segunda-feira, dezembro 21, 2020

Um domingo normal
[E, se quiserem, sintam-se à vontade para encherem o normal de aspas]

 


A salinha onde habitualmente nos sentamos à noite a ver televisão foi, noutra vida, o quarto de um dos filhos dos anteriores proprietários. Tinha, pois, as tomadas adequadas a essas funções. Agora, com dois sofás, um móvel com uma televisão e box, candeeiros de pé, computador, etc, as tomadas eram poucas e situadas onde menos dava jeito. No piso de cima a que chamo sótão mas que, na verdade, é uma sala muito grande, para além de outros compartimentos, havia a mesma questão: ao lado de um sofá tenho uma mesa com um candeeiro e, para o ligar, só com uma extensão. Por isso, este domingo esteve cá um senhor a colocar, nessas divisões, as tomadas necessárias. Agora já não há fios à vista já que há tomadas perto do que é preciso. 

Entretanto, de manhã, chegou parte da família: vieram buscar as bicicletas e capacetes e, ala moço, todos a pedalar pelas redondezas. Quando chegaram do passeio, uns quilómetros, as crianças estavam com fome, perguntaram pelo lanche. Pãozinho morno com ovo mexido, servido na rua. A seguir, fomos até à horta e comeram tangerinas directamente da árvore, já bem docinhas. E, porque já eram quase horas, lá se foram.

Como o senhor ainda continuava, fui para a divisão onde está a biblioteca de língua portuguesa que uso como meu poiso para as reuniões pois é num canto da casa que é mais isolado e onde posso estar sossegada, falando sem incomodar e sem ser incomodada pelo meu parceiro de teletrabalho. E, então, pus-me a magicar. Desde sempre tive a ideia de colocar a chaise-longue sob a janela, abaixo do parapeito que é baixo, e a pequena secretária num canto ao fundo. E sempre estive aí lindamente instalada até que os dias começaram a ficar mais pequenos. Essa divisão está virada a norte o que, nesta altura do ano, a torna escura. Por isso, a partir para aí das quatro e tal da tarde tenho tido que estar de candeeiro aceso. Então, hoje não fui de modas: abdiquei da bela ideia da chaise longue junto à janela e, aí, mesmo de frente e encostada à janela, está agora a mesinha de trabalho. E a chaise longue foi para a parede entre a estante a e a outra parede. Agora escrevo mesmo à janela, vendo as flores de perto, cheia de boa luz. Se estiver com a janela aberta, se calhar sentirei o perfume das flores. Fiquei mesmo contente com esta nova disposição das coisas.

Depois do senhor sair, limpámos o chão de todo o lado por onde ele andou, desinfectámos tudo, deixámos estar a casa a arejar. 

Depois fui pôr a roupa na máquina. Já passava bem da uma e tal quando fui para a cozinha fazer o almoço. Fiz lombo de atum fresco de cebolada, acompanhado de arroz basmati aromatizado com uma folha de louro e um fio de azeite.

A seguir, estendemos a roupa e, por incrível que possa parecer, fomos outra vez ao supermercado. 

É o nosso contacto mais assíduo com o que nos sobrou da civilização. É pequeno, este, tem sempre pouca gente. Gostamos de lá ir. E só isto dá para ver ao que isto chegou, quão fundo batemos. É que, não sei se estão a ver, ambos detestávamos ir ao supermercado... Mas, enfim, adiante. 

Não apenas queríamos comprar já mantimentos para a ceia e para o dia de natal como, no outro dia, tinha lá visto, na entrada, um ficus benjamina já grandinho e a bom preço e que, por esquecimento, não trouxe. Explico porquê: em frente da cozinha há um pequeno pátio e é aí que está o estendal. Esse pátio é limitado, na parte paralela à rua, por uma meia parede de vidro e, em tempos, era aberto para o jardim. Como quem cá morava tinha gatos, para eles não fugirem, colocaram uma espécie de grelha alta, em metal branco, à laia de porta. Aquilo assim aberto até dá jeito: por exemplo, se estou na cozinha ou no jardim e tocam à campainha, posso ver, por ali, quem está ao portão. Mas tem o inconveniente de, se tenho roupa estendida, se ver um bocado quando se passa na rua. Não gosto. Então pensei em pôr um vaso grande, com uma planta que cresça bem, como um ficus, do lado de fora da grelha, no jardim. E assim foi. Trouxemo-lo. Depois fomos ao viveiro comprar um vaso. Como ando há séculos com vontade de ter uma taça de suculentas e havia lá uns vasinhos minúsculos muito baratos trouxe quatro e uma taça. 

