terça-feira, maio 24, 2022

Jaime Vilaseca diz que foi ela que mudou a sua vida.
[Por acaso, ela nasceu na Ucrânia e, por acaso, diz-se que a mãe foi violada por soldados russos. Mas isso agora não vem ao caso]

 

Não poderei dizer que ela também mudou a minha vida pois, para falar a verdade (se é que sei qual a verdade, não é, K.?) acho que nunca nada mudou a minha vida. Olho para mim e vejo-me, agora e desde sempre, no mesmo trilho. Não mudei por nada nem por ninguém. E não por obstinação, orgulho ou sina, apenas porque todos os caminhos que percorri foram sempre o mesmo e é o caminho que me traz e não eu que o escolho.

Mas que ela me impressionou fortemente lá isso é um facto. Quando a conheci, quase parava de respirar para tentar perceber que sentimentos eram aqueles, os dela que assim se me dava a conhecer, os meus que assim me conhecia e que assim a conhecia. 

Não sei qual o primeiro livro que li dela. Nunca tinha lido coisa assim. A gente sente e pensa mas, por vezes são coisas tão cá dentro, tão viscerais, que nem faz sentido tentar encontrar palavras para as traduzir. São coisas que se formam dentro da respiração, que circulam dentro do nosso sangue. Mas ela fazia-o, encontrava as palavras para isso e era tudo tão íntimo e, ao mesmo tempo, tão transcendental que, de repente, as coisas mais etéreas e as mais terrenas se encontravam cerzidas com a perfeição das coisas raras e belas demais.

Não se percebem pessoas assim. 

Não sei se foi a história da sua família que ficou inscrita nos seus genes, se foram as dores que a mãe sofreu, se é coisa que sempre teria existido mesmo que o percurso de vida fosse outro, mesmo que tivesse ficado na Ucrânia, mesmo que a mãe não tivesse sofrido às mãos dos russos. 

Não se sabe. Eu, pelo menos, não sei. 

[E ainda bem que não sei pois a vida seria insuportável se soubéssemos tudo o que há para saber]

Uma moldura para Clarice

Um encontro com Clarice Lispector mudou sua vida, na década de 1960. O espanhol Jaime Vilaseca era marceneiro no Rio de Janeiro. 

A escritora encomendara a ele uma estante de livros, que foi feita e montada em seu apartamento, no bairro do Leme. Durante aqueles dias, silenciosamente, observara-o trabalhando e, terminado o móvel, olhou para ele e disse: “Você vai ser moldureiro. Não vai escapar ao seu destino!”.


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