quarta-feira, dezembro 02, 2020

Labirintos





Isto de estar nas lojas o mínimo de tempo possível e de não provar nada, dá nisto. No outro dia, foi já em casa que provei uma coisa que era para oferecer e outra para mim. A minha estava justa demais e a outra notoriamente não entraria já que é um modelo destituído de elasticidade. Por isso, hoje tivemos que lá voltar. E como havia outros presentes para comprar, tratava-se de tudo ao mesmo tempo. 

Enquanto lá andávamos, sentia o telemóvel a estremecer e a piar-me no bolso. Quando consegui, espreitei: eram os membros do grupo da família e mandarem mensagens uns aos outros, dum lado uns faziam caminhadas no bosque, do outro os meninos trepavam às árvores. Numa das últimas, o mais velho estava bem lá para cima numa árvore gigante. Na outra, havia um mapa com a localização de por onde andavam. Passado um bocado, voltei a espreitar. A minha filha dizia 'Va la que nao revelaram os presentes de natal ehehe'. Não percebi, voltei a guardar o telemóvel no bolso, pensei que era coisa lá deles. Mas, quando estava na fila para pagar, pensei: 'espera lá, mas se eles andam a passear e nós é que andamos às compras, querem lá ver que aquilo é mesmo para nós?'. Voltei a ver. Aquilo era ela a comentar qualquer coisa. Ocupada, farta de andar naquilo e, sobretudo, a morrer de calor (é só a mim que a máscara faz subir a temperatura do corpo todo?), não percebi o que era. Até que reparei que, mais acima, estava uma gravação. Ouvi e ia-me caindo tudo. Era eu e o meu marido a conversarmos: ele a perguntar se íamos primeiro fazer as trocas, eu a dizer que não, que era tudo no mesmo sítio, eu a perguntar onde é que se levantava o que tínhamos que levantar. Desliguei, estarrecida. Como é que aquilo tinha acontecido? Caraças. Sem querer carreguei no microfone. Felizmente, não desvendei nenhum segredo nem pronunciei nenhuma palavra imprópria para consumo. Fiquei a pensar se uma coisa destas ou parecida não terá acontecido alguma vez antes com outras pessoas que, por pudor, não me disseram nada.

Aliás, agora que falo nisto, lembrei-me de uma que aconteceu faz anos. Tinha acabado de ser apresentada a um tal cheio de nove horas, cheio de de cerimónias, pessoa, ainda por cima, com uma maneira de ser distante, talvez, até, um pouco acanhada. Durante a reunião, ficámos de obter uma informação e de nos telefonarmos. De tarde, tendo eu conseguido saber o que era pretendido, liguei-lhe. Atendeu, eu disse olá e, acto contínuo, ouvi um sonoro 'F...-se!' e a chamada acabou ali. Fiquei perplexa, em suspenso, o telemóvel na mão. Era então assim que o senhor doutor, pessoa tão importante, atendia as chamadas? Ou, melhor, despachava as pessoas?

Ainda mal refeita, toca o telemóvel. Era ele. Pensei: e agora? Digo alguma coisa? Ou ele vai dizer alguma coisa? Mas não, simpatiquíssimo: 'Peço desculpa, estava a sair do carro, quando ia atender deixei cair o telemóvel.'. E eu, sonsa: 'Ah, não tem problema'. E a conversa prosseguiu. Até hoje nunca lhe falei nisto. Para quê? Só se fosse para nos rirmos os dois. Mas sei que, lá no fundo, haveria de ficar um pouco agastado. Nem tanto pelo que aconteceu pois já me conhece bem, sabe que não estou nem aí para deslizes mas pela mesma razão que eu: e se isto já aconteceu alguma vez e se alguém ouviu o que não devia ouvir?

Mas, enfim, nada de mais. O que foi de mais foi outra coisa. Nestas coisas ando sempre à rédea curta. Cronometrando-me os movimentos, o meu marido decidiu que já não dava tempo de ir a outro sítio senão não conseguiríamos estar em casa à uma. Mas eu, que ando há uns dias a querer arranjar um vaso alto e uma planta que cresça em altura para colocar perto do portão para encobrir os contentores do lixo e dos recicláveis, insisti, insisti, insisti. Que já não dava, que não valia a pena, que viéssemos para casa. Mas não sou de me render tão facilmente. Lá fomos. Mas já não deixaram entrar. Fiquei furiosa e ele vitorioso. Portanto, regressámos sem o vaso e sem a planta. E isso contristou-me. Já me estava a imaginar a tratar do transplante e a estava a imaginar o efeito. 