Quando chegámos a casa, foi disso que fomos tratar. Fomos buscar terra escura e boa ao fundo da horta, coisa de que gosto muito, mexer na terra húmida e macia é para mim um prazer. Mudei-as dos vasos onde estavam para os novos, ajeitei-as. Fiquei toda contente. 

Como no sábado à noite tinha feito sopa e uns cuscus mediterrânicos a acompanharem frango estufado e tinha sobrado, e do almoço também tinha sobrado, estava livre de fazer jantar -- o que me faz sempre sentir quase de férias. 

Fomos, então, fazer a nossa caminhada. Já estava a fazer-se de noite e, a meio do passeio, já estava noite feita. Caminhar por aqui à noite dá-nos uma outra dimensão do lugar. As casas parecem diferentes. Sempre gostei de passear à noite -- por vários motivos e um deles tem a ver com a visão exterior da intimidade da casa dos outros. Na volta tenho um certo espírito de voyeuse... Como já aqui o contei, por estas bandas, grande parte das casas tem grandes janelas ou painéis de vidro que ninguém se preocupa em cobrir. De noite, com as luzes acesas lá dentro, vi várias árvores de natal gigantes, lindas. E vêem-se confortáveis salas com belos candeeiros. Por vezes vêem-se as pessoas lá dentro. Algumas casas têm iluminações no jardim. Gosto de ver. Se não estivesse tanto frio, se os cães não ladrassem tanto mal alguém se aproxima dos seus limites territoriais, se não pudesse prestar-se a confusões, acho que gostaria de andar de binóculos e máquina fotográfica a ver, a registar, a imaginar quem são e como é a vida daquelas pessoas. 

Quando chegámos a casa, estava a vizinha do lado a cirandar na sua cozinha. Estava confortavelmente vestida, com uma roupa confortável, casaco de capuz, o seu cabelo comprido espalhado pelas costas. O meu marido disse: não olhes. Mas era impossível não ver. É jovem, bonita, simpática e, pelos vistos, não se importa que a vejamos a andar pela casa.

Ao entrar, acendemos o candeeiro de pé que o meu marido se lembrou de colocar junto à entrada, ao pé de um jarrão natalício -- tem lá dentro umas as hastes iluminadas e, na base, ramos de pinheiro, camélias e umas pinhas --, e apontado à aguarela que está por cima. A luz é amarela, suave, fica o ambiente muito aconchegante. 

Pequenas coisas assim agradam-me: a luz suave num recanto da casa, um jardim iluminado numa rua envolta em noite, uma bola de natal rodopiando na aragem nocturna, suspensa num arbusto, o perfume dos cedros à noite quando passo junto às vedações, uma laranja pesada de sumo, fria, doce, uma fatia de diospiro doce e sumarento com uma fatia fina de queijo da serra em cima, um chá quente e saboroso, o sorriso, a voz, as brincadeiras das crianças. 

E, assim, começa-me uma nova semana. No trabalho, a mudança divulgada, a máquina em movimento. Em casa, o natal que ainda não consegui bem perceber como vai ser. Em casa de portas e janelas abertas? Na rua? Tão atípico. Tudo atípico.

Não sei como sairemos disto. Talvez consigamos voltar a ser parecidos com o que éramos antes. Talvez pareça um ano de hibernação. Talvez venhamos a pensar com saudade nestes tempos de hibernação. Sei lá. 


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As fotografias foram feitas cá por casa e fazem-se acompanhar pelos The Paper Kites a interpretar Climb On Your Tears

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

domingo, dezembro 20, 2020

Se tu soubesses

 



Separei presentes por agregado. Não há papéis a embrulhar. Venho desaderindo desse desperdício há algum tempo. Ficar com o chão cheio de pepéis e laços parece-me um nonsense de um tempo cheio de irracionalidades. Ultimamente já era na base do combate à ineficiência. Era abrir e logo alguém diligentemente colocava papéis num dos sacos maiores para se levar a seguir para o lixo. 

