domingo, julho 31, 2022

O que é que as pessoas insanamente ricas compram e de que as pessoas pobres não têm nem ideia?

 



O título promete mas quando percorri o conteúdo do artigo What Do Insanely Rich People Buy That Poor People Have No Idea About? fiquei um bocado decepcionada. Estava à espera de coisas mais bombásticas. Ali ou vejo quase banalidades ou vejo estereótipos.

Conheço algumas pessoas muito ricas e algumas das coisas que elas compram ou o estilo de vida que seguem não estão ali plasmadas.

Um, por exemplo, tem como residência habitual uma moradia numa das zonas com mais cachet da Grande Lisboa mas, para férias e alguns fins de semana, tem uma casa quase normal numa aldeia na zona da Costa Vicentina. Quem o veja de calções, tshirt puída, chinelos nos pés, a vir do pequeno mercado local de saco na mão, preparado para ir assar peixe no jardim, nem sonha que o seu nome consta da lista dos mais ricos do país. 

Um outro, e já aqui falei dele, tem um grande herdade com coutada no Alentejo profundo. Esse usa parte do dinheiro para proporcionar vida de rico a uns quantos amigos. Falei nele a propósito do Sócrates quando as pessoas se espantavam com o amigo do Sócrates que lhe proporcionava uma rica vida. Este de que falo é isso mas ainda em maior escala. Há um casal em especial mas também um outro, embora em menor escala, que conhecem o mundo e o que de melhor o mundo tem a oferecer porque o amigo rico e a mulher fazem questão que eles os acompanhem. Não vou entrar em pormenores mas a amizade que liga aquelas pessoas faria ficar de olhos arregalados muito boa gente. Há quem veja oportunismo nos beneficiários. Do que conheço, o que há é já uma habituação mútua. Os que dão gostam de dar e os que recebem já o acham natural. Muita gente que os conhece de longa data e sabe como, ao mesmo tempo que passam férias e fins de semana juntos, por vezes parecem cão e gato, frequentemente a discutirem, a contrariarem-se, a discordarem acesamente, dizem: relação de irmãos.

Outros o que compram é a possibilidade de, na sua vida pessoal, estarem quase isolados do mundo. Quase só convivem com a família e com um ou outro leal e raro amigo. O que precisam é-lhes levado. Jamais vão a supermercados ou lojas. As compras vão até eles. Cabeleireiros, modistas, massagistas, galeristas ou médicos vão a casa. Detestam confusão, vivem quase isolados. 

Sei de um, que já não está entre nós, que, sendo senhor de vasta e diversificada fortuna e de casas imensas (conheço duas delas e são extraordinárias, sem luxos absurdos mas de uma tal dimensão e bom gosto que são quase de cortar a respiração), tinha une petite amie, por sinal pessoa invulgar e simpatiquíssima, a quem comprou um pequeno apartamento onde passou a fazer parte da sua vida e onde ficava a cozinhar enquanto ela não chegava do trabalho.

Claro que há ricos e ricos. Haverá outro tipo de pessoas muito ricas que não estas de que falo. Por exemplo, o Cristiano Ronaldo. Compra carros, compra aviõezinhos, compra apartamentos, compra relógios caríssimos, compra roupa de griffe. Pu aquele dos barcos do Douro e da TVI que comprou uma viagem ao espaço. Não sei se foi ele que comprou se foi uma empresa dele mas isso também agora não vem ao caso, o que vem é a opção. Ir ao espaço. Queimar uma pipa de massa pela experiência de se montar num foguetão e pelo prazer em dar entrevistas, certamente pelo prazer de se achar o maior.

Aqueles de que acima falei são poupadinhos, jamais gastariam fortunas a ir ao espaço. 

Podem fazer uns passeios aqui ou ali, talvez até um ou outro cruzeiro pelo Mediterrâneo, umas férias na neve, mas nada de verdadeiramente extravagante. 

Nunca se ouve falar muito disso mas dá a ideia que o que gostam mesmo é de estar em casa com família e amigos. 

Mais depressa doam dinheiro anonimamente a associações que precisem de ajuda do que qualquer outra coisa que faça notícia. Também raramente dão entrevistas. Só as dão quando o rei faz anos e é tão a contragosto que a coisa nem corre lá muito bem. Não usam roupa com marcas à vista e, sempre que podem, andam com roupas velhas, pendonas. Um, no inverno, quando em registo informal, costuma usar um camisolão de malha, já todo assimétrico e com vários pegões. Aquilo já devia ter ido para o lixo há muito tempo mas acho que ele não repara nisso, deve achar que é confortável e que deve estar ainda muito bem. Têm relógios banais, usam canetas bic, nunca os ouvi gabarem-se de alguma coisa que tenham comprado. Mas se lhes falarem num azeite muito bom ou num vinho que não seja muito caro mas seja bom, aí já ficam interessados.

Há, em algumas pessoas, a ideia de que ser muito rico é coisa má, coisa que só pode resultar de exploração alheia ou de manigâncias pouco transparentes. Ou que uma pessoa muito rica é uma pessoa estúpida, ignorante, fútil. Ora, como em todas as generalizações, isso é um erro. Haverá alguns que sim, alguns que não. Talvez os newcomers sejam predominantemente assim. Aqueles de que falei não são newcomers e não são seguramente assim. São pessoas normais. O facto de serem muito ricos não lhes corroeu a normalidade.

Não quero com isto estabelecer nenhuma doutrina nem pregar contra ou a favor. Digo apenas que as generalizações conduzem muitas vezes a conclusões erradas.

Tirando isso, o que penso é que o país está a ir na direcção correcta. Portugal começa a atrair investimento em mão de obra qualificada, em centros de investigação e desenvolvimento, e, com isso, o nível geral de vida tenderá a aumentar. E isso é bom. Os resultados não serão imediatos mas estou em crer que no prazo de uma meia dúzia de anos haverá menos assimetrias e menos pobreza no país. Não é saudável haver algumas pessoas muito ricas e muitas muito pobres e é contra isso que, de forma racional, construtiva e desapaixonada, temos que lutar.


