar.' Fiquei a olhar e a processar. Parecia um conselho la-paliciano demais. Ele explicou: 'Evite cansar-se. Se sentir cansaço, descanse'. Quando cheguei ao pé do meu marido pensei se não deveria sonegar-lhe essa informação. É que, agora, receio que tente condicionar-me por tudo e por nada. Mas a verdade é que, no domingo, andei naquela trabalheira toda e não me cansei. Contudo, se fosse agora, não só andaria ele a querer que eu não andasse naquilo como, com tanto cuidado, até eu ficaria de pé atrás, se calhar a tentar descobrir algum vestígio de cansaço.

Não tenho vocação para ser uma 'mulher doente'. 

Enquanto estou na sala de espera, esqueço-me da minha própria condição. Durante um bocado, mantive-me sentada, sossegada. Quando dei por mim estava quase a dormir. Então, para ver se me mantinha acordada, pus-me a observar as pessoas. A mulher, talvez com uns quarenta e tal anos que devia ter tido um avc ou qualquer outro acidente que a deixou combalida, quase incapacitada. O marido e os filhos tentavam ajudá-la, orientá-la. Ela apática, arrastando-se, perdida. 

Às tantas, para espertar, levantei-me pus-me fazer piscinas no corredor. Eu num sentido, um outro, talvez da minha idade ou um pouco mais novo, a fazê-las em sentido contrário. De cada vez que ele passava ao lado da funcionária, protestava. Estava quase colérico, que no sns os atrasos compreendiam-se, ali não. Eu, tranquila, observando. Já não tinha compromissos, estava zen. Depois uma mulher jovem, despachada, bonita. Queria saber se podiam tirar-lhe um pontos que tinham ficado esquecidos. Sentei-me por perto para ouvir e tentar perceber que mistério era aquele. Como tantas vezes me acontece, pensei que gostava de abordar as pessoas, pedir para fotografá-las, fazer-lhes perguntas. Depois chegar aqui e fazer reportagens autorizadas. Assim, não posso dizer tudo o que ouvi: sem autorização das pessoas, seria coisa de paparazzi pôr-me aqui a relatar o que ouvi à sorrelfa.

Depois do médico, fomos ao Leroy comprar primário e um rolo com cabo e à Fnac buscar uma coisa. Ao estar ali, deu-me uma vontade súbita de mergulhar no mundo antigo. Fui à Zara. Estranhamente, nada me seduziu. Para onde olhava, não apenas não via nada de extraordinário como pensava que não tinha falta. Ao passar pela Natura e pelos seus saldos, também me deu vontade de espreitar. A mesma coisa. Ao fim de cerca de ano e meio sem entrar em lojas de roupas de mulher... entro e nada me seduz. Nada. Concluí que estou curada: já não sou consumista. Como é óbvio, fiquei contente.

Ao chegarmos a casa, estreámo-nos nos testes covid. O meu marido tem andado constipado, com tosse, com dores de garganta, adoentado. Então, resolveu testar-se. Eu ia lendo as instruções e ele ia zaragatoando as narinas, espremendo a zaragatoa no frasco não sei quantos, etc. Comprou dois testes. Se ele estivesse positivo, a seguir testava-me eu. Felizmente está negativo. Portanto, tout est bien qui finit bien.

Para o jantar, resto do frango assado que trouxe, no domingo ao fim do dia, de um take away não muito longe da casa da minha mãe. Tinha feito ontem uma salada russa, cujo resto acompanhou o frango. Fácil e agradável. 

Depois de jantar, ligou-me o meu filho. Tinha estado a jantar com um outro médico com quem falou do que o meu me tinha prescrito. Eu tinha-lhe contado quando ele me ligou antes de ir jantar. Tinha-me logo dito que achava que o medicamento novo batia na trave. Confirmou: a opinião do outro médico era também que os colaterais eram grandes e que, na opinião dele, eu não deveria tomar. O meu filho disse que nisto o melhor seria eu ler o folheto, avaliar e tomar a decisão por mim, levando também em conta a confiança que o cardiologista me inspira. Concluí que a medicina é tudo menos ciência exacta. Concluí também que vou perguntar à minha mãe que chá me recomenda. Ou seja: não tenho paciência nenhuma para isto.

Tenho aqui ao meu lado o livro que ando a ler, de que estou a gostar bastante e do qual queria transcrever um bocado. Mas não deu. A ver se amanhã, consigo. 

E, assim de repente, nada mais. Apenas mais um dia nesta minha vida que tem pouco que se lhe diga.

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Fotografias provenientes do artigo do Guardian: Top seeds: artists capture global efforts to future-proof nature

Ben Harper & Vanessa Paradis interpretam Waiting on an Angel

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Desejo-vos um dia muito bom

Saúde. Alegria. Ânimo

segunda-feira, novembro 02, 2020

Sempre existirão dentro de nós
[e, ainda, a despropósito, aquelas insignificantes minudências de que a vida é feita]

 


Não há um dia específico para lembrar aqueles que partiram. No outro dia a minha mãe, ao conversar comigo sobre uns amigos de juventude, ia referindo um e outro e acrescentava 'já morreu' e a seguir 'também já morreu'. Às tantas, resumiu: 'desses tempos, só já cá estou eu e ...' e referiu mais umas duas ou três pessoas. Depois acrescentou que isso lhe faz um bocado de impressão. Imagino. Penso algumas vezes como será quando eu tiver a idade dela, vendo-me cada vez mais perto do fim da linha. 