Este ano radicalizei, deixei-me disso em absoluto: não há papéis. Aliás, não se diz 'fazer figura de papel de embrulho'? Coisa a evitar, portanto. Pelo que me toca: nada. Mesmo os sacos onde as coisas estão a granel são reduzidos e tanta escassez também está a ser um bocado demais. Quando compro, trago os sacos mínimos indispensáveis e agora, a separar, faltam-me. Como não trouxe sacos da outra casa, agora foi uma dificuldade. Para resolver, maximizo a utilização dos sacos. Mas não é fácil acomodar presentes, por agregado, no mesmo saco. A minha filha, quando eu lhe disse que não há embrulhos, protestou, diz que faz parte, que é todo um conceito. Pois para mim não. Estou cada vez mais minimalista. E é em tudo.

Se já me incomodava gente que falava demais, a voz alta demais, as pessoas que se acham o máximo, se me incomodava o excesso,  agora, então, ainda mais.

Quando penso em como o excesso me incomoda, penso inevitavelmente naquela casa que visitei há algum tempo, uma grande moradia numa grande quinta. O piso térreo estava razoável, boas peças de mobiliário, confortáveis; mas, para meu gosto, o espaço estava um bocado preenchido demais. Agora a cave... A cave era, em espaço, tão grande quanto a casa: enorme. E cheia como um ovo. Difícil descrever, só vendo. Estava dividida em grandes espaços. Cada espaço tinha a sua função. Um era a adega. Esse era o mais normal. Outro espaço era para relógios. Certamente centenas: de parede, de mesa, de pé, de pulso, de bolso, de todos os géneros e de toda a espécie e feitio. Outra era a dos comboios: indescritível. Montes, vales, cidades, carruagens de todos os tipos, máquinas, coisas por montar, embalagens ainda intactas, tintas, materiais para fazer montes e vales. E, de divisão em divisão, uma pessoa ia ficando de queixo caído. Um mundo quase mágico tal a quantidade de raridades e tal a inesperada profusão de tudo. Grandes mesas para se montar coisas em cima, bancadas, estantes. Saí de lá esmagada. Até dormi mal. Dali poderia ser material para várias salas de museu. O meu lado prático só fazia com que eu me interrogasse: mas será possível limpar o pó a isto ou lavar o chão? Parecia-me impossível e, portanto, só pensava que haveria de chegar o dia em que não se conseguiria dar passo ou respirar. Aflorei o assunto mas ele sossegou-me, que, sem portas ou janelas para a rua, só com respiradouros, ali não entrava pó ou sujidade. Não sei. Só sei que quando vejo espaços tão cheios de tanta coisa sinto até algum medo. Por exemplo, se se perder o rasto a alguma coisa como voltar a encontrá-lo? Dá a sensação que as coisas acabarão por devorar as pessoas.

Portanto, voltando aqui às minhas coisas, não há embrulhos, não há desperdício. O pior é quando não há mesmo nada. Comprei um livro para uma pessoa a quem não posso passar-lhe simplesmente o livro para a mão. Felizmente a simpática livreira fez questão me me dar um envelope de papel. O pior é que agora não encontro fita-cola para fechar o envelope (não trouxe da outra casa e aqui ainda não precisei, não comprei) nem tenho nenhum saco onde meter o envelope aberto com o livro lá dentro. Fica mal e o pior é que não sei como resolver.

A minha filha disse que, se é assim, a granel, sem ar de presentes de natal, então que não me esqueça também de manter os preços como geralmente acontece, um clássico. (Esqueço-me de tirar as etiquetas). Fez bem em lembrar pois hoje fui ver, tive que tirar tudo dos sacos, e grande parte tinha mesmo o preço. Acho que já tirei tudo.

