sábado, julho 30, 2022

A Igreja Católica e os abusos sexuais contra crianças

 

Embora nada disto seja aqui novidade, faço questão. 
À laia de disclaimer poderia dizer que me batizaram e me levaram a fazer a Primeira Comunhão e a Comunhão Solene. Nunca senti qualquer tipo de ligação ao que tentaram ensinar-me mas a verdade é que andei por lá. 
Também poderia dizer que, quando visito cidades, gosto de entrar nas igrejas e me sinto bem naqueles espaços amplos, frescos, em que a luz é coada e em que há figuras com ar piedoso que parecem acolher-nos. Poderia também dizer que, in heaven, não descansei enquanto não tive a minha própria capela, um pequeno espaço despojado destinado ao recolhimento. Nunca soube explicar essa minha vontade. E o pessoal deixou de me perguntar embora nunca ninguém tivesse percebido. 
Mas terei também que dizer que, se sinto que há qualquer coisa de soberanamente incompreensível que regula a existência da vida e dos bem sucedidos acasos que são inexplicáveis milagres e que me sinto amparada nos momentos de maior vulnerabilidade, a verdade é que nada disso atribuo ao que se prega nas catequeses, nos grupos de reflexão, nas missas. E, talvez por isso, não batizei os meus filhos e sempre tentei que os princípios castradores e hipócritas que têm regido o catolicismo nunca influenciassem o seu são desenvolvimento.

Contudo, tenho as minhas crenças. Acredito incondicionalmente nos valores supremos da bondade, da generosidade, da liberdade, acredito na defesa dos direitos dos mais desfavorecidos, acredito nos malefícios da intriga, da inveja, da ganância, defendo a paz assente na justiça e no respeito pela vontade dos outros. Acredito no supremo saber e poder da natureza e acredito que devemos respeitá-lo e venerá-lo.

E etc. Coisas assim.

Mas isto é, digamos assim, a introdução e a declaração de interesses antes de falar no que hoje aqui me traz.

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E o que hoje aqui me traz é o seguinte:

De pessoas que abusam sexualmente de outras eu sinto um asco sem tamanho. Também desprezo. Mas o desprezo às vezes mistura-se com indiferença e eu não consigo ficar indiferente quando alguém abusa sexualmente de outra pessoa.

Mas quando o abuso é cometido contra uma criança o asco é mais do que asco. É raiva, é repulsa, é vómito misturado com fúria.

E se a isso se junta que o abusador se disfarça de protector e de emissário da igreja então eu não vejo que possa haver perdão.

Mas perdão sempre deve haver. Tem que existir em nós capacidade de descobrir clemência, em especial se o abusador é um tarado, um pérfido encapotado, alguém tão hipócrita e sinistro que com uma mão penetra na intimidade de uma criança e com a outra dá a hóstia aos devotos. Temos que tentar encontrar em nós capacidade para perceber que só alguém muito perturbado, muito doente, muito psicopata pode molestar uma criança indefesa e depois continuar a encomendar almas, a batizar crianças, a pregar a fé e a caridade.

Podemos não conseguir -- eu não consigo -- mas acredito que, se calhar, devemos tentar. Pessoas doentes, taradas, se calhar são pessoas perdidas de si próprias, pessoas que a meio da noite se arrependem da perversão e do sofrimento que causam às crianças que violam. Talvez mereçam o esforço da nossa compreensão.

Mas já não me parece que mereçam perdão, sequer compreensão, as hierarquias da igreja, a estrutura da organização, os supremos zeladores, os que sabem o que se passa e encobrem, desculpam, inventam pretextos.

Não, não me parece que mereçam perdão os que, sabendo dos abusos, se paramentam com vestes bordadas e debruadas a ouro e bem moldadas mitras, que frequentam as atapetadas e luxuosamente decoradas salas em que se fala baixo e se transaccionam dádivas e perdões, os que fazem prelecções transbordantes de apelos à verdade e à bondade. Não, esses não podem merecer perdão, sequer compreensão.

Há demasiada cumplicidade para com tantos crimes. Há demasiado encobrimento e demasiada tolerância para com tantos criminosos. Há demasiado silêncio em relação aos que viram as suas almas e os seus corpos para sempre dilacerados. Há demasiados criminosos no seio da Santa Madre Igreja.