De todos os que, da minha família, se foram nos últimos tempos, guardo memórias que acarinho. Não tenho para elas um dia em especial. As memórias vêm quando vêm. Não penso neles como seres ainda com matéria que justifique uma visita. Para mim, fisicamente já não existem. Uns estão enterrados, outros foram cremados. De uns foram depositadas as cinzas, de outros havia a ideia de as deitar ao vento em lugares que lhes eram queridos. 

Por isso, o dia em que se recordam os que partiram não tem, para mim, qualquer significado. É apenas mais um dia. 

A vida é isto mesmo, um daqueles tapetes rolantes em que entram uns, saem outros. Quanto tempo nos vamos aguentar em cima dele é uma incógnita. Tenho um amigo que organiza a sua vida em função de quando for mais velho, chegando mesmo a equacioná-la caso fique viúvo. Aliás, ele não o explicita, diz apenas: 'não quero isso pois, se um se for e o outro se vir sozinho, não sei como seria...'. Eu, que sou optimista militante e despreocupada, penso em função do que vale a pena. Se agora é bom, já vale a pena. Pode ser bom apenas durante uns dias, mas já vale a pena. Pode acontecer uma hecatombe e o futuro não ser nada daquilo que se pretendia mas se, enquanto durar, for bom, então, já vale a pena.

E, durante um bocado da nossa vida temos connosco amigos e família que, aos poucos, vão ficando para trás e, ao mesmo tempo, vão entrando outros. É assim. Não vale a pena pretender que seja de outra maneira.

Hoje, aproveitando estarmos no mesmo concelho, fomos de manhã à praia e encontrámo-nos lá com a parte da família que também cá mora. Todos de máscara apesar do ar livre. Os meninos andam na escola, os mais pequenos sem máscara, portanto nunca se sabe. Também é um dado adquirido que resisto mal a manter-me afastada deles. Portanto, para me protegerem, não tiram a máscara. Enquanto os pais foram correr, eu joguei ao disco com a menina, fiz buracos na areia com o mais pequeno, fiz pizas com o do meio, organizei saltos em altura e em comprimento com todos. Ar livre, aquela leve neblina que nasce junto ao mar, a companhia dos meus. Tão bom. Bom tempo, apesar de tudo. Uma temperatura branda, poucas pessoas, um areal amplo. A água estava boa mas apenas molhei os pés. Depois deles terem ido, fomos nós dois fazer uma caminhada.

De tarde, andei, de novo, de volta dos livros. Na primeira leva, houve uns maus passos. Não sei como, algumas autobiografias, biografias e correspondência que não de língua portuguesa vieram parar à estante dos autores de língua portuguesa. Provavelmente por falta de espaço nas estantes lá de cima. Em contrapartida, vários de língua portuguesa foram parar às estantes onde supostamente só devia haver autores que não de língua portuguesa. Por isso, andei abaixo e acima a trocar a questão das nacionalidades. Depois a reorganizar: uma zona para correspondências, outra para entrevistas, outra para diários, outra para autobiografia, outra para biografias. E outra para crónicas. Em baixo tudo isto mas de autores de língua portuguesa. Em cima a mesma coisa mas para não de língua portuguesa.  Também autonomizei numa pequena estante, os livros que falam de livros, que falam de literatura ou de crítica literária. E ainda vou arranjar uma prateleira específica para literatura pornográfica/humorista/picante. Constatei que tenho pouco deste género. Não sei se há mesmo pouca, se sou eu que tenho pouca. Acho que, um dia que tenha tempo, hei-de tentar compor o ramalhete.

Tive que interromper pois tinha mais que fazer pelo que esta segunda-feira terei que arranjar tempo para ver se concluo a empreitada.

Não tive foi tempo de ir arrumar as roupas que vieram no outro dia e que ainda estão em sacos. Tenho que ver bem como as separo e guardo. A roupa guardada durante muito tempo fica a cheirar a mofo, parece que fica áspera. 

Este domingo fiz uma máquina com toalhas turcas que vieram no outro dia. A maioria já tinha vindo. Estas estavam esquecidas lá num roupeiro. Apesar de estarem lavadas, não consegui guardá-las assim. Parece que a roupa perde a vida quando está esquecida. Mas tudo isto dá trabalho. O meu marido queixa-se, diz que nesta casa não consegue descansar, há sempre coisas para fazer. É verdade, tem razão. Mas é porque ainda estamos na fase de instalação. Também todas as caixas que trouxemos no outro dia, tupperwares, jarros, medidores de líquidos, coisas assim, é tudo lavado antes de ser guardada. Uma trabalheira. E decidir onde se guarda, outro desafio. Para as coisas não ficarem atravancadas, para ficarem acessíveis, para ficarem arrumadas de forma lógica... é preciso cá uma ginástica mental...

Estes armários da cozinha vão até ao tecto. Há, pois, muita arrumação. Contudo, só com escadote alto eu conseguirei chegar às últimas prateleiras. Por isso, aquilo que o meu marido tem posto lá para cima, é bem capaz de também ficar meio esquecido. Quando penso em voz alta sobre estes profundos dilemas, o meu marido remata sempre: se deitasses fora tudo aquilo de que não precisas já não tinhas tantos dilemas... E aí eu calo-me.