Este ano também não fiz as fotografias que ofereço desde sempre a toda a gente. Estão dispersas por três computadores, outras nem devem estar em nenhum (um computador avariou-se, tive que usar um outro e, mais tarde, ainda outro) e também não vou à Fnac para as fazer nem estou virada para as mandar fazer online. Talvez quando tiver mais tempo livre me ocupe disso. Mas é outra coisa: aquelas festas de anos ou momentos de ajuntamento em que nos juntávamos todos este ano não aconteceram. Enquanto uns e outros conversam e riem e brincam, eu cirando na maior transparência e, sem que ninguém dê por mim, vou fotografando. Mas tudo isso é coisa de um outro tempo. 

Tenho saudades. Ando com saudades.

Por exemplo, tenho saudades de passear. Gosto muito de estar em casa mas também gosto muito de passear. Gosto muito do meu país, gosto de andar a descobrir cidades, vilas, aldeias, rios, serras, hotéis, restaurantes, igrejas, jardins, livrarias, cafés. Espero bem que, daqui por um ano, já tenha conseguido fazer alguns passeios, juntar pessoas cá em casa, andarmos juntos a conversar e a rir, sem máscara, sem termos que nos distanciar uns dos outros, poder fotografar a alegria de estarmos juntos.

Ano tramado este. Nem me apetece olhar para as fotografias que tenho feito e que mostram o andar lento do tempo. Flores, árvores, pedras, sombras. E tantas ausências. E uma perda muito grande. E várias outras mais pequenas. Também ano de mudança, de viragem. 

No trabalho, dizem-me que nunca uma tal mudança tinha alguma vez sido levada a cabo. Antes do salto, apresentei e, ao contrário do que é costume (alguma leveza misturada com alguma distração), neste caso o oposto: tudo de olhos postos, tudo com ar estupefacto. No final muito receio pela dimensão da reviravolta. Um dizia: será que não vamos atirar-nos para fora de pé? Por dentro penso: será que um tsunami destes é gerível? Mas não conheço outra forma de fazer as coisas, só esta, a de começar de novo, pôr o passado para trás das costas, olhar para a frente, querer o melhor, avançar nesse sentido, peito dado às balas. Uma vontade de mudança na minha vida que está a levar a uma mudança gigante na vida de muita gente. Um diz de mim: leva tudo à frente. E concretiza: leva o mundo à frente. E eu ouço e, por dentro, desvalorizo. Penso que é um pequeno mundo, coisa à minha escala, mas que o mundo da gente, o nosso pequeno mundo, é o que temos de maior.

E é uma coisa curiosa, esta. Um exemplo de como a vida resulta da conjugação aleatória de acasos. Se num dado dia não tivesse acordado com uma vontade irreprimível de mudar de trabalho, de empresa, de casa, de tudo, a esta hora provavelmente toda a revolução que nesta empresa está em curso e que vai catapultar muitas pessoas -- e passar por cima de outras -- não teria acontecido. Não sei se é curioso, se é assustador. Mas é o que é.

Quando comecei o post não sabia sobre o que iria escrever. Estava apenas com aquela sensação de ter saudades sem saber bem de quê, nostalgia talvez. Saudades da vida que tinha, saudades de quem se foi, saudades em geral. Nem sei.  Então comecei por ir ao youtube ver se encontrava alguma canção que se chamasse miss mas miss, em si, é vago, dá para tudo. Então escrevi 'miss you' mas quis que soasse como me agradaria que soasse. A dos Rolling Stones não tem nada a ver. A Etta James também não. Encontrei a Nina Simone a interpretar: If you knew. Pareceu-me estar no tom. 

Almeida Júnior, Frederic Leighton, nas duas seguintes, e, por fim, Artemisia Gentileschi acompanham na pintura. Mulheres pensativas, melancólicas, nostálgicas, com a cabeça sabe-se lá onde.


E agora não sei que nome dar a este post pois não escrevi sobre o que me apetecia mas sim sobre o que ocupou esse espaço. Talvez 'saudades'. Ou, então, o título da canção. Não sei. Tanto faz, não é?