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As duas pinturas são da autoria de Fra Angelico ao som de Salve Regina

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Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Justiça. Paz.

7 comentários:

João Lisboa disse...

São 2000 anos de criminaliade: https://lishbuna.blogspot.com/2021/04/blog-post_64.html

Anónimo disse...

Saber que até 100/150 anos atrás as crianças não tinham direitos, que chegou até nós, sem papas na língua, “o trabalho do menino é pouco mas quem não o aproveita é louco", que “ … Sem ter pentelho nenhum/com certeza, não desgosto/Até gosto! … …”
https://www.escritas.org/pt/t/3441/inedito
dá para imaginar como seria o tratamento delas nos internatos

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

Não conheço de história o suficiente para me pronunciar mas acredito que os historiadores terão bases para o dizer. Acredito que, algures no tempo, no início dos inícios, a coisa terá começado bem intencionadamente, pessoas querendo acreditar, uma ilusão colectiva, ideias boas. Mas quando os movimentos, sejam de que natureza forem, se baseiam em ilusões, a coisa começa a adquirir contornos que nem sempre são bons. Há sempre alguém a forjar mitos para melhor convencer os descentres, haverá gente a mobilizar-se para arranjar fundos para grandes causas e que, sabe-se lá como, acaba nos cofres de quem não seria suposto. Enfim, a história que se sabe. Agora como é que daí se passou para o abuso de menores é que é uma distorção total e uma coisa imperdoável.

Fico doente só de pensar. Cambada.

E um bom domingo, João.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a

Bem lembrado o que aqui escreveu. E não conheci aquele poema do António Botto. Até me encolhi... Bolas. Não o sabia pedófilo, caraças.

Era relativamente bem aceite há uns anos...? Pois, se calhar, era...

Lembro-me de ter ouvido, antes do escândalo da Casa Pia, que se dizia de um conhecido administrador de uma grande empresa que aquilo de que ele gostava mesmo era de papar meninos. Na altura ouvi aquilo como sendo um disparate. Não liguei, não pensei que pudesse ser verdade. Quando rebentou o escândalo e se soube do que se passava fiquei estupefacta, passada, revoltada. E quando, um pouco por todo o mundo, começaram a vir a lume os casos de abuso de menores por parte de membros do clero... De uma pessoa ficar doente. Porque é que tanto tarado vai para padre? Porque é que a Igreja, enquanto instituição, acoberta os pedófilos e abusadores? Está minada de alto a baixo?

Bolas. Que repulsa enorme que sinto.

Enfim...

Olhe, um bom domingo.

Diogo Almeida disse...

Para mim, um virgem com demasiado conhecimento na cabeça é um perigo à espreita. Vida de padre é para raríssimos. Pudera, tudo aquilo é tão tecnicamente árido...

Um Jeito Manso disse...

Olá Diogo,

Quase me fez rir com este seu comentário. Mas, sabe, acho que ainda assim não justifica: poderiam ser virgens e terem muitos conhecimentos na cabeça e, apesar disso, em vez de molestarem crianças, entreterem-se a brincar uns com os outros, voluntaria e consentidamente. Agora molestarem crianças...

E acha que se pode considerar que os pedófilos são virgens? Não sei... Diria que não... Que não apenas não são como é gente conspurcada da cabeça aos pés, conspurcada pelos seus próprios actos.

Deveriam ser expulsos da igreja e ser julgados e, se comprovado, condenados. Se calhar, não teríamos prisões que chegassem mas que se construíssem prisões só para eles. Gente tenebrosa.

E continue a desenhar, a pintar e a poemar. Podemos não comentar mas gostamos de frequentar... (embora apenas fale por mim, claro)

Dias felizes, Diogo.

ccastanho disse...

O que arrepia nesta vergonha da Igreja é ainda haver um Presidete da República branquear o crime de ocultação da pedofilia. O modo como Marcelo se atravessa no branqueamento da cúpula da Igreja é vergonhoso, envergonha um País agnóstico. Marcelo insultou um pa
Ís inteiro no branquaentopedófilo pela igreja.