De tarde, consegui estar um pouco ao sol. Levei a espreguiçadeira para o bocado de relva ao sol, estive a ler. Tirei a blusa, fiquei apenas com o top de alcinhas, o sol suave a deslizar na minha pele, os passarinhos a cantarem e a brincarem por entre a folhagem, e o livro bom. Não é só o saber bem, é também o ser saudável. Depois andei por ali, a cirandar, a fotografar, a sentir a felicidade de ver as árvores e as flores e a, mais simples de todas, a felicidade de de existir.

Fui até à horta. Não sei o que há ali. Parece que há um qualquer microclima: talvez mais morno, mais húmido. Pelo menos é o que se sente. Isso e os cheiros, bons. Ao canto de um canteiro, descobri um jarro. Agora fui ver se o nome é mesmo jarro e descobri que pode ser mas que o nome botanicamente falando, isto é em esperanto botânico, é Zantedeschia aethiopica. Quando o vi, hesitei. Tive vontade de apanhá-lo para o pôr numa jarra a fotografá-lo. Mas, no último momento, tive pena. Uma flor pode ser sacrificada just for the fun of it? Tive dúvidas.

Ao passar pela estufa, senti pena de ainda não lhe ter prestado atenção. É rudimentar, precisa de ser arranjada. Está abandonada e as coisas, tal como a natureza, sentem o abandono. As pessoas também. Tenho que cuidar daquilo que amo, não posso deixar que se sintam abandonados. A ver se amanhã tenho disponibilidade para lá ir, para entrar, para começar a limpar. Mas receio. Sei que se for é para me entregar, para não abandonar mais. E não creio que esteja chegada a hora para isso. 

Também tenho saudades do meu heaven. Estas restrições à movimentação condicionam-nos. Deve estar tudo tão verdinho, o musgo tão fofo e macio. Transformei em bosque um bocado de terra pedregosa e inóspita. Quando toda a gente achava insano aquele meu sonho, eu dizia que haveria de por lá passear à sombra das árvores que estava a plantar. E isso aconteceu. E essa é outra grande felicidade. Se quero sentir felicidade, construo-a. Flor a flor, árvore a árvore, sorriso a sorriso, palavra a palavra.

Gosto de ler sobre jardins. E gosto de ver vídeos sobre pessoas que transforam terra árida em florestas verdejantes que multiplicam a flora e atraem a fauna. Parece-me um milagre e gosto de testemunhar a existência de milagres assim.

E fui ainda ver os livros de Eduardo Lourenço. Aquela estante é daquelas que tem livros que não sei bem como arrumar. Estão ali para uma segunda reflexão. Gostei de relembrar os livros de uma pessoa que sempre admirei. Creio que haverá por cá mais um ou dois livros mas não sei se estarão noutras estantes. Agora estou a ouvir uma entrevista com ele. Fala do que o faz feliz, explica que a felicidade está nas pequenas coisas que estão ao alcance de todos.

É daquelas pessoas que pensa com as mãos na terra e com o olhar acima da multidão -- e com o coração no meio dos homens.  Penso naquela vez, não há muito, em que o vi a atravessar a rua ali mais ou menos em frente à Biblioteca Nacional. Não sei precisar, talvez uns três anos. Ou seriam quatro? Não sei. Parece que esta vida em resguardo me está a esbater as coordenadas temporais. Sei que o vi já frágil. Pensei que, com a idade que tinha, era um aventureiro e um corajoso em andar ali, sozinho, sem apoio, quase parecendo um passarinho hesitante, em dificuldade. Tive vontade de lhe ir dar o braço. Mas não o fiz, claro. As pessoas têm o seu orgulho e há que saber respeitá-lo.

Quando parte uma pessoa boa e inteligente fico a pensar que talvez venha o dia em que quase não subsistam portugueses de lei. Como será, então? Quem nos ajudará com as palavras? Não correremos o risco de ficar encurralados em tristes labirintos?

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Mas, enfim, voltando a florestas, ao milagre da natureza que podemos fazer acontecer 


E um dia feliz!

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