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Desejo-vos um belo dia de domingo

sábado, dezembro 19, 2020

Falar de cherne já a cheirar a peixe podre, de uma múmia paralítica recozida em fel, de um láparo burro e ressabiado e de um mangas de alpaca armado em parvo...?
Eu heim...
Vou mas é tentar perceber para onde vão os sonhos de que não me lembro ou aprender a dançar flamengo com a Irene

 




No outro dia entrei na mini-estufa que está ao fundo, na horta, e que está meio destruída. O chão cheio de erva alta, a erva a encobrir não sei o quê, uma prateleira meio caída, umas latas não sei com quê. Aventurei-me admitindo que não haveria de sair uma cobra azul com duas cabeças de debaixo da relva ou um rato gigante a rir às gargalhadas de dentro de uma lata. Então, entre restos de meias coisas, vi uma floreira rectangular, com terra e, sobre a terra, não sei o quê, se ovos de bichos hediondos, se larvas nojentas, e umas meias flores, meias vivas (que é a mesma coisa que dizer meias-mortas). Peguei na floreira, pesada, e com os pés pousados sobre não sei o quê, tentei trazê-la cá para fora. E, então, de lá começaram a sair bichos, talvez formigas gigantes, talvez apenas uns bichos meio aterradores. Suportei a agrura, projectei-me cá para fora e consegui pô-la em terra. E, cheia de comichões e brotoeja de toda a espécie, sacudi-me e sacudi de mim toda a bicheza saída daquela terra estranha coberta por coisas esquisitas e meio tenebrosas.

A seguir, com a mangueira lavei tudo, a terra, a flor, tudo aquilo que tinha sobrevivido sem água e entregue àqueles urubus.

E isto é verdade, que ninguém pense que estou a criar aqui uma história armada em fábula.

Pois bem. A fenómeno idêntico tenho assistido nos últimos dias: tudo o que é bicheza infecta parece que está a sair de debaixo da terra para vir chatear a malta. Primeiro foi o seboso do cherne Barroso, a criatura mais inútil e mais informe que a política portuguesa conheceu e que estranhamente conseguiu aguentar-se à tona de uma Comissão Europeia então paralisada. Depois, nem percebi a que propósito, dei de caras (na televisão, bem entendido) com a cavaquítica múmia paralítica a exibir o seu crónico ressabiamento e mau feitio, respondendo ao que ninguém lhe perguntou. E agora, respondendo ao apelo do seu pupilo, o popufacho ventoso, eis que deu à costa o láparo mais burro que a terra alguma vez pariu; apareceu disfarçado mas, ao falar, logo mostrou que mudam as aparências mas não as substâncias. 

De onde é que esta gente anda a aparecer? O que deu neles? O que anunciam estas sinistras aparições?

E o mais estranho é que, parecendo querer competir com a zombiada que anda a sair de debaixo das tumbas, quais fantasmas a sair de armários escaqueirados, o alpacas, esse apertadinho e sempre maldisposto rio, resolveu armar-se em engraçadinho fazendo piada com morto, com desgraça, com vergonhas alheias. O psd está em decomposição acentuada. Como as minhas romãs pelos vistos devoradas pelos ratos de que só sobrava a casca, assim o clube da laranja. Os fantasmas e os ratos que se pensava estarem defuntos andam a devorá-las por dentro. 

Brotoeja é o que sinto só de ver. Fará os sociais democratas de gema que ainda andam iludidos acreditando que ainda têm hipótese... Talvez até tivessem. Mas, para isso, teriam que renegar a maioria dos estafermos que o dirigiram. 

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Já não chega o corona a dar conta disto tudo, ainda aparecem agora estes vírus bactéricos e putrefácticos. Caraças.

Mas vou estar para aqui a falar de múmias ressequidas e bicheza abutríca no fim de uma semana como a que tive....? É o vais.

Portanto, vou mas é aplicar aqui ao texto umas flores e coisas de natal cá de casa à laia de defumação para ver se afasto a mente dessas avantesmas.

E, olhem, vou pôr-me aqui a olhar estes vídeos a ver se aprendo a dançar, revoltear e sapatear ou, até, a ficar com os cabelos em pé mas com graça.




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Ah, e já contei que tenho andorinhas residentes? 

Um dia mostro o ninho.

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E um bom sábado.

sexta-feira, dezembro 18, 2020

Magia ou... magia...?
O meu jardim é dado a metamorfoses, essa é que é essa.....