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E, para terminar com um touch of bela vida, um vídeo que decorre em Portofino, num sítio muito bonito do qual guardo uma curiosa memória:

One-day Diary of Cara Delevingne at Dior Spa Portofino

Cara Delevingne relaxes in Dior at the luxury Dior pop-up wellness space in Paraggi complete with a Toile de Jouy spa treatment cabin right on the beach. Discovering the wonders of Portofino and live la dolce vita in the exclusive wellness spaces!


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Desejo-vos um rico dia de domingo.
Saúde. Sorrisos. Paz.

sábado, julho 30, 2022

A Igreja Católica e os abusos sexuais contra crianças

 

Embora nada disto seja aqui novidade, faço questão. 
À laia de disclaimer poderia dizer que me batizaram e me levaram a fazer a Primeira Comunhão e a Comunhão Solene. Nunca senti qualquer tipo de ligação ao que tentaram ensinar-me mas a verdade é que andei por lá. 
Também poderia dizer que, quando visito cidades, gosto de entrar nas igrejas e me sinto bem naqueles espaços amplos, frescos, em que a luz é coada e em que há figuras com ar piedoso que parecem acolher-nos. Poderia também dizer que, in heaven, não descansei enquanto não tive a minha própria capela, um pequeno espaço despojado destinado ao recolhimento. Nunca soube explicar essa minha vontade. E o pessoal deixou de me perguntar embora nunca ninguém tivesse percebido. 
Mas terei também que dizer que, se sinto que há qualquer coisa de soberanamente incompreensível que regula a existência da vida e dos bem sucedidos acasos que são inexplicáveis milagres e que me sinto amparada nos momentos de maior vulnerabilidade, a verdade é que nada disso atribuo ao que se prega nas catequeses, nos grupos de reflexão, nas missas. E, talvez por isso, não batizei os meus filhos e sempre tentei que os princípios castradores e hipócritas que têm regido o catolicismo nunca influenciassem o seu são desenvolvimento.

Contudo, tenho as minhas crenças. Acredito incondicionalmente nos valores supremos da bondade, da generosidade, da liberdade, acredito na defesa dos direitos dos mais desfavorecidos, acredito nos malefícios da intriga, da inveja, da ganância, defendo a paz assente na justiça e no respeito pela vontade dos outros. Acredito no supremo saber e poder da natureza e acredito que devemos respeitá-lo e venerá-lo.

E etc. Coisas assim.

Mas isto é, digamos assim, a introdução e a declaração de interesses antes de falar no que hoje aqui me traz.

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E o que hoje aqui me traz é o seguinte:

De pessoas que abusam sexualmente de outras eu sinto um asco sem tamanho. Também desprezo. Mas o desprezo às vezes mistura-se com indiferença e eu não consigo ficar indiferente quando alguém abusa sexualmente de outra pessoa.

Mas quando o abuso é cometido contra uma criança o asco é mais do que asco. É raiva, é repulsa, é vómito misturado com fúria.

E se a isso se junta que o abusador se disfarça de protector e de emissário da igreja então eu não vejo que possa haver perdão.

Mas perdão sempre deve haver. Tem que existir em nós capacidade de descobrir clemência, em especial se o abusador é um tarado, um pérfido encapotado, alguém tão hipócrita e sinistro que com uma mão penetra na intimidade de uma criança e com a outra dá a hóstia aos devotos. Temos que tentar encontrar em nós capacidade para perceber que só alguém muito perturbado, muito doente, muito psicopata pode molestar uma criança indefesa e depois continuar a encomendar almas, a batizar crianças, a pregar a fé e a caridade.

Podemos não conseguir -- eu não consigo -- mas acredito que, se calhar, devemos tentar. Pessoas doentes, taradas, se calhar são pessoas perdidas de si próprias, pessoas que a meio da noite se arrependem da perversão e do sofrimento que causam às crianças que violam. Talvez mereçam o esforço da nossa compreensão.

Mas já não me parece que mereçam perdão, sequer compreensão, as hierarquias da igreja, a estrutura da organização, os supremos zeladores, os que sabem o que se passa e encobrem, desculpam, inventam pretextos.

Não, não me parece que mereçam perdão os que, sabendo dos abusos, se paramentam com vestes bordadas e debruadas a ouro e bem moldadas mitras, que frequentam as atapetadas e luxuosamente decoradas salas em que se fala baixo e se transaccionam dádivas e perdões, os que fazem prelecções transbordantes de apelos à verdade e à bondade. Não, esses não podem merecer perdão, sequer compreensão.

Há demasiada cumplicidade para com tantos crimes. Há demasiado encobrimento e demasiada tolerância para com tantos criminosos. Há demasiado silêncio em relação aos que viram as suas almas e os seus corpos para sempre dilacerados. Há demasiados criminosos no seio da Santa Madre Igreja.

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As duas pinturas são da autoria de Fra Angelico ao som de Salve Regina

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Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Justiça. Paz.

sexta-feira, julho 29, 2022

A praia é para todos

 


Os estores desta casa são eléctricos e, segundo fiquei a saber, são de elevada segurança. São de alumínio duplo e correm numa calha embutida. Segundo me têm disto os especialistas, não há ladrão que consiga levantá-los ou cortá-los.

Dito assim parecem boas notícias, não é? 

O pior é quando se avariam. Não há processo manual para os levantar ou baixar. Para serem limpos tem que se ter cuidado para não desalinhar as lâminas. São tão pesados que qualquer desalinhamento compromete o seu bom funcionamento e, se ficam desalinhados, não há outra forma de remediar a situação, senão chamar os técnicos. Uma impotência. Bem procurava, ao princípio, alguma manivelita ou fitarola que me pudesse salvar. Nada. 

E os técnicos, quando chegam, protestam porque dizem que, da maneira como foram feitos, eles  mal têm margem para trabalhar. Dizem que os estores costumam correr por fora e não por dentro. Contudo, quando me queixo das constantes maçadas e do dinheiro que gastamos a repará-los e digo que o melhor é pôr estores novos, mais simples, mais leves, aí insurgem-se, dizem-me que nem pense nisso, que já não se fazem estores de tão boa qualidade. 

Desta vez foi o estore grande da cozinha, um estore alto e largo. Começou por dar estalos, depois saltos. Depois não queria subir ou descer. Fomos forçando, julgando que a coisa iria ao sítio por si. Mas está bem, está. Chegou a um ponto em que já não tugia nem mugia.

O veredicto foi que tanto forçámos que já se tinham entortado cinco lâminas. No primeiro dia não conseguiram fazer o trabalho. Ficou corrido durante umas duas semanas, escuridão absoluta, sempre de luz acesa. E hoje teve que vir um terceiro elemento para conseguirem fazer a manobra de levantar o estore e encaixar as lâminas novas. Dizem que o peso era demais para dois conseguirem aguentar o bicho. Não sei, já não digo nada.

O que sei é que ao fim da tarde foi um ver se te avias na cozinha. A fera a ladrar possessa do lado de lá do portão do pátio da cozinha e, na cozinha, um chinfrim, uma azáfama. Às tantas zaragateavam uns com os outros, davam-se instruções uns aos outros. Levanta. Aguenta. Arreia um bocado. Pára. Avança! Um desatino. Ferramentas e caixas e tralha espalhadas pelas bancadas da cozinha, o chão pejado de tralha.

Por fim já só queria que se fossem embora.

Quando finalmente acertámos as contas e eu me queixei que era o preço de uma nova e de eles me terem dito que nem pense nisso pois uma nova destas deve custar cinco vezes esse valor, foi fazer limpeza à cozinha. E já passava das oito e nem jantar feito nem vontade de puxar pela cabeça para ver  que fazer. 

O meu marido disse: vamos passear à beira da praia e compramos qualquer coisa por lá. E fomos. Fui como estava, com uns calções soltos, acima do joelho e uma blusinha sem mangas com decote em bico à frente e atrás. O meu marido disse que era melhor levar outra coisa pois estava a esfriar. Peguei no meu poncho de crochet em abertos, todo em abertos, feito numa linha crua, um amparo que é psicológico e não de agasalho. 

Lá chegados, rapei um frio dos antigos. A aragem estava a dar ares da sua valentia. Não me queixei para não ouvir observações mais do que óbvias.

Felizmente, o mar estava muito lindo e o sol fazia a sua escolha de sempre. Os amores eternos e incontornáveis são assim, um mergulhando no outro sem se saber quem mergulha em quem. 

O pior mesmo eram as poses absurdas, as selfies, as posições ridículas a que muita gente se entrega. A praia parece que atrai os que se acham fantásticos.

Num grupinho destacava-se uma mulher saída de um quadro de Botero. Via-se que era de genética bem tisnada mas apresentava-se muito loura. Usava um vestido vermelho, de cavas, justíssimo, com um cintinho preto na cintura e a saia um bom bocado acima dos joelhos. Como era de carnadura exuberante, a perna que ela alçava para lhe salientar o rabo a la Georgina, mostrava aquela manta de gordura que algumas mulheres têm por cima dos joelhos. Levantava o cabelo com a mão e o braço mostrava também que a gordura estava para além da conta. Mas isto da 'conta' é relativo pois ela estava feliz da vida. Um homem mais velho, metade dela em peso e altura, não fazia outra coisa que não fotografá-la ou a ela ou a ela e às amigas. Mas era ela que o instruía: baixa-te, apanha-me de lado, apanha o mar, vou-me virar e tu aproximas-te. O pobre homem obedecia sem um pio. Toda uma coreografia. 

Por mim ficava ali parada a ver. Acho estas cenas deliciosas. Depois chegou uma outra com uma caixa branca e deu-lhe. Ela rejubilava. O meu marido disse: faz anos. Depois entraram num restaurante e ela pegou no telemóvel e filmou o restaurante, filmou-se a ela, filmou o sunset. Coisa mais estranha. E eu interroguei-me uma vez mais: mas para que é que estas pessoas fazem isto? Quem é que tem interesse em vê-la em mil poses ou no restaurante?

Pergunta retórica pois a resposta é óbvia: pessoas iguais a ela. 

As pessoas, podendo exibir-se em poses cinéfilas, em ambientes cinéfilos e com sorrisos cinéfilos sentem-se umas divas, sentem-se especiais, imaginam-se especiais, com muitos seguidores, com muita gente a querer vê-las belas, formosas, rodeadas de amigos e frequentando lugares paradisíacos. Alimentam uma ilusão.

Mas, ao mesmo tempo, pensei que ainda bem que aquela mulher era descomplexada pois notoriamente sentia-se bela, desejável.

Mais à frente passou um casal de mulheres de braço dado, muito chegadas, um casal in love. E eu pensei que ainda bem que as pessoas que estão apaixonadas por outras do mesmo sexo já não têm que se esconder ou sentir vergonha. 

Enquanto isso, passou por nós um homem muito magro, de calções e tshirt de alças, de rabo cavalo grisalho, de bicicleta, ondulando como se surfasse.

A diversidade a que por ali se assiste é uma coisa extraordinária e eu, se não fosse dar-se o caso de querer esticar as pernas e dar uma caminhadela, deixava-me era ficar sentada a curtir os visuais e os moods de quem passa. 

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A Ministra da Igualdade em Espanha lançou uma campanha inclusiva que não está a passar despercebida. Seja qual for a estatura, a cor da pele ou o que for, a praia e o sol são para todos. O cartaz lá em cima dá o mote à campanha "El verano también es nuestro". 

As pinturas são, como é bom de ver, de Botero e vêm na companhia de Mika que interpreta Big Girl

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Desejo-vos um dia bom

Saúde. Boa sorte. Paz.

quinta-feira, julho 28, 2022

Coisas que não fazem grande sentido

 



Tenho a dizer que guardo com cuidado e carinho memórias de coisas parvas. E tenho muitas. E só espero nunca me esquecer delas.

Por exemplo, aquela vez, em longínquos tempos, tão longínquos que não havia ainda smartphones, em que um casal estrangeiro, na fila para o self do CAM, na Gulbenkian, com um pequeno dicionário, daqueles de bolso, olhou incrédulo para o que lá estava escrito e, depois de se interrogarem mutuamente e conferido que a palavra era aquela, nos perguntaram se falávamos inglês. Dissemos que sim. Então, com um ar entre o estupefacto e o incomodado, perguntaram o que significava aquele símbolo de um cão com um sinal de proibido em cima e com a legenda 'Não traga cães'. E mostraram-nos o dicionário aberto em tragar = comer.

Pois.

E, a propósito da Gulbenkian, aquela vez em que eu e a minha filha resolvemos ir à feira dos livros na Gulbenkian. Nem o meu marido nem o meu genro quiseram ir. Ficaram em casa, certamente com o pretexto de ficarem a tomar conta dos miúdos. Não fomos cedo, os dias eram pequenos e nem nos lembrámos de conferir horários. O carro tinha ficado do lado da entrada para o CAM e a feira era no edifício da Fundação, ou seja, do lado contrário. Melhor, da maneira que passeávamos por dentro do parque, patinhos e tal. Lá fomos, nas calminhas, conversando e rindo. Escolhemos livros para nós e para oferecermos. E tudo na boa, até ao último minuto. Quando saímos era de noite. No problem. Nem pensámos. Conhecemos o parque como a palma das nossas mãos, eu desde que comecei a ir namorar para lá, aos dezassete, ela desde que nasceu. Lá fomos, às escuras. Não sei porquê, não sei se é sempre assim ou se foi naquele dia. Nem uma luz. Não foi há tanto tempo assim mas foi numa altura em que os telemóveis não tinham a função de lanterna. As duas, carregadas de livros, às escuras, e aí vão elas. O percurso era simples, era contornar o edifício pelo lado do museu, depois, lá em baixo, a biblioteca, depois ir por ali até chegar ao lago dos patinhos lá em cima ao pé do CAM e depois sair pelo portão. 

Mas está bem, está. Um parque cheio de árvores à noite é do caraças. Se calhar o facto de não termos qualquer sentido de orientação também não ajudou. Passado um bocado já estávamos perdidas. Pensávamos que estávamos onde queríamos e tínhamo-nos era enfiado nas traseiras do CAM, uma zona desconhecida, sem qualquer portão. O tempo passando e nós as duas ali no meio do matagal, perdidonas, sem noção. Mas não desistimos. Tanto persistimos que, não sei quanto tempo depois, chegámos. Portões fechados. Mas já estávamos à beira da rua. Portanto, problema resolvido. Aí estão elas, à noite, os carros a passarem na rua e nós a treparmos o muro. Ela nas calmas, eu um pouco pior. Nós e os livros. Escuso de dizer que já nos ríamos, perdidas de riso. Já me dava era vontade de fazer chichi, tanta a risota. Até que nos vimos em cima do muro que ali é altinho. As pessoas a olharem, dentro dos carros, e nós s duas em pé em cima do muro. Houve uns que apitaram, uns que apontaram para o lado, devia ser para usarmos antes o portão, provavelmente não sabendo que estavam fechados. Só que a seguir veio a parte pior. Saltar. E eu que sofro de vertigens... Olhava para o chão, lá em baixo, tão lá em baixo, e eu tão cá em cima. A minha filha saltou. E de lá de baixo incitava-me: 'Salta! Salta!'. E eu, perdida de riso, uma maluca em cima do muro da Gulbenkian, à noite, sem ser capaz de saltar. Já me imaginava a passar a noite ali, feita um gato. Mas lá ganhei coragem e, felizmente, não parti nem pé nem perna. Chegámos a casa dela às tantas, com eles já preocupados. E ainda hoje me rio só de pensar na figura que fizemos. Eu, em especial, que figurinha.


Também me lembro de uma outra vez, numa outra encarnação. Encontro geral incluindo todos os gestores comerciais vindos de todo o país, ilhas incluídas, creio que até de Espanha tinham vindo. Num hotel grande ali para os lados de entre o Estoril e Cascais. Muito movimento, muita gente. Uma grande confusão de gente a cumprimentar-se, gente feliz, abraços, graças. Fiz uma apresentação e tinha pessoas da minha equipa a apresentar comigo. Depois, muitas questões, o tema tinha despertado muita atenção. E eu com vontade de fazer chichi. Horas sem conseguir escapar-me para ir à casa de banho. Até que, finalmente, lá se deram por satisfeitos. Coffee break. Aleluia. Sem fazer a mínima ideia onde eram as casas de banho. E um a vir dar abraço, outro a dar um beijinho, 'há quanto tempo,,', e eu a espreitar a ver se via o símbolo das casas de banho. Convém ter em atenção que sou míope e que, salvo obrigatoriedades (como conduzir, por exemplo), não uso óculos. 

Portanto, sem reconhecer ninguém ao longe e sem distinguir pormenores, entre cumprimentos, lá fui andando enquanto, pelo canto do olho, ia tentando descobrir. Até que descobri. Uffff... Aleluia, verdadeiramente aleluia. E nisto entra para lá o nosso RP, pessoa divertidíssima, um charme. E eu, aflita mas tentando disfarçar: 'Também é para mulheres?'. E ele, muito sério (mas, a posteriori, a ironia facilmente reconhecível): 'É sim, Sô Tôra... Mas eu acho melhor não fazer aqui'. 

E eu sem perceber, à porta: 'Ah não...? Então...?'. E ele, como se fosse coisa normal, 'É que isto é o elevador...'


E agora já é tarde mas outro dia conto aquela outra vez, de que aqui já falei, também numa outra encarnação, em que roubei um carro, o que, mais tarde, levou o presidente a dizer: 'O mau nome que isto dá à empresa... Se isto se sabe o que é que vão dizer...? Que se os directores roubam carros... o que não farão os administradores...?'

Ou quando acordei a meio da noite e fui à casa de banho, assustando o meu filho que se levantou e que, vendo a pairar no escuro uma tshirt branca (nesse dia devo ter tido frio de noite), julgou que era uma assombração e deu um grito e um salto no ar à la Karate Kid deixando-me a mim completamente aterrada, julgando que o rapaz estava possuído.


Ou quando, in heaven, andando a passear sozinha no campo, comecei a ouvir uns estalidos atrás dos arbustos e, assustada, comecei a acelerar o passo e os estalidos sempre atrás e eu, já assustada, a correr, achando que estava a ser perseguida. E então vejo a minha filha lá em cima, muito espantada, e eu queria correr e falar mas, tão assustada estava, mal tinha força para correr e para falar. Queria precavê-la, queria avisá-la que fugisse. Sei lá. E ela sem perceber nada. 

Lá consegui balbuciar: 'Um cavalo...'.  E ela, admiradíssima: 'Um cavalo...?'. Claro que não percebia. Depois, então, disse o nome do irmão. Amedrontada, olhei para trás. O meu filho. Também sem perceber nada. 

Não sei de que é que estava à espera. Um bandido a cavalo, acho. Não sei o que é que os estalidos feitos por um rapazito pequeno com a língua poderiam confundir-se com um patife a cavalo.

A minha filha diverte-se a imitar-me nesse momento altamente absurdo. E eu farto-me de rir com estas maluquices que se passam na minha vida.


E, por hoje, é isto.


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Para abrilhantar o post fui buscar Keith Apicary que Surprises America With Unforgettable Dance Moves - AGT 2021

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Desejo-vos um dia bom
Saúde. Bom humor. Paz.

quarta-feira, julho 27, 2022

Merceeira...? Cabeleireira...? Ou nem por isso...?

[Post com dicas relevantes]

 



Chego ao verão a precisar de intervalar e, se calhar, também deveria intervalar aqui. Mas já me faz parte. Antes de me deitar, chego aqui e escrevo. Passa da meia noite e sobre o que me ocorre não quero falar e o que sobra é tema já falado.

Por isso vou-me deixar ir indo, escrevendo sem pensar, sem saber ao que vou. Tenham, V., por favor, alguma indulgência.

Recordo a primeira vocação. Ser merceeira. Ia com a minha mãe fazer compras. Gostava de quando ela comprava azeite. Havia um reservatório cilíndrico, de vidro, com uma alavanca. Pelo menos é assim que recordo. O azeite subia, para ser medido, e depois descia para a garrafa que a minha mãe levava. Também gostava do grão ou feijão que estava numas cubas de madeira. Havia umas medidas, também de madeira, com umas pegas. Depois era despejado para uns cartuchos de papel. Tudo aquilo era sistemático, preciso. E havia a caixa registadora, a gavetinha que se abria, o troco. Um mundo que me parecia recheado de magia. Do lado de fora do balcão de madeira, observava tudo com interesse e uma curiosidade que não se saciava.

Quando comecei a ser mais crescida, ia eu fazer os mandados. Adorava. 

Gostava de poder lá ficar a trabalhar mas a minha mãe nunca levou a sério.

Em casa, nas escadas, fazia uma lojinha em que vendia pedrinhas, ervinhas. Tinha uma balança pequenina. E com um papel cortadinho em pequenos bocadinhos fazia o dinheiro. A minha prima, mais nova que eu uns quatro ou cinco anos, era a minha cliente. Era ainda tão pequenina que alinhava em tudo. Ela preferia brincar aos médicos, fazer-me curativos. Eu não me importava de ser a doente. Afinal andava com as pernas sempre esfoladas. Ela veio a seguir a sua vocação de sempre. Eu não cheguei a ser merceeira.

A seguir a minha vocação mudou. 

Passei a querer ser cabeleireira. Penteava as bonecas, penteava a minha prima mas, sobretudo, penteava a minha mãe. Fazia verdadeiras mises. Punha-lhe rolos, punha-lhe laca, secava-lhe o cabelo e fazia elevações artísticas. Gostava mesmo. Ela confiava na minha perícia.

Embora gostasse de me pôr nas mãos das cabeleireiras (porque gosto que me mexam na cabeça), a verdade é que nunca gostei do resultado. Não gosto de me ver muito penteada. A primeira coisa que sempre faço quando de lá saio é enfiar os dedos no cabelo, abanar a cabeça, despenteá-lo. 

Agora há mais de dois anos que não vou. Mas não faz mal. Também nunca lá fui muito. Ia mais para fazer um corte mais acertado, para aí umas duas vezes por ano.

Habitualmente corto o cabelo a mim mesma. E seco o cabelo ao ar, sem o pentear. Fica como ficar. No verão apanho-o mais pois faz-me calor. No inverno uso-o geralmente caído. 

Dantes, quando era mais nova, por vezes fazia-me penteados artísticos mas, ao olhar-me ao espelho, achava que era coisa para mulheres mais velhas. Desfazia. Outras vezes fazia penteados meio soltos que é como me sinto melhor mas na altura não era habitual andar-se com ar despenteado. 

Agora só me ocorre fazer coisas meio loucas mas, claro, estando a trabalhar, não quero passar por maluca. Cabelo louro platinado é uma ideia antiga. Ou cor-de-rosa clarinho. Ou o azul como o que a minha menina mais linda prefere. Ou alfazema raiado de rosa e de turquesa. Verde pistachio todo acho que não, acho que seria muito óbvio. Mas parte em verde dourado, parte em louro veneziano, parte em louro clarinho, isso já me parece que talvez fique engraçado. Penso que um dia que deixe de trabalhar talvez me arrisque. Não sei onde se vendem tintas assim destas cores mas é uma questão de pesquisar. Depois vou experimentando.

Quando os meus filhos eram pequenos cortava-lhes eu o cabelo. Adorava. Mas era um desafio... Ela tinha sete camadas de cabelo, nunca mais acabava. Ele tinha cabelo forte e cada tesourada incerta evidenciava o passo em falso.

Depois entraram naquela idade em que receavam que a coisa não ficasse muito bem e faziam questão de recorrer a profissionais. 

Ao meu marido sempre fui eu que cortei o cabelo. 

Agora consolo-me com a minha menininha que também gosta de ser penteada e que é descontraída, não tem cá receios das opiniões dos outros. Posso fazer-lhe os penteados mais insólitos que por ela está sempre bem.

E agora que estou neste estado de espírito, a pensar que preciso de férias, a pensar que seria bom não ter qualquer compromisso no prazo de duas ou três semanas, chego aqui à noite e estou preguiçosa, meio inerte. Para falar verdade, só me dá para seguir acefalamente o que o algoritmo do Youtube tem para me mostrar. Ainda estive tentada a falar sobre reflorestações ou arquitectura biofilíca que estive a ver com interesse. Mas estou sem pedalada nos dedos para me atirar a tal. Só coisas simples. Mas simples-simples, planas (isto para não dizer rasteirinhas). 

Ontem bolos. Hoje penteados. Não há dúvida que o algoritmo sabe compreender o meu estado de espírito e a minha energia. Ou seja, agarra-me, o patife.


E aqui ficam, pois, algumas sugestões 


Até para quem tem pouco cabelo


Desejo-vos uma boa quarta-feira
Saúde. Sorrisos. Paz.

terça-feira, julho 26, 2022

Obra de arte comestível, coisa para verdadeiro connaisseur

 



Gosto de cozinhar, já o disse. Mas não gosto de fazer doces. A questão é que sou indisciplinada para além da conta e, por isso, tenho dificuldade em seguir receitas e, na doçaria, ou já se é um doceiro experiente ou não dá para arriscar. O processo em si é daquelas coisas que ou se deesenrola como é suposto ou azarinho, não se consegue rectificar a meio. Ou sai bem ou sai mal. 

Dantes eu arriscava. Mas houve umas duas ou três vezes em que a coisa correu mal e desmotivei-me. Até hoje sou alvo de chacota. Coisa traumatizante demais.

Numa das vezes, não me lembro que doce era, quando se estava a servir, detectou-se que uma colherzinha usada no processo lá tinha ficado dentro. Ao servir e dar com a colher foi o fim da picada. Risota geral que perdurará até ao fim dos tempos.

Outra que não cai no esquecimento foi um arroz doce que, no fim, em vez de estar em estado quase sólido, empapadinho e gostoso, bom para ser delicadamente polvilhado com canela, se apresentou líquido, um ofensivo leite com grãos de arroz a boiar.  Um tacho com um caldo humilhante. Gargalhada geral. 

Mais tarde, uma amiga, engenheira química de formação e estudiosa da química aplicada à culinária, explicou-me: como sempre, não segui a receita, ou seja não juntei o açúcar na devida altura, juntei-o antes de tempo fazendo com que o arroz ganhasse uma crosta impermeável, impedindo a absorção do leite. Mas só soube isto anos depois pelo que, na altura, o fenómeno pareceu injustificável, aselhice de alto calibre. Foi tão traumatizante que não ousei reincidir. 

Outra vez fiz um doce que ainda hoje recordo com saudade. Estava mesmo bom. Fundi chocolate, juntei uma raspinha de casca de laranja e misturei com frutos secos (alperce, ameixa, passas, cajus) e cristalizados (cascas de laranja, ananás, pera). Não me lembro se levava mais alguma coisa. Coloquei num tabuleiro e levei ao frigorífico para solidificar. Depois cortei em cubos. Como gosto de chocolate com um saborzinho a laranja e de frutos secos e cristalizados, achei delicioso. Mas só eu achei. O meu marido, na altura, mal tocava em doces. Agora, com o passar dos anos, está a ficar guloso. Mas na altura não lhes tocava. Os meus filhos, por seu lado, odiavam frutos secos e cristalizados. Nem quiseram provar. Só de olhar, já sentiam repulsa. Acabei a comer sozinha um doce que era uma delícia. Mas delícia que não é partilhada não é alegria, é frustração.

Entretanto, ganhei aquela consciência de que é melhor cortar nos açúcares e, portanto, para me poupar a potenciais novos desaires e para não contribuir com açúcares escusados, no que se refere a fazer bolos ou outras sobremesas, estou fora. Aviso logo: ou compro bolos e/ou gelados ou façam o favor de trazer.

Mas, dito isto, reconhecendo as minhas lacunas técnicas e a minha dificuldade em ser seguidista em relação a receitas, se não pratico a verdade é que frequento vídeos com receitas simples, doces que se fazem na frigideira, no fogão, tal como me delicio a ver vídeos com doçaria artística. Vejo e fico com vontade de superar a inibição castradora. Mas sei que, mal me pusesse em acção, haveria de inverter a ordem dos factores ou arriscaria em ingredientes não previstos e, portanto, as probabilidades de, uma vez mais, me sujeitar à troça colectiva seriam mais que muitas.

Mas quem sabe um dia não me supero e não arrisco um doce com pouco açúcar e que seja uma coisa fantástica de bom sabor, uma mistura improvável, uma coisa arrojada, incapaz de a gente parar de comer. Ou de olhar. Bolo que parece peça de bordado, peça de olaria, obra de arte.

Os bolos que usei para ilustrar as palavras gulosas são da autoria de Leslie Vigil. Parecem bordados nossos, daqueles dos lencinhos de namorados (creio que de Ponte de Lima), coisa de uma perfeição e graça que dá gosto olhar. Pena deve ser cortar e comer.

E vejam, por favor, este vídeo: doces artísticos, lindos, uma loucura de criatividade. Vários doceiros, vários artistas. 

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Desejo-vos um bom dia

Saúde. Doçura. Paz.

segunda-feira, julho 25, 2022

Livros, músicas, poemas, pinturas, amores... pode haver uma preferência acima de todas as outras?

 


Estou numa fase da minha vida em que leio pouco. O tempo anda-me tão curto que não me reserva espaço para a leitura. Hoje de tarde, mal acabei de almoçar deu-me uma pancada de sono. Deitei-me no sofá e adormeci. Quando acordei, peguei num livro e fui para o jardim. Mas apeteceu-me estar na conversa em vez de estar isolada com o livro.

Contudo, o mundo dos livros continua a ser um mundo que me atrai. O mundo das palavras. Ler o que os outros escrevem. Encontrar a diferença nas palavras dos outros. Não é apenas a história, é também a maneira de cerzir as palavras. Não procuro coisas espectaculares, não procuro palavras desconhecidas, descrições surpreendentes. Não sei explicar bem o que procuro. Talvez a sinceridade, talvez a espontaneidade, a franqueza visceral. Talvez o acto do desnudamento com elegância, talvez a atenção aos pormenores, talvez o olhar inteligente sobre as coisas, sobre os outros. Talvez a forma primitiva e única de olhar para dentro de si próprio e para dentro dos outros e das coisas.

Rejeito em absoluto a banalidade. Não percebo o que leva alguém a escrever banalidades e muito menos percebo quem as consome.

E, no entanto, quantas vezes aqui escrevo eu banalidades...? Tantas, tantas...

Quando aqui escrevo, raramente sei sobre o que vou escrever. Escrevo o que, no momento de começar a escrever me ocorre. Pode ter a ver com o que acabei de ler ou de ouvir ou posso não ter nada para dizer e, por isso, escrevo sobre o que se passou nesse dia ou sobre alguma coisa que me ocorre. Outras vezes tenho vontade de escrever sobre algumas coisas mas prefiro não, deixo-as para mais tarde ou para outro contexto. Espanta-me que tenha sempre tantas visualizações, em média mais de duas mil e quinhentas por dia. Recebo mails de pessoas que se sentem próximas e querem conversar comigo mas, logicamente, desconheço a maioria dos que me leem. Acredito que, por vezes, os desaponto. Talvez, por vezes, pensem que, afinal, não me conhecem. Outras, se calhar, acreditam que me conhecem bem de mais.

E, no entanto, estou convencida que ninguém me conhece completamente. Há coisas que nunca verbalizo e que, estou em crer, fazem tanto parte da minha vida quanto as que exponho. Nem sei se saberia escrever sobre aspectos tão pessoais. E, no entanto, gosto de ler o que as pessoas são por dentro, como pensam, como é o seu passado, como interpretam a vida. Gosto de estar por dentro da sua intimidade. Posso não me sentir cúmplice mas, mesmo com algum distanciamento, gosto de ler as descrições das vivências, das dúvidas, dos desequilíbrios, das vulnerabilidades, das alegrias. Claro que se, por detrás (ou por dentro) das palavras, estiver alguém que tem um percurso cheio de momentos interessantes que possam ser partilhados, ou em estado puro ou reprocessados, tanto melhor.

Como já referi algumas vezes, alimento a secreta esperança de ainda vir a ter tempo, espaço e vontade de escrever mais a sério. Gosto muito de escrever. Mas gostava de ter tempo para reler, para burilar a escrita, para encontrar as ligações musicais que tornam a escrita mais próxima das emoções, ou para descer mais fundo na procura da verdade intrínseca. Gostava de ser capaz de escrever bem, pausadamente, pensadamente, não apenas à pressa, descuidadamente, superficialmente. Gostava de ser capaz de bordar com palavras e que o avesso ficasse tão perfeito quanto o direito. Gostava de conseguir encontrar o gume sobre o qual a escrita se equilibraria.

Talvez um dia. Talvez. 

Quando penso nos livros que mais me marcaram hesito. Um livro é lido diferentemente por quem o lê e nós próprios vamos mudando ao longo da nossa existência. O livro e a sua circunstância. 

Quando li A Selva fiquei fascinada. Teria talvez dezoito anos e o meu namorado da altura ofereceu-mo. Mas já antes tinha ficado fascinada com Liza, a pecadora. Aí teria uns quinze e trouxe-o da biblioteca do liceu. Ou com As sete partidas do mundo. Teria uns catorze e trouxe-o de uma amiga e vizinha cujo marido era médico e, na altura, estava em África. Ou, depois disso, com A Bastarda. Ou com A virgem e o cigano. Ou com Por quem os sinos dobram. Ou com O Arco do Triunfo. Ou com A montanha mágica. Ou com A insustentável leveza do ser. Ou com o Amor nos tempos de Cólera. Ou com o Ensaio sobre a Cegueira. Ou com Carne de cão. Ou com o Stoner. Ou com As oito montanhas

Com tantos fiquei fascinada, tantos, tantos. 

Se os relesse agora sentiria o mesmo? Ou o que na altura me pareceu novo, único, agora saber-me-ia a déjà-vu? Não sei, não arrisco a desilusão, prefiro mantê-los intocáveis na minha memória. Não os releio. 

E sou incapaz de dizer qual prefiro. Não coloco livros num pódio. Tal como com todos os amores. Aquilo que amamos e respeitamos não é sujeito a comparações.

Mas há quem tenha feito uma lista dos livros preferidos em todo o mundo. Não sei se resulta de uma pesquisa rigorosa mas, ainda assim, estive a espreitar.

Deixo o link, caso queiram verificar: Os Livros Favoritos do Mundo — lista completa em português


Supostamente em Portugal é o Memorial do Convento. 

Também não sei se o livro preferido de um país é sinónimo de o melhor livro publicado nesse país ou se o melhor livro escrito na língua desse país. Seja o que for. Nestas coisas, as estatísticas são o que são: uma abstração.

Ao lembrar-me de livros, reparo agora que falei apenas de livros em prosa. E, no entanto, sou também muito sensível a livros de poesia. Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Teresa Horta, Herberto Hélder, António Ramos Rosa, Pedro Támen. E tantos, tantos outros. E só estou a falar nos portugueses de Portugal.

E, no entanto, ao pensar em colocar aqui um poema lido é, uma vez mais, num poema que não é português e que nem sei dizer porque gosto tanto dele. Mas gosto. Já aqui o partilhei muitas vezes e frequentemente ando com ele a bailar-me na mente. Não sei porquê. Tal como ao escolher uma música para aqui se identificar comigo de uma forma muito próxima escolho uma vez mais a mesma que já aqui tantas vezes esteve. Ou ao escolher um pintor escolho aquele cuja obra é o mais despretensiosa possível, a simplicidade mais extrema, e que, apesar disso (ou talvez por isso), me toca quase comoventemente. 

É assim. São coisas que não se explicam. 




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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Amor. Paz.

domingo, julho 24, 2022

Dia de festa

 

As opiniões dividem-se: creio que é quase unânime que hoje festejámos com o primeiro leão mas também já vi dizer que são os últimos caranguejos. Mas inclino-me fortemente para que seja leão. A personalidade parece-me claramente de leão. E se a tem já a querer vincar-se... Assertivo, persistente, focado, entusiasmado, por vezes insistente até à centésima casa, com um sentido de humor fantástico. 

(E com um apetite que não dá tréguas).



Foi o primeiro menino, aquele que nasceu ontem deixando-me em lágrimas de tanta emoção, aquele que me baptizou como Tá, aquele a quem primeiro estamos a ver a dar aquele salto mágico em que as crianças começam a deixar a infância para trás e, de repente, aparecem perante nós já a parecerem gente grande. É que, afinal, imagine-se, já fez catorze anos. Não dá para acreditar. Já está grande, maior que eu, claro, também já a ultrapassar a mãe, daqui a nada da altura do pai. E já com voz grossa. E já a encantar-se, de paixões intensas e súbitas, com meninas que conhece na praia. 

Já a combinar encontrar-se com um amigo que conheceu no hotel, ambos malucos por futebol, cheios de programas -- jogos de futebol, conversas sobre futebol, mergulho e polo quase aquático na piscina, depois a conhecerem as meninas na praia, a trocarem instagrams. Todo um programa. Até há pouco era uma criança e, de repente, tem modos de rapaz e porta-se como um rapaz. 

O irmão, de quem até há pouco não fazia grande diferença, está agora bem mais baixo, ainda uma criança. 

Mas, portanto, foi mais uma tarde de alegria e animação. 

Houve quem se posicionasse na bateria (e até eu, confesso, me pus a tocar, uma coisa boa para deitar cá para fora não apenas calorias acumuladas como raivas não consumadas). E houve quem se ficasse pela guitarra e quem se atirasse ao piano. Afinal parece que quase toda a gente sabe tocar qualquer coisa ao piano menos eu. Ainda me lembro do suplício de quando, em miúda, andei a aprender. Não aprendi nada. Nada. Zero. Tenho pena mas é daquelas coisas para as quais a minha intuição e habilidade falham em toda a linha.

Até o mais novo dança com os seus dedinhos pequeninos sobre o teclado. Um ternurinha. Aplicado, explorando os sons. Foi ele que acompanhou ao piano (à sua maneira, claro), o momento dos Parabéns a Você.

Mas quem, uma vez mais, nos surpreendeu, mas surpresa a ponto de nos deixar de boca aberta, foi o primo do meio.  Não estarei a ser rigorosa nesta designação pois o menino dos anos tem doze primos e este de que falo não se situa a meio da escala. Refiro-me ao do meio do meu filho, que tem três filhos, o menino que, a par de outros talentos, tem um instinto natural para a música. Canta de improviso, toca, dança. As letras rimam, fazem sentido. E canta afinado e com um vozeirão. E expressivo. Quer ele quer o primo que o acompanhou são uns sentimentais, fazem expressões de drama, fecham os olhos com sofrimento. Ele ao piano e o primo à guitarra, só visto. 

Eu e a minha filha, filmámo-los, ambas estupefactas (tal como estupefactos estavam todos os que assistiam). Sempre o soubemos com veia artística mas vem ganhando novas valências e a voz está um espanto.

Ao ver os vídeos farto-me de rir com o sentido de amor e a graça deles (mesmo quando as canções que ele inventa são de fazer chorar as pedras da calçada). Maltinha mais danada para a brincadeira, mais animada.

Como bolo dos anos, o jovem aniversariante pediu para não ser um bolo artístico ou avant-garde: gostava de ter um bolo de anos tradicional, por dentro pão-de-ló e doce de ovo e, por cima, cobertura de açúcar. Então, saiu à cena um bolo do Sporting, coisa que quase causou algum desconforto ao lado benfiquista da família. 


No fim, todos os que se aventuraram a comer o revestimento sportinguista apresentavam-se com a língua devidamente tingida de verde. 

Mesmo os benfiquistas a tinham verde!


Como não comi a cobertura, apesar do meu coração se inclinar para os verdes de Portugal, a minha língua não ficou relvada. 

Quanto à pequena fera cabeluda, deu uma certa luta. Primeiro, o animal está cansado, esta ideia de o pormos a fazer férias connosco não resulta. Vemos pessoas com cãezinhos pequenos, alguns ao colo, sossegadinhos, caladinhos, pequenos e amorosos peluches. Ora este é um brutamontes bom para guardar rebanhos e afugentar riscos verdadeiros ou potenciais. Não é, nem nunca será, um lulu.

Claro que, de tanto ladrar, de tanto saltar, de tanto querer correr, de tanto ser contrariado, de tanto calor, de tanto andar na areia ou a passear, já só quer estar à sombra a descansar. Mas, coitado, não tem conseguido. 

Claro que estar rodeado por tanta gente é para ele uma festa e, ao mesmo tempo, um desafio. 

Por exemplo, hoje, na festa de anos, a sua curiosidade natural leva-o a querer mexer em tudo... mas ninguém quer que ele mexa em nada. 

Toda a gente se acerca da mesa e ele também quer ver o que lá há. E toda a gente pode servir-se e só ele é admoestado. Parece que só está bem quando fica sentado a olhar, infeliz, sem poder tocar.

Mas houve uma menina que deixou um pratinho esquecido com côdeas de piza... e foi o que ele quis. Não me perguntem como, mas mesmo com os olhos cobertos por uma espessa franja cabeluda e no meio da maior confusão, ele descobre sempre, de imediato, o que pode abaratar. Chamou-lhes um figo.

Agora vamos ter uma semana de tréguas mas logo a seguir os leões continuam a atacar e em grande força.

(Escuso de dizer que, tal como acontece com o urso cabeludo, também eu estou capaz é de me deitar no chão, à fresca, sem me mexer.)

Tirando isso, tá-se. A vida passa a correr e, por isso, temos que saber aproveitá-la e que gostar de agarrá-la bem agarrada para a vivermos em estado de encantamento. (Será que era a isto que o Valtinho se referia quando dizia que é urgente viver encantado? Bolas. Vou já rever a frase.). 

Temos que saber viver a vida e gostar de agarrá-la bem agarrada para a vivermos numa boa. E longa vida ao meu menino crescido e a todos os meus meninos e a todos os meninos deste mundo. 

E, a propósito, vai daqui um beijinho especial para a linda Maria cuja fotografia a Lurdes me enviou.

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Desejo-vos um belo dia de domingo

Saúde. Boa disposição. Paz