domingo, julho 29, 2012

A lua que, aqui in heaven, aparece branca e suave quando o céu ainda está azul diurno; as minhas pedras que guardam este templo e os meus livros em férias


Para vos acompanhar na leitura do texto, música, por favor

Dead Combo e Camané - Ouvi o texto muito ao longe

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Um sábado tranquilíssimo. Sono solto, calor, descanso, leituras, telefonemas, fotografias, culinária (dia de choquinhos cozidos com tinta para o almoço), pequenos passos em volta já que o repouso teve que voltar. É isto o lazer. O verão no campo. 



Hoje de tarde, a lua num céu límpido e, à direita, a minha grande e protectora azinheira


E há a lua que se desenha num céu límpido ainda a noite vem longe. A lua em quarto crescente, boa para nascerem crianças. Quando os meus filhos estavam para nascer eu olhava a lua e, de noite, quando estava lua cheia, levantava a roupa para que o luar os iluminasse, gostava de sentir o luar na minha barriga enorme. Nasceram também no verão, estava muito calor e eu estava muito feliz, adorei estar grávida, adorava senti-los dentro de mim. Durante muito tempo senti saudades desses movimentos largos de quando eles já eram grande e se ajeitavam dentro de mim. Ainda sinto, mas são umas saudades de uma realidade já longínqua. 

Para além desta lua branca, esboçada num céu muito azul, há também as cigarras, os pássaros vagarosos, as lagartixas que se escondem, e há as sombras sobre os muros, e o cheiro de um dia quente, e um cão que ladra lá bem ao longe. 

E há as minhas pedras que eu olho como se fossem habitantes deste local, habitantes com tantos direitos como eu, seres de outros tempos.



As minhas amadas pedras que saíram do interior da terra. Estão trabalhadas pelo tempo.
Olho-as como animais ou seres do início dos tempos, guardiãs deste lugar sagrado


Hoje, de tarde, resolvi juntar os livros que reservei para estas férias, os que ainda tenho para ler ou para completar ou consultar, colocá-los sobre uma pedra para vos mostrar. (E depois vou transcrever, ao acaso, uma pequena passagem de cada um, para vos transmitir um 'cheirinho').



As minhas leituras em férias, aqui sobre uma das grandes pedras assentes no chão cheio de folhas


Reparei que me esqueci de juntar o 'A menina é filha de quem?' da Rita Ferro mas talvez seja porque já o li ou, se não é por isso, que venha o Freud e explique.

Passo então a dizer quais são:


> 'Memória breve de Ferreira de Castro' de Papiniano Carlos, editora Húmus


E assim Zéquinha foi forçado a rumar para o interior da Amazónia.

Aqui no Seringal Paraíso, na margem do rio Madeira, consumiu a adolescência em duros trabalhos, miséria, imensa fome, abjecta escravidão. E ainda um medo medonho das flechas envenenadas, mortais, dos índios Parintintins.

Aqui passou, suportou, três anos que jamais esqueceria.

E regressou a Belém do Pará, onde foi empregado de armazém, colador de cartazes, moço de bordo num barco de cabotagem.

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> 'A praia' de Cesare Pavese, editora Ulisseia, tradução do italiano por Ana Tomás


Mirei-o pelo canto do olho, com má vontade e curiosidade. Berti é daqueles que vão à escola porque os mandam e, quando falamos observam a nossa boca com olhos intumescidos e entediados. Naquele momento, nu e bronzeado, abraçava os joelhos e sorria, inquieto. Veio-me à cabeça a possibilidade de serem, porventura, estes os rapazes mais perspicazes.

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> 'O retorno' de Dulce Maria Cardoso, editora Tinta da China


O avião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que ele diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos.

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> 'Caderno de memórias coloniais' de Isabela Figueiredo, editora Angelus Novus


Manuel deixou o seu coração em África. Também conheço quem lá tenha deixado dois automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas, três machambas, bem como a conta no Banco Nacional Ultramarino, já convertida em meticais.

Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta.

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> 'A submissa' de Fiódor Dostoievski, editora Arbor Litterae, tradução do russo António Pescada


Sim, aquele rosto meigo tornava-se cada vez mais insolente. Acreditem, eu tornava-me repugnante para ela, isso estudei-o bem. Mas que ela tinha arrebatamentos que a faziam sair de si, disso não havia dúvida. Como era possível, por exemplo, saída de tanta lama e tanta miséria, depois de ter andado a lavar o chão, começar de súbito a troçar da nossa pobreza? Compreendam: não havia pobreza, havia economia, mas naquilo que era preciso até havia luxo, nas roupas por exemplo, na limpeza. Eu sempre pensei, mesmo antes, que a limpeza do homem seduzia a mulher.

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> 'Crucifixion' da Phaidon



Craigie Aitchison, oil on canvas, 1997-8, private colection


The small dog which appears in this and many others crucifixions by Craigie Aitchison puts one in mind of Psalm 22, the opening words of which are quoted by Christ on the cross. The Psalm continues: ' Dogs have surrounded me; a band of evil men has encircled me, they have pierced my hands and my feet... they divide my garments among them and cast lots of my clothing'

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> 'A Europa desencantada - para uma mitologia europeia' de Eduardo Lourenço, editora Gradiva


Construir a Europa por irresistível pressão das forças económicas e uma lógica que é hoje planetária, como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme ninguém. Uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tem condicionado o seu destino, contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua sublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade.