 


Penso que esta sexta-feira poderá ser mais tranquila e talvez, à noite, consiga prosear alguma coisa mesmo que seja proseado vago, sem propósito, rumo ou condição. Hoje não consigo. A cabeça ainda não descansou ou desligou dos afazeres. 

A meio do dia veio cá a anterior proprietária. É sempre uma lufada de alegria e vitalidade. Vem numa fugida mas não resiste a entrar pelo jardim e rever as suas árvores e flores. Gosto de a ver nisso. Aprendo com ela e ganho surpresas. Ela também é apanhada pelas surpresas.

Um arbusto grande, no início do outono, começou a ficar com a folhagem amarela. Pensei que estava doente. Falei com o jardineiro e ele disse que já tinha reparado, que lhe ia aplicar produto. Tempo depois, o arbusto já com ar de quem se preparava para uma despedida, perguntei-lhe se sempre tinha posto o produto. Já não se lembrava, creio que nem se lembrava de que tínhamos tido a conversa.

Como me fartei de tanta falta de atenção e cuidado, sempre a virem em horários desprogramados, sempre gente aleatória que nem sabia ao que andava e depois de um dia terem partido uma floreira e abalado sem dizerem água vai, disse-lhes que assim não dava. Vieram outros. A engenheira chefe deu uma volta comigo. Lamentei o que imaginava ser a sina traçada do arbusto. Ela observou e disse, não, não está doente, o que é é de folha caduca. E, na verdade, caiu tudo. A relva coberta por uma bela folhagem dourada. Hoje, diz a anterior proprietária, não tarda começa a florir. Olhei pensando que estava a falar de outro arbusto qualquer. Não, estava a olhar para o arbusto despedido, ramos nus, nus. Fiquei intrigada: mas vai florir estando sem uma única folha? Que sim, é uma magnólia, é mesmo assim. E foi comigo até ele e mostrou-me os rebentozinhos na ponta dos ramos nus, do arbusto que parece sem vida. Nem vejo a hora, deve ficar lindo.

A cameleira também começa a florir mas as florzinhas caem muito. Como são uma graça, apanho-as do chão e vou colocando no arranjo de natal e no jarrão com as hastes luminosas.

Mas, então, estávamos ali no jardim, vê ela uma trepadeirazinha que tem crescido a grande velocidade já tendo atingido toda a altura do pilar junto ao qual foi plantada. Ela soltou uma exclamação: ah, nem acredito... não crescia, pensávamos que não ia desenvolver-se... nem acredito que está deste tamanho... ah... E eu que, desde que aqui estou, só a vejo a crescer, crescer, fiquei admirada com a surpresa dela. 

Depois foi a minha vez de lhe contar de um mistério: estou muito admirada, sabe? Pensava que ali só havia rosas encarnadas e afinal agora está com rosinhas amarelas. Ela estacou: não, não tinha cá rosas amarelas, nunca tive. E eu: pois, sempre ali vi rosinhas encarnadas mas agora há amarelas. Ela insistiu: impossível. Disse-lhe: mas venha cá, estão floridas. Ela constatou. Ficou sem dizer nada. Depois disse: não estou a perceber. Eram encarnadas, toda a vida foram encarnadas. Ficámos as duas a olhar, sem dizer nada. Dava para ver, em algumas, o processo de metamorfose. Por mim, acho fascinante e podem transformar-se à vontade.

Depois desistimos e passámos a outras flores -- o que não tem explicação, explicado está.

Quando passou ao lado da lima, disse: olha, esta está amarela, amadureceu. E eu, que ando ando intrigada, perguntei: mas a árvore dá limas e dá limões? E ela: limões? Não! Limas!. E eu: mas olhe este aqui, amarelo, feitio de limão. E tenho apanhado e usado como limões... E ela, pasmada: Não, redondas, verdes, limas. E eu: Mas veja, olhe este. E ela: Pois, não estou a perceber, eram limas. E eu: Mas ainda tem limas. Só que também tem limões. E ela: Pois, não sei...