Tirando isso, o que sei é que este ano, ao estar afastada das zonas de consumo, não sei como estão as lojas. Já devem estar a antecipar o natal mas imagino que seja um bocado triste. As lojas devem estar meio vazias de fregueses e mais ainda hão-de ficar. E os proprietários e os empregados devem estar assustados. Compreendo. O comércio, com o tempo, vai deslocar-se para o online. As grandes superfícies tal como os grandes espaços de escritórios devem ter o destino traçado. Mas outras coisas surgirão. Há-de desenvolver-se tudo o que tenha a ver com a natureza, creio. E com a proximidade, onde possamos ir a pé, onde nos conheçamos todos. O regresso ao espírito de aldeia. E isso talvez seja bom. A sociedade há-de ajustar-se e adaptar-se a tendências sociais que vão surgindo. É isso: uns saem do tapete rolante, outros entram. Pessoas, hábitos. 

Ficam as memórias. Sempre as guardaremos dentro de nós.

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Rianne van Rompaey aqui é fotografada por Mikael Jansson ao som de Always on my mind numa interpretação de The Webb Sisters.

E Tom Hiddleston diz Do not go gentle into that good night de Dylan Thomas 

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Desejo-vos uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira.

domingo, novembro 01, 2020

Vamos ter que viver com o coronavírus, em relação de dependência, até finais de 2021...?
Ah pois vamos.
Por isso, vamos lá a ver como melhor sair desta vivos, inteiros e prontos para reaprender a viver como se fossemos livres.

 


Hoje trabalhámos imenso. Estivemos a arrumar as coisas que vieram no outro dia, no último round da mudança. Caixas, sacos. E a colocar no lugar certo o que tinha vindo da primeira vez e que tinha sido colocado um bocado ali, só para nos livrarmos de caixas. Bibelots não utilizados, roupa que estava provisoriamente onde não devia, à espera que viessem os roupeiros, revistas de decoração, revistas Ler, revistas Relâmpago, livros da minha área académica, da área dele, coisas assim. Já está quase tudo. As jutas e lãs dos tapetes de arraiolos também já estão arrumadas. Malas, carteiras também quase tudo. Produtos que vieram das casas de banho também. 

Ainda há algumas na outra casa mas já é tudo residual. Já não assusta, nem há pressa. O meu marido diz: quando vendermos a casa, vamos buscar o resto. Espero que antes mas também não faço grande questão. Sei que vai ser outra sessão de decisões complicadas. Por exemplo, ele trouxe pouca roupa. Dos vários blazers azuis, todos iguais, que lá tem, deve ter trazido um. Dos de bombazina, ainda no outro dia que espreitei vi aquele azul muito escuro, praticamente preto, que eu gosto tanto de lhe ver. Diz que não precisa deles todos, que já têm algum tempo, que vai dar tudo. Nem quero pensar. Camisas vi lá uma enfiada delas. Diz que já trouxe aquelas de que precisa. Parkas são várias as que ainda lá estão, em bom estado, bonitas, boas. Não quer, diz que não quer encher os armários, que já cá tem que chegue. Não ando com disponibilidade para reagir mas sei que isto vai dar irritação. Faz-me impressão uma pessoa desfazer-se de tudo sem querer saber de vir a precisar ou a apetecer-lhe usar e já não ter. Está cada vez mais minimalista, mas a um ponto que a mim quase me choca. Por isso, não me importo de ir adiando esse confronto.

Mas foram horas e horas, a arrumar, a levar daqui para ali, a subir e a descer escadas. Uma canseira. Amanhã ainda há que fazer mas já muito menos. 

Devo dizer, contudo, que gosto de fazer arrumações de fundo. Gosto de pegar numa coisa que parece caótica, uma cave cheia de caixas e sacos e tretas e, aos poucos, ir vendo tudo a compor-se, a desordem a transformar-se em ordem. Gosto mesmo. A ver se amanhã, depois de tudo arrumado, o espaço amplo e organizado, varro e lavo o chão. Tenho este lado de femme à ménage que é muito forte.

De manhã, antes de começarmos com a empreitada, fomos fazer uma caminhada na praia. Estava um sol bom. Tirei a blusa de manga comprida, fiquei apenas com um top de alcinhas. Mantive as calças porque me pareceu que ficar de cuecas era capaz de ser chato. Este domingo levo calções. Apanhar sol é bom. Andar é óptimo. Depois fomos ao supermercado pois ontem não arranjei produto para limpar madeiras. Aproveitei e trouxe peixe que fiz cozido com todos. Fiz ainda uma máquina de roupa.

Ando com um vaso de Erica gracilis para transplantar há uma semana e ainda não tive tempo. A ver se consigo antes que definhe. Também tenho uns caroços de pêra abacate que quero plantar a ver se nascem árvores gigantes e carregadas de fruta macia que também quero ver se é este domingo que é desta.

Tirando isso, a pandemia. As notícias não são boas e a ver se um dia destes não estamos à volta dos 10.000 novos casos por dia. Não sou puto alarmista ou pessimista mas, neste caso, a menos que as mais recentes medidas sirvam de travão às quatro rodas, não estou muito tranquila. Isto vai ser a doer (aliás, já começou a doer).

Estive a ler uma entrevista a Christian Bréchot, presidente do Global Virus Network e o que ele diz não é especialmente animador: que a primeira leva de vacinas será para os grupos de maior risco, que será pouco eficiente, e que vacina mais efectiva e para o maralhal só lá mais para os fins de 2021. E que os tratamentos existentes são limitados, pouco clara a evidência da sua eficácia. Tudo ainda muito nebuloso. Portanto, é isto. Um cenário do caraças.

Ou seja, dado que o cenário é nebuloso e incerto, temos que aprender a virar-nos. Temos que aprender a perceber melhor os mecanismos de contágio para tentarmos sobreviver sem grandes danos, não nos deixando contagiar e, também, não menos importante, sem contagiarmos outras pessoas. E temos que arranjar mecanismos para irmos passando por entre os pingos da chuva sem desaprendermos as manifestações de afecto que agora são contrariadas pelo distanciamento. Isso preocupa-me e chateia-me (o que, podendo parecer que são coisas sinónimas, não são).

E temos que sei lá o quê, que nada disto é fácil. Os hospitais vão estar cada vez mais a rebentar pelas costuras. E a gente ter alguém da nossa família a entrar para um hospital numa altura destas e não poder acompanhar, estar perto, visitar, é uma dor de alma. Sei bem do que falo. E para quem está doente e é internado ainda bem pior deve ser, uma solidão e um medo que ninguém merece. Portanto, a ver se nos portamos inteligentemente para sairmos deste pesadelo bons do corpo e da alma.

Por mim, vou-me socorrendo da beleza. Nomeadamente da beleza das palavras. E da beleza das imagens e da música. 

Abaixo, Shakespeare - Soneto 116 lido por Sir Patrick Stewart. Um bálsamo.


As fotografias são de Hatti Rees ao som de Les Feuilles Mortes numa interpretação de Yves Montand

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E tenham, meus Caros, um belo domingo

segunda-feira, agosto 10, 2020

O que as fotografias não dizem





Nestas arrumações aparecem coisas surpreendentes. Espantoso como a vida dá mil voltas, como nós nos encontramos e desencontramos e, ao fim de muitos anos, quando já nem nos lembrávamos da sua existência, eis que, do nada, há coisas que reaparecem.

Para o fim, estão a ficar aquelas coisas que, para mim, são como galpões. Sinto terror do que para lá esteja, coisas inesgotáveis, pesadelos. Armazéns nem sei de quê. Ao longo de anos, a gente vai lá metendo coisas. Às tantas a gente já perdeu o tino ao que para ali está. Acredito que alguns dos meus Leitores não percebam isto. Mas a minha casa é grande, tem muito movimento, muita vida se tem vivido por aqui. Sei lá.

Eu estava a esvaziar uma grande secretária que está no quarto que era da minha filha. A secretária mede um metro e setenta de comprimento e é muito funda. O que de lá saíu... Ao meu lado tenho daqueles sacos grandes para o lixo e vou enchendo. Mas o mais surpreendente foi que descobri lá, numa das portas de baixo, os sapatos que usei no casamento dela. Uns sapatos lindos. De tecido cor de pérola, de cetim, bordados, com brilhozinhos, fechados à frente, abertos atrás, só com um fiozinho a prender no calcanhar. Um tacão fininho. Lindos, lindos. Estão envoltos em papel de seda, numa caixa. E a bolsa que usei também nesse dia. No mesmo tom, igualmente bordada a brilhozinhos no mesmo tom. Obras de arte. Guardei-as tão bem que nunca mais me lembrei. Também nunca mais calhou vestir um vestido como o que vesti naquele dia, naqueles tons. No casamento do meu filho o vestido era um misto de azul turquesa e verde esmeralda, todo brilhante. Não podia levá-los, o tom não calhava de todo. Depois disso, também não calhou. Ou, se calhar, até calhou mas não me lembrei. Ou, na volta, é a vontade de os preservar. Parecem uma relíquia. Um dia ainda os ponho em exposição numa vitrine.


O meu marido estava a esvaziar o móvel grande desta sala, o móvel às ondas. Por cima tem portas de vidro e tem livros mas, em baixo, as portas são de madeira e, como é muito largo na parte em que a onda se chega à frente, cabe lá tudo. Volta e meia ouvia-o a praguejar. 'Mas o que é isto?!?' Também deitou muita coisa fora.´É lá que estão as fotografias. Sempre fui viciada em fazer fotografias. Dantes imprimiam-se e eu, quando eram as fotografias dos miúdos, arrumava-as em álbuns. Só que volta e meia alguém vai ver os álbuns, tira uma ou outra fotografia para mostrar a alguém e depois já não sabe de onde tirou e fica de fora. Depois havia os negativos. Envelopes e envelopes de negativos. E, a partir de certa altura, deixei de arranjar aqueles álbuns pequeninos e passaram a ficar em envelopes. Centenas e centenas deles. Depois as avulsas, as que alguém nos deu, as de casamentos, em eventos, sei lá. Ele com um conhecido ex-ministro, por exemplo. Coisas assim.

Uma fez-me ficar cheia de pena. Uma pessoa do meu emprego casou a filha. Convidou todos os do seu grupo. Um grupo de homens e as respectivas mulheres. E, como sempre, eu e o meu marido. Uma, casada com um grande amigo e também, ela, minha amiga, tão alegre, uma bem disposta que fazia rir toda a gente à sua volta, um poço de anedotas e de histórias, médica num grande hospital, tão saudável e bem encarada. Foi-se há um ano e picos, um desgosto grande que senti, uma coisa tão estranha. Por meias palavras, penso que aludi a isso aqui. O marido ligou-me a seguir ao natal, estava com ela ao lado, estavam bem dispostos, combinámos encontrar-nos no início do ano. Tranquilo. Poucos dias depois, talvez menos de uma semana, ligou-me, ela estava muito mal. Nem acreditei no que ele dizia. Nem ele acreditava. No dia seguinte, ligou-me: ela já se tinha ido. Escondeu dele que estava tão mal. Sendo médica, deve ter-se medicado para não ter dores e para ele não perceber. Estava cansada, notava ele, mas era o período das festas, da compra de presentes, de ter gente em casa, essas coisas. Afinal, veio a descobrir-se: não estava cansada, estava era por um fio. Os colegas dela do hospital sabiam que a doença estava a progredir rapidamente mas não sabiam tudo, ela encobriu de toda a gente. Quis viver a pleno até ao fim. Não quis causar preocupação a ninguém. Acho isto de um estoicismo incrível. Quando se pensa que a morte é uma disrupção absoluta, pensa-se mal. A morte, quando não acontece por um abrupto acidente, pode ser um apenas o fim de um caminho progressivo. A cabeça pode estar bem e tudo parece estar bem e, no entanto, por dentro, a morte está a fazer o seu caminho. E um dia leva a melhor e a máquina pára. 


Também está nessa fotografia um outro que, na altura, se destacava sobretudo pela muito alta estatura. Destacava-se naturalmente. O pai, não sabendo que ele ia ficar tão alto, deu-lhe um nome que também o faria destacar-se onde quer que se apresentasse. Vigoroso, altivo, apoiado pelo pai que, desde cedo, o preparou para ser o maior, o melhor, em todo o lado ele dava voz de comando. Mais temido do que amado, fiquei surpreendida por conhecer a sua mulher. O oposto dele. Ele um prepotente, ela uma inocente palradora. Pouco tempo depois dessa tarde em que ali nos juntámos para a fotografia, ele foi vítima de um episódio nunca bem explicado. O assunto veio nos jornais, apareceu na televisão, reportagem no local. No dia seguinte, ligou-me um desse nosso grupo. Tinha eu ouvido as notícias? Sim, claro. E não sabia quem tinha sido? Não. Credo, não me diga que alguém conhecido... Pois. Ele, o arrogante gigante. Estava em coma, em risco de vida, poucas probabilidades de sobreviver. Eu não queria acreditar no que ouvia. Meses internado, perdeu o andar, a fala, tudo. Desfigurado. Sobreviveu, pois, mas com severas limitações. Mas naquele dia, sorrindo, o cabelo brilhando ao sol, estava longe de saber o que lhe haveria de acontecer.

Um outro, o melhor de todos nós, uma pessoa recta, vertical, de uma dedicação e lealdade extremas, exigente para com todos mas, sobretudo, para com ele próprio, austero, era visto por muitos como uma pessoa difícil. Eu nunca o vi assim. Sempre me dei lindamente com ele. Daquelas pessoas que mais depressa quebra do que torce. Travou lutas sem quartel, sempre em nome de uma exigência total. Pessoas assim são frequentemente mal compreendidas. Por isso, foi prematuramente afastado. Tive imensa pena. Foi despedir-se de mim, ao meu gabinete, no seu último dia. Estava muito triste. 


Sempre soube que um dos filhos era algo problemático, fraco interesse pela escola. Falava com preocupação do filho mas falava pouco. Era reservado. Tempo depois de ter saído, ligou-me. Estava seriamente preocupado. Queria saber se haveria maneira de recebermos o filho como estagiário, apenas para o rapaz estar ocupado, nada mais pedia para ele. Conseguiu-se. Poucos meses depois acompanhei o que é o drama de ter um filho com problemas mas com inteligência para os encobrir. Durante meses o rapaz iludiu o pai dizendo que todos gostavam dele, que lhe davam trabalho cada vez mais exigente, estava a gostar, tomara que o passassem ao quadro. O pai falava comigo agradecido, contente, via o filho animado, motivado, finalmente parecia que estava a ganhar juízo. Até ao dia que um outro colega me ligou a dizer que ia dizer-me uma coisa difícil e que fosse eu a contactar o nosso ex-colega: o filho dele há meses que não aparecia no trabalho, não dizia nada, não respondia a telefonemas, tinha que se rescindir o contrato de estágio. Fiquei tão dorida como se fosse comigo. Enchi-me de coragem e liguei ao meu amigo. Uma pessoa sempre tão exigente e recta e, afinal, com um filho assim, aparentemente irresponsável e complicado. Ficou em sangue, pelo filho, pelo medo do que se estaria a passar com ele, pela surpresa, tão bem que parecia estar, e, também, por nos ter pedido isto, tão contrário aos seus hábitos, e por o filho o ter deixado ficar mal. O que se passou nesse dia, em que ele se meteu no carro e foi surpreender o filho, até ao que se tem passado a seguir é tema que não poderei abordar aqui. Posso apenas dizer que o problema era grave e que o mais estranho é o facto de uma pessoa conseguir urdir uma tal teia de mentiras e enganos, tudo tão consistente e aparentemente tão sincero e genuíno, que os pais nunca suspeitaram de nada. De nada. 

Mas, naquele dia da fotografia, ele e a mulher sorriam, bem dispostos -- estávamos todos bem dispostos -- sem saberem o pesadelo pelo qual iriam passar.

E estava também nessa fotografia um outro, o pai da noiva, dono da enorme e belíssima quinta onde decorreu o copo de água. Era um homem muito rico. Várias casas, qual delas melhor que a outra. Grandes carros. Despertava inveja por aparecer em carros de luxo, com motorista próprio. Sempre gostei muito dele apesar de ser pessoa que despertava ódios mortais. Era destemido, orgulhoso, provocador. Meteu-se com quem não devia, um dos poderosos deste país, um ser desprezível que por aí anda. Não soube parar. Tantas vezes o aconselhei. Estava varado de fúria pela injustiça de que era objecto. Tinha razão. Mas há um ponto em que tem que se perceber que há poderes que podem muito. Perdeu quase tudo, incluindo aquela bela quinta.


O meu marido perguntou: onde é que guardo esta fotografia? Respondi: recordações. Mas fiquei a pensar que deveríamos ter uma caixa com uma etiqueta a dizer: 'o que as fotografias não dizem'.

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Pinturas de Loïs Mailou Jones a acompanhar Mark Knopfler & Emmylou Harris em If this is goodbye

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Desejo-vos uma boa semana.
Saúde. Ânimo.

segunda-feira, julho 27, 2020

Com o que se parece um optimista?





Penso que sou optimista. Em regra, perante qualquer situação, não me dá para antever o pior. Conheço pessoas que, haja o que houver, mesmo sem nuvens negras no horizonte, começam logo a preocupar-se com o que pode vir a acontecer.  Eu não. E, se há problemas, eu, em geral, em vez de me entregar ao afundanço, ao fatalismo, começo é logo a ver como é que a coisa se há-de resolver. Mas é mais do que isso: mesmo em situações que, para outras pessoas, podem ser contratempos, para mim é coisa de nada, na maior parte das vezes nem dou por isso. Sinceramente, acho que isto é uma coisa boa que tenho em mim. Passo pela vida mais descontraída, sem querer saber do que pensam ou dizem de mim, sem me pré-ocupar com o que pode vir a acontecer. Pelo contrário, aproveito bem o lado bom da vida, deixo que as pequenas coisas me encantem. Provavelmente sou é distraída. Na volta é isso: distraída + míope = optimista.


Por exemplo, perante a situação que estou a viver, tenho aqui em casa quem, ainda a coisa não tinha começado, já antevia trabalhos acrescidos, cansaços insuportáveis, quem protestasse por antecedência, quem me avisasse de que depois não viesse eu dizer que não estava avisada. E eu na boa, mãos à obra, sem dramas, para a frente é que é caminho. Claro que, depois de trabalhos esforçados, chego ao fim do dia cansada, mesmo cansada, até na pele das pernas sinto formigueiro. Hoje o dia foi outra vez daqueles. Tudo passado a pente fino, armários todos ao léu, tudo prontinho para ser limpinho por dentro, tratado, as madeiras hidratadas. Uma trabalheira das valentes. Mas e daí? Claro que parte do trabalho pesado não me cabe a mim, cabe-lhe a ele. Tirar tantos livros para fora é obra. Horas. Ter os armários vazios não é coisa para todos os dias mas quando os vejo limpinhos, um cheirinho bom a óleo reparador ou de cedro, rescendendo a casa lavada, eles todos novos, acho que todos os esforços são justificados. Claro que depois será preciso voltar a pôr tudo dentro deles e, aí, aproveitar para repensar algumas coisas, reorganizar tudo. Têm saído livros, copos, serviços de jantar. Claro que aqui chegada deveria abrir um capítulo para falar do que para aqui tenho e que nunca uso. O meu filho, nestas circunstâncias, aconselha a ver-me livre de tudo o que não preciso. A minha filha, há pouco, também me disse que era uma boa ocasião para pensar se não daria para me desfazer da tralha de que não preciso.


Mas há patamares a que ainda não cheguei. A sala de jantar basicamente está cheia de coisas que não uso mas das quais não consigo separar-me. O serviço da Vista Alegre, que os meus pais me ofereceram antes de me casar e que já está descontinuado, lindo, que não quero arriscar-me a que fique incompleto, o serviço de copos absurdamente elegante e frágil que uma das tias do meu marido nos ofereceu (e que quase não uso com medo de partir obra de arte tão sensível), garrafas de cristal que, ao longo do tempo, fomos recebendo de presente, peças também de arte, pesadas e lindas -- coisas assim. A minha mãe disse-me que também é assim, também tem coisas dessas que mal usa com medo que alguma coisa se parta. Por exemplo, tem dois serviços da Vista Alegre, um que é um modelo clássico, e outro, especial (e de que, por acaso, nem me lembro, tão encafuado deve estar sempre) que nunca 'põe a uso'. Recordou a minha tia, aquela de quem eu tanto gostava. Diz a minha mãe, referindo-se a ela, que nunca conheceu 'coisa' mais desapegada. Diz que dava ou deitava fora tudo aquilo de que achava que não precisava, Lembra-se do meu tio, um dia, lhe perguntar onde estavam umas calças mais velhas que costumava usar quando fazia alguns trabalhos em casa e de ela ter dito, na maior descontração, 'deitei-as fora, já não estavam capazes'. Diz a minha mãe que o meu tio se ia passando, que ela deitasse fora as coisas dela, era com ela, mas que estava farto de lhe dizer que não mexesse nas coisas dele. E que ela encolheu os ombros, nem aí, para a próxima faria o mesmo. A minha cunhada é igual. Não me esqueço da surpresa do meu cunhado quando, depois de desesperar à procura dos seus calções de banho preferido, foi dar com o jardineiro da quinta com eles vestidos. E a minha cunhado, com a maior naturalidade, 'Que é que queres? devo ter achado que estava na altura de teres uns novos, dei-os ao Leontino. Qual o problema?' 

Eu não. Custa-me desfazer de coisas que acho que ainda estão boas, ou de coisas valiosas ou com valor estimativo.


Mas isto vem a propósito de quê, caraças...?

Ah, já sei. Meto-me nestas empreitadas de peito feito, sem me preocupar por antecipação, sem fatalismos, sem encarar com pessimismo o que parece missão impossível, sem sofrer por sentir que me meti numa never ending story. Penso é que o que for soará, que para a frente é que é caminho e bola para a frente. Chego, de facto, ao fim do dia, mais do que exausta e percebendo que nem tão cedo vou ter descanso pois o trabalho que ainda tenho pela frente é ciclópico. Mas não faz mal. Agora custa um bocado mas todos os males fossem estes e, no fim, vai ser tão bom, vou sentir-me tão bem, tudo terá valido a pena. 

E isto, acho eu, é a conversa típica duma optimista. Claro que as más línguas dirão que optimista coisa nenhuma, que isto é coisa é de gente maluca. Pois que seja. Desde que a maluqueira seja inofensiva, há lá coisa melhor que uma pessoa ser maluca...?


Para fim de conversa, recapitulando: míope + distraída + maluca = optimista. 

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Qualquer coisa nesta base:

Charlie Chaplin - Chilkoot Pass / The Lone Prospector - The Gold Rush



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As maravilhosas fotografias do fundo do mar são de Chris Leidy
e espero que gostem de mergulhar nelas ouvindo o The Sound of Silence na interpretação de Stephanie Jones

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Até já

sábado, dezembro 28, 2019

Relato do que foi o meu tão desejado dia de férias





Para que conste: ansiava por um dia de férias. Sozinha. Tinha uma em mente. E requeria horas seguidas por minha conta. Melhor se pudessem ser vários dias e não apenas um. Mas é o que é, um dia, e quando puder voltar a ser, será.

Senti-o levantar-se, tomar banho -- e pouco mais. Voltei a adormecer. Mas não acordei tarde. Sabia que o tempo ia ser curto para a aventura que, há tanto tempo, estava latente.

Por isso, nem me detive muito no pequeno almoço: uma banana, um dióspiro, três ou quatro amêndoas, um café.

E, depois, ala.


Comecei pelo meu quarto. Mais concretamente pela minha mesa de cabeceira. Poupei a gaveta de cima. Ficará para segundas núpcias. As três de baixo. Depois passei para a cómoda, mais concretamente para as duas gavetas de cima, as minhas. Dois gavetões.

Antes, fui à despensa buscar o rolo dos sacos grandes pretos, daqueles quase tipo contentor.

Não me pus com aquela de as coisas me fazerem feliz. Nada disso que não sou de filosofias quando o tema é arrumações: se estão em condições, se é provável que as volte a usar, então para um lado. Se já não me serve mas ainda está em bom estado e bonito e talvez as meninas grandes lhe venham a dar uso, para outro. E se algumas são tão pequenas e justas que talvez venham a servir, um dia destes, para a menina mais pequena, para outro. O resto, num saco para dar. O que não tem préstimo para ninguém: lixo.


Nisto uma coisa me deixou verdadeiramente espantada: como já fui tão magra. Olho para algumas peças e não percebo como foi possível lá ter cabido dentro. Mas no outro dia, ao ver fotografias de há uns anos, constatei como o meu corpo se modificou. Grande parte das pessoas acha que estou bem mas eu sei que devia ter menos uns três ou quatro quilos. A verdade é que, quando casei, vestia o 36, depois de os meus filhos nascerem passei para o 38, ali pelos quarenta e tal anos, em alguns modelos, já ia no 40 e, depois da menopausa, galgou para o 42 -- e já desisti, daqui não baixa. Se vou à nutricionista e corto drasticamente calorias e mudo completamente os meus hábitos, abdicando de muito do que gosto, volto ao 40. Mas como não nasci para sofrer e tenho muita dificuldade em abdicar do que gosto, passado algum tempo já regressei ao 42. Portanto, por muito lindos que sejam os meus vestidos, as minhas saiinhas bem justinhas, as minhas blusinhas bem cintadinhas, a verdade é que já não são para mim. Portanto, bye bye e coração ao largo.

Ao fim da tarde, já tinha também dado a volta ao roupeiro do closet. Aquele roupeiro é um quebra-cabeças. Quando a minha filha saíu, deixou imensa roupa, quase toda a que usava antes de começar a trabalhar. Não consegui desfazer-me da que estava em bom estado. Com o meu filho foi a mesma coisa: deixou praticamente cá tudo. E ainda tudo cá está. Depois a roupa que foi deixando de servir também ao meu marido e que estava boa, idem. Já teve muito mais peso. Quando os miúdos vêem fotografias dele com mais cabelo, o cabelo mais preto, e mais gordo desatam a rir-se, mostram uns aos outros, alta galhofa, quase sem acreditarem que aquele quase badocha é a mesma pessoa que o esbelto grisalho que tão bem conhecem. Portanto, fatos, casacos, blusões, sobretudos, parkas, etc, tudo impecável mas grande demais. Ou seja, este roupeiro que é grande, em vez de ter serventia, está transformado num depósito de peças de utilidade duvidosa.


Retirei peça por peça, vesti cada uma das minhas, avaliei o estado, avaliei a possível reutilização.

Custou-me bastante pôr de lado a roupa dele, casacos tão bons, coisas em tão bom estado, mal empregadas.  Mas não foi fazer uma dieta de engorda para dar uso àquilo, não é?

Fiquei surpreendida como blusas minhas que tinha posto de lado por terem enchumaços e por me terem ficado largas ou apertadas, nem sei, e que agora, vestindo-as, me parecem bem. Fui buscar a tesoura de costura e retirei-os. Voltei a vesti-las e foi como se me tivessem saído na rifa. 

No fim, havia um saco grande de coisas para o lixo onde se incluíam os enchumaços, cabides que se partiram ou que estavam meio mancos, roupa manchada pelos anos de prolongada quarentena e quatro sacos com roupa para dar. E um quinto com roupa que vou levar para o campo pois o nível de exigência lá é menor e roupa mais descontraída, solta, larga e confortável é sempre útil. 

Quando o meu marido chegou, encontrou-me nesta faena. Assustou-se com aquela sacaria (e ainda nem se apercebeu do saco para levar para o campo; mas os roupeiros lá também estão a precisar de levar uma volta). Olhou para o monte de roupa dele que estava para conferir e declarou logo: lixo! Mas eu disse-lhe que, se eu tinha tido paciência para estar há bem mais de oito horas de seguida a arrumar roupa, seria incompreensível que ele não tivesse paciência nem durante um quarto de hora. Lá se esforçou. Mas não há dúvida: jamais voltará àquele peso. Deve ter pesado uns noventa quilos. É alto mas, ainda assim, agora que deve andar pelos setenta e tal (acho eu: ou será oitenta? -- não faço ideia) é que está bem.


Depois tomei um belo banho, vesti-me e fomos passear para a praia. Estava precisada de respirar e de esticar as pernas. De caminho, já levámos dois sacões para o depósito das roupas. Amanhã levamos os outros.

Estava uma noite tranquila, o mar quase silencioso, distante, a maré vazia. E a noite estrelada. Foi bom andar a passear ao fresco. Depois fomos jantar. Já não era cedo.

Contudo, quando cheguei a casa ainda fui arrumar umas coisas. Lembrei-me que o roupeiro do quarto do meu filho ainda tinha muito espaço livre. Por isso, levei para lá parte da roupa que acho que pode vir a ser do agrado das meninas crescidas. Assim, conquistei espaço no outro roupeiro.

Falta-me agora a pièce de resistance: o roupeiro grande que mandei fazer no que era o quarto da minha filha e que se tansformou no meu boudoir, na minha arca dos mil tesouros, a gruta onde a princesinha mais linda gosta de se embrenhar para ir buscar coisas para se produzir.


Precisava de mais uns dias de férias assim, sozinha em casa, para poder completar a empreitada.

Ah, é verdade: para arrumar as gavetas adoptei o método da Maria Kondo. Dantes sobrepunha as peças. Agora não, agoro, dobro-as dobradinhas e ponho-as ao alto: cabe muito mais, está tudo à vista. Ficam umas gavetas mesmo bonitas, arrumadinhas de dar gosto. Uma belezura.

Finalmente: podem achar que não sou boa da cabeça -- e não vou ser eu que vou tentar convencer-vos do contrário até porque, cá para mim, são bem capazes de estar certos -- mas a verdade é que gosto de fazer este género de arrumações profundas, que implicam reorganizar os espaços. Mas, como no outro dia disse à Susana, a minha motivação para estas coisas vai apenas para roupas, sapatos ou livros (embora, no caso dos livros, não me desfaça de nenhum) mas não para peças de decoração. Não estou a ver-me a pegar nas minhas clepsidras ou caixinhas ou quadros ou molduras ou mesinhas de apoio e pô-las à venda no OLX. Mas nunca se sabe. Há pessoas que dizem que a prova de que, no passado, fizeram bem as coisas é que, se fosse hoje, voltariam a fazê-las da mesma maneira. Eu nunca disse tal coisa. Eu faria sempre as coisas de outra maneira, tentaria fazê-las melhor. Com o tempo vou aprendendo e mal fora que a aprendizagem não me servisse para nada. Portanto, com o crescente gosto que tenho pela simplicidade, quem sabe um dia não começo mesmo a seguir o exemplo da Susana?

Com isto tudo, já são três da manhã e nem vou ter tempo de responder ou agradecer os comentários (mas li-os!). Estou um bocado estafada pois passei horas a subir e a descer a mini-escada para tirar e pôr os cabides nos varões de cima, ou agachada ou de joelhos para arrumar as gavetas de baixo. E este sábado tenho que me levantar cedo pois outro dia de trabalho me espera. As minhas desculpas.


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Ao som do Libertango de Astor Piazzolla dançado por dois homens, Sebastián e César, usei as fotografias do último post de Steve McCurry: Power of Gathering de onde extraio algumas assisadas citações:

This is the power of gathering: it inspires us, delightfully, to be more hopeful, more joyful, more thoughtful: in a word, more alive.

Alice Waters

The table is a meeting place, a gathering ground, the source of sustenance and nourishment, festivity, safety, and satisfaction. A person cooking is a person giving. Even the simplest food is a gift.

Laurie Colwin


NB: Obviamente as fotografias não têm a ver com o texto, estão aqui por elas próprias. 

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E a todos desejo um belo sábado. 
Paz e amor. Saúde, sorte e dinheiro. E harmonia e beleza. Essas coisas, vocês sabem.