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> 'Tempo da Música, Música do Tempo' de Eduardo Lourenço, editora Gradiva



Beethoven, 3ª Sinfonia, dir. Karajan


Karajan dirigindo a 3ª de Beethoven. Como se a orquestra executasse para ele, médium, foco absorvente das vagas da orquestra, e só seu invisível senhor.

Conduz de olhos fechados, como de cor, vivendo no sentido de Baudelaire a música que nasce simultaneamente dos seus dedos e dos músicos. Espectáculo prodigiosamente romântico como se Beethoven ressuscitasse. Sinfonia Heróica? Je veux bien. É de uma melancolia pavorosamente terna, viagem no labirinto da solitude de um ardente coração, o 2º movimento.

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> 'Nova reunião, 23 livros de poesia' de Carlos Drummond de Andrade, edições BestBolso


                     O poeta
                     declina de toda responsabilidade
                     na marcha do mundo capitalista
                     e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
                     promete ajudar
                     a destruí-lo
                     como uma pedreira, uma floresta
                     um verme

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> 'O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor' de Ruy Belo, editora Assírio & Alvim


                      És e renasces como a pura linha do amanhecer
                      e como o sol primeiro és incandescente
                      rosado de repente e logo a pouco
                      e pouco cada vez mais rubro e mais intenso
                      até à amarela gema de ovo que é o sol ao pôr-se
                      Quanto eu não dava deus por sempre te ouvir rir
                      riso tão fresco como tilintar de loiça
                      Não confies em mim mulher mas desconfio haver de amar-te
                      até ao fim do mundo

*

> 'Amor livre e outras histórias' de Ali Smith, editora Quetzal, tradução de Helder Moura Pereira


Quando estivemos juntas da primeira vez passávamos a vida a ter sexo. A única coisa de que me lembro em relação a esse tempo é que tínhamos sexo, lembro-me como uma névoa de onde ocasionalmente os pormenores emergem com tal precisão que se transformam em farpas, uma névoa de nós duas na cama ou de mim a encostar-me a ti contra o irradiador ou a correr os cortinados da sala da frente ao meio-dia e a voltar para o sofá, tu recostada nele a abrires a camisa, eu a desapertar os botões dos teus jeans da Chelsea Girl. 


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Agora, que estou a acabar de escrever, são quase 3 da manhã e o vento entra pela chaminé da salamandra, fazendo com que a sua porta de ferro bata conforme lá fora ele sopra. Estou ainda a ouvir Beethoven e o som do vento nas árvores e o da porta da salamandra, misturam-se com os acordes da música. Gosto, fica um som agradável, são os sons da minha casa nesta noite ventosa de verão.

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Isto saíu longo (espero que não tenha muitas gralhas porque, dado o adiantado da hora, já não me apetece reler uma coisa tão comprida) e só por despudor vos posso ainda convidar a fazer uma visita ao meu Ginjal e Lisboa. Há algum tempo que o não actualizava. Hoje as minhas palavras movem-se saudosas em torno de um poema de carlos Drummond de Andrade e ao som de Jordi Savall. Se ainda estiverem para me aturar mais um pouco, gostaria de vos ter também por lá.

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E, com isto, daqui a nada é uma bela manhã de domingo.
Espero que seja um bom dia para vocês!

2 comentários:

Pôr de Sol disse...

Ao ler o seu post, pensei que nos ía dar a boa nova do nascimento do seu 4º.bebé, tem tudo a ver com luas e há tempo disse que vinha a caminho.

Já agora, é para quando?
Um nascimento é sempre um acontecimento emocionante.

Tambem tenho dois livros para ler, mas estou à espera de uns dias fora de casa, para ter mais tempo.Tenho dado prioridade a jornais semanais e revistas e mesmo assim ainda tenho algumas em atrazo.
Quanto ao livro de Rita Ferro, de que só ainda li partes soltas, depois dou-lhe a minha opinião.

Continuação de boas férias

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Com uma lua destas, linda, nascente, acho que na minha família um bebézinho deve estar mesmo a caminho para vir encher ainda mais de afecto as nossas vidas.

À hora a que lhe estou a escrever ainda está no ventre da sua mãe, abrigadinho. Mas estamos desejosos de o conhecer.

E a ver como a maninha (que nem 2 anos ainda tem) vai reagir.

Actualmente não liga muito ao primo mais novo (15 meses), gosta é de brincar com o primo crescido (que fez agora 4 anos). Quando lhe perguntamos pelo bebé aponta para o primo de 15 meses. Nem deve imaginar que vai aparecer um bebé ainda mais pequeno.

Quando ela nasceu e a fomos ver ao hospital, levámos o primo que na altura tinha 2 anos. Quando dizíamos que aquela era a prima bebé, ele olhava de sobrolho carregado, muito admirado, como se nem estivesse a acreditar no que estava a ver. Acho que não imaginava que houvesse um bebé tão pequenino.

Eu depois dou notícias.

Boas leituras!

Um beijinho Sol Nascente!