Já que estávamos a caminho, resolvi mostrar-lhe uma planta que está a dar-me alegrias: Quer ver? O ficus parecia morto e afinal está a ressuscitar. Ela admirada: Ficus? Qual ficus? Não tinha cá nenhum ficus. Eu: Ah, não é um ficus? Pensava que era. Fomos ver. Ela: Ah, está morto! E eu: Não, parece mas não: está a rebentar. Fomos ver. Diz ela: esta planta estava com um problema, era para a ter cortado para plantar outra. E eu: foi ficando cada vez mais seca, íamos pondo água, quanto mais água levava, mais secava, até que secou de vez. E ela: não era da água, era doença. Porque não arrancou? E eu: Porque raspava as hastes secas e sentia-as ainda com vida. E comecei a reparar que estavam pequenas folhinhas a querer rebentar. E agora estão a nascer um pouco por todo o lado, já viu? E ela: pois, está, de facto...

Depois chamou a minha atenção: aquele vaso ali, directamente em cima da relva vai dar cabo da relva por baixo. E tem razão: coloquei-o ali a ver se a flor que lá está ganha nova vida para depois o trazer para local mais visível mas está na hora de lhe arranjar já outro poiso. 

Ainda sobre uma roseira brava muito linda que está num outro sítio, perguntei: e estas bolinhas? Vão daqui nascer novas rosinhas? E ela: Não. As bagas são para cortar, é o que fica das rosas. Deve podar. E explicou-me que se corta acima das gemas e mostrou-me o que são as gemas dos ramos.

Só que, antes de aqui começar a escrever, fui googlar e fiquei confundida: diz que aquelas bagas são frutos carregadinhos de vitamina C. Ora, do que ela disse, aquilo era lixo. Tenho que averiguar melhor. Se aquilo é fruto e bom quero aproveitar. Mas não quero correr o risco de não ser nada disso, de ser baga venenosa. O mundo é cheio de desconhecimentos, mistérios, coisas para aprender.

E, por falar em vitamina C, era para lhe ter falado no limoeiro do outro lado que dá limões amalucados. Nunca vi tamanhas doideiras. Há limões normais mas depois há alguns que parecem saídos dum livro mágico, daqueles livros surreais onde as rosas mudam de cor, os frutos tornam-se outros e os que persistem no que são não se dão por vencidos e fazem de tudo para dar nas vistas. Fica para outro dia que ela disse que estava com pressa e eu não estava com menos.

E o mais certo é que alguns dos meus bem informados Leitores achem tudo isto de uma aflitiva banalidade e que aqui venham dar-me ensinamento sobre o que a mim parecem fenómenos da mais pura magia. Mas, pronto, cá estarei para aceitar os factos.

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E hoje terei mesmo que ficar-me por aqui pois declaradamente não vai passar disto: zero, bola, nada, chiripitatá-tatá. E peço desculpa por não agradecer os comentários mas estou aqui que nem posso, nem vos digo nem vos conto.

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Desejo-vos uma bela sexta-feira

quinta-feira, dezembro 17, 2020

A gente não vai para nova

 




Lá está, é aquilo que se diz: a gente não vai para nova. 

Parece -- e é -- um déjà lu mas é a verdade: o meu dia foi carregadinho de cabo a rabo. Quando as máquinas são postas em movimento, chegam a um ponto em que ganham embalagem e não há quem as pare. Portanto, levantei-me cedo e foi de então até agora. Em dias assim é garantido: não me sobra cabeça para tema. Se nem sei a quantas ando e, pelo meio, ainda tenho que arranjar espaço para rever um documento necessário para a faena de amanhã, muito menos sou agora capaz de inventar prosa capaz. Não sou. 

Não sei de novidades e, assim de repente, acho que apenas vi um passarinho. Mas, de tal forma estou, já nem sei se foi hoje, se foi ontem. Sei que choveu. Aliás estou num dilema. Há vasos muito grandes e impossíveis de mover que têm pratos de barro por baixo. Com a chuva, não apenas a terra está ensopada como os pratos estão cheios de água. Não sei se não é água a mais. Mas não sei como resolver isto sem partir o prato. Também saí, mesmo à chuva, para ir apanhar três laranjas que estavam caídas na relva. Estão muito sumarentas, ficam pesadas. Não se dá conta delas. No outro domingo foi o meu filho que levou uma sacada, neste foi a minha filha. Penso sempre que boa ideia mesmo era pôr-me a fazer compotas e geleias. Ou farripas de casca de laranja envoltas em chocolate. Imagino o cheirinho bom que haveria de se espalhar pela casa. Frasquinhos de doce resplandecente de cor e luz. Caixinhas de guloseimas. Mas tudo tem açúcar e se, em tempos, podia comer bolos na maior descontração que tudo se evaporava sem deixar rasto, agora é o contrário, só de aspirar o rasto já eu vou aumentando de peso. Tenho que jejuar de quando em quando para me manter nos eixos, coisa a que, de resto, já me habituei. Até porque o meu jejum é relativo, não é? Um chá, uma fatiazinha de queijo com trufa, uma maçã, um quadradinho de chocolate preto. Coisa simples. Quiçá um ou outro caju e arando misturado na boca com o chocolate. Não me perco.

Mas, então, dizia eu que a gente não vai para nova. Ninguém vai para novo. Que me lembre só mesmo o Benjamin Button. E não tenho ideia que fosse coisa boa. Imagina uma pessoa a perder idade, a perder sagesse, toda se rejuvenescendo a caminho de uma luminosa jeunesse e depois a caminho da childwood  e a ver a coisa a evaporar-se até voltar ao já eras. Ou melhor, ao ainda não és nada. Ninguém está contente com o que tem, essa é que é essa. Idade é sabedoria, é generosidade, paz interior, é paciência para aturar maluco, marado, sei lá. E é. Mas é também coisa chata, e esta de uma pessoa ficar toda cheia de formas só de desejar comer coisa doce é uma delas.

Tirando isso. Pus a mesinha onde me alojo a trabalhar mais junto à janela. Gosto mais assim. Mas acontece que, em frente, está um espelho. Volta e meia não consigo deixar de dar de caras comigo. O que vale é que sou míope. Ainda assim ajeito o cabelo se percebo algum desalinhamento. Mas cabelo desorientado é coisa conjuntural. Pior mesmo é ruga que isso, sim, é estrutural. No outro dia estava em casa da minha mãe e estava a dar uma porcaria e, enquanto atendi um telefonema, ela fez zapping. Foi parar a uma cena em que as mulheres estavam todas alteradas. Quando acabei de falar, indaguei mas que raio de coisa era aquela para as mulheres serem todas beiçudas e mamalhudas. Ela disse que era tudo assim. Parece que era um casadas à primeira vista num país qualquer. Diz a minha mãe, sabes lá, faz-se zapping e só aparece disto, bocas inchadas, bochechas e mamas redondas e insufladas. E eu espantada: mas estas são novas. Pensava que eram só as velhas que se recauchutavam daquela boa maneira. Diz a minha mãe: não, nem penses nisso, novas e velhas. No outro dia, também eu estava eu aqui a fazer zapping e dei com uma que quase que só conheci pela voz. Repuxada, repuxada, mal mexe a boca. Comentavam personagens do BB. Mudei logo porque aquilo estava a ponto de ferir a minha sensibilidade: não se percebia nada do que dizia e, quando a câmara mostrou os outros, foi o anti-climax. Gente estranha. Um mundo estranho.

Agora, enquanto escrevo e antes de ir parar às Terras Extremas, passei pela SIC, pela Arrastadeira Vermelha, e estava uma loura estranhíssima, platinada, ultra-pintada e com uma daquelas bocas que levou mais enchimento que um pneu. E toda ela deve ter sido injectada. Pintada até mais não poder. Não imagino como seja quando acorda, desmaquilhada, despenteada. E como será quando tiver mais vinte ou trinta anos em cima. Fico beige com estas coisas. Não percebo, sinto-me deslocada, incapaz de enfrentar esta realidade macaca, capaz é de ir eremitar-me.

Bem. Isto tudo para dizer que, estando eu para aqui sem cabeça de qualquer espécie, fui zanzando no desinteresse até aportar ao primeiro vídeo que o meu bff algoritmo tinha para me oferecer. Glória Pires e Marcos Frota se emocionam ao relembrarem Mulheres de Areia. Lembrei-me desse nome. Naquela altura as novelas da Globo eram coisa que não se podia perder. E a Glória Pires aparecia muito. Não era muito bonita mas era interessