quinta-feira, julho 28, 2022

Coisas que não fazem grande sentido

 



Tenho a dizer que guardo com cuidado e carinho memórias de coisas parvas. E tenho muitas. E só espero nunca me esquecer delas.

Por exemplo, aquela vez, em longínquos tempos, tão longínquos que não havia ainda smartphones, em que um casal estrangeiro, na fila para o self do CAM, na Gulbenkian, com um pequeno dicionário, daqueles de bolso, olhou incrédulo para o que lá estava escrito e, depois de se interrogarem mutuamente e conferido que a palavra era aquela, nos perguntaram se falávamos inglês. Dissemos que sim. Então, com um ar entre o estupefacto e o incomodado, perguntaram o que significava aquele símbolo de um cão com um sinal de proibido em cima e com a legenda 'Não traga cães'. E mostraram-nos o dicionário aberto em tragar = comer.

Pois.

E, a propósito da Gulbenkian, aquela vez em que eu e a minha filha resolvemos ir à feira dos livros na Gulbenkian. Nem o meu marido nem o meu genro quiseram ir. Ficaram em casa, certamente com o pretexto de ficarem a tomar conta dos miúdos. Não fomos cedo, os dias eram pequenos e nem nos lembrámos de conferir horários. O carro tinha ficado do lado da entrada para o CAM e a feira era no edifício da Fundação, ou seja, do lado contrário. Melhor, da maneira que passeávamos por dentro do parque, patinhos e tal. Lá fomos, nas calminhas, conversando e rindo. Escolhemos livros para nós e para oferecermos. E tudo na boa, até ao último minuto. Quando saímos era de noite. No problem. Nem pensámos. Conhecemos o parque como a palma das nossas mãos, eu desde que comecei a ir namorar para lá, aos dezassete, ela desde que nasceu. Lá fomos, às escuras. Não sei porquê, não sei se é sempre assim ou se foi naquele dia. Nem uma luz. Não foi há tanto tempo assim mas foi numa altura em que os telemóveis não tinham a função de lanterna. As duas, carregadas de livros, às escuras, e aí vão elas. O percurso era simples, era contornar o edifício pelo lado do museu, depois, lá em baixo, a biblioteca, depois ir por ali até chegar ao lago dos patinhos lá em cima ao pé do CAM e depois sair pelo portão. 

Mas está bem, está. Um parque cheio de árvores à noite é do caraças. Se calhar o facto de não termos qualquer sentido de orientação também não ajudou. Passado um bocado já estávamos perdidas. Pensávamos que estávamos onde queríamos e tínhamo-nos era enfiado nas traseiras do CAM, uma zona desconhecida, sem qualquer portão. O tempo passando e nós as duas ali no meio do matagal, perdidonas, sem noção. Mas não desistimos. Tanto persistimos que, não sei quanto tempo depois, chegámos. Portões fechados. Mas já estávamos à beira da rua. Portanto, problema resolvido. Aí estão elas, à noite, os carros a passarem na rua e nós a treparmos o muro. Ela nas calmas, eu um pouco pior. Nós e os livros. Escuso de dizer que já nos ríamos, perdidas de riso. Já me dava era vontade de fazer chichi, tanta a risota. Até que nos vimos em cima do muro que ali é altinho. As pessoas a olharem, dentro dos carros, e nós s duas em pé em cima do muro. Houve uns que apitaram, uns que apontaram para o lado, devia ser para usarmos antes o portão, provavelmente não sabendo que estavam fechados. Só que a seguir veio a parte pior. Saltar. E eu que sofro de vertigens... Olhava para o chão, lá em baixo, tão lá em baixo, e eu tão cá em cima. A minha filha saltou. E de lá de baixo incitava-me: 'Salta! Salta!'. E eu, perdida de riso, uma maluca em cima do muro da Gulbenkian, à noite, sem ser capaz de saltar. Já me imaginava a passar a noite ali, feita um gato. Mas lá ganhei coragem e, felizmente, não parti nem pé nem perna. Chegámos a casa dela às tantas, com eles já preocupados. E ainda hoje me rio só de pensar na figura que fizemos. Eu, em especial, que figurinha.


Também me lembro de uma outra vez, numa outra encarnação. Encontro geral incluindo todos os gestores comerciais vindos de todo o país, ilhas incluídas, creio que até de Espanha tinham vindo. Num hotel grande ali para os lados de entre o Estoril e Cascais. Muito movimento, muita gente. Uma grande confusão de gente a cumprimentar-se, gente feliz, abraços, graças. Fiz uma apresentação e tinha pessoas da minha equipa a apresentar comigo. Depois, muitas questões, o tema tinha despertado muita atenção. E eu com vontade de fazer chichi. Horas sem conseguir escapar-me para ir à casa de banho. Até que, finalmente, lá se deram por satisfeitos. Coffee break. Aleluia. Sem fazer a mínima ideia onde eram as casas de banho. E um a vir dar abraço, outro a dar um beijinho, 'há quanto tempo,,', e eu a espreitar a ver se via o símbolo das casas de banho. Convém ter em atenção que sou míope e que, salvo obrigatoriedades (como conduzir, por exemplo), não uso óculos. 

Portanto, sem reconhecer ninguém ao longe e sem distinguir pormenores, entre cumprimentos, lá fui andando enquanto, pelo canto do olho, ia tentando descobrir. Até que descobri. Uffff... Aleluia, verdadeiramente aleluia. E nisto entra para lá o nosso RP, pessoa divertidíssima, um charme. E eu, aflita mas tentando disfarçar: 'Também é para mulheres?'. E ele, muito sério (mas, a posteriori, a ironia facilmente reconhecível): 'É sim, Sô Tôra... Mas eu acho melhor não fazer aqui'. 

E eu sem perceber, à porta: 'Ah não...? Então...?'. E ele, como se fosse coisa normal, 'É que isto é o elevador...'


E agora já é tarde mas outro dia conto aquela outra vez, de que aqui já falei, também numa outra encarnação, em que roubei um carro, o que, mais tarde, levou o presidente a dizer: 'O mau nome que isto dá à empresa... Se isto se sabe o que é que vão dizer...? Que se os directores roubam carros... o que não farão os administradores...?'

Ou quando acordei a meio da noite e fui à casa de banho, assustando o meu filho que se levantou e que, vendo a pairar no escuro uma tshirt branca (nesse dia devo ter tido frio de noite), julgou que era uma assombração e deu um grito e um salto no ar à la Karate Kid deixando-me a mim completamente aterrada, julgando que o rapaz estava possuído.


Ou quando, in heaven, andando a passear sozinha no campo, comecei a ouvir uns estalidos atrás dos arbustos e, assustada, comecei a acelerar o passo e os estalidos sempre atrás e eu, já assustada, a correr, achando que estava a ser perseguida. E então vejo a minha filha lá em cima, muito espantada, e eu queria correr e falar mas, tão assustada estava, mal tinha força para correr e para falar. Queria precavê-la, queria avisá-la que fugisse. Sei lá. E ela sem perceber nada. 

Lá consegui balbuciar: 'Um cavalo...'.  E ela, admiradíssima: 'Um cavalo...?'. Claro que não percebia. Depois, então, disse o nome do irmão. Amedrontada, olhei para trás. O meu filho. Também sem perceber nada. 

Não sei de que é que estava à espera. Um bandido a cavalo, acho. Não sei o que é que os estalidos feitos por um rapazito pequeno com a língua poderiam confundir-se com um patife a cavalo.

A minha filha diverte-se a imitar-me nesse momento altamente absurdo. E eu farto-me de rir com estas maluquices que se passam na minha vida.


E, por hoje, é isto.


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Para abrilhantar o post fui buscar Keith Apicary que Surprises America With Unforgettable Dance Moves - AGT 2021

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Desejo-vos um dia bom
Saúde. Bom humor. Paz.

2 comentários:

Anónimo disse...

Era já noite. Hora de inverno e eu à procura do carro estacionado no Júlio de Matos.
A princípio até achei graça à minha distracção.
Foi com algum alívio que o encontrei.

Um Jeito Manso disse...


E conduziu-o direitinho ou olhou para ele, deixou-o lá ficar e voltou para o seu quartinho? Conte-me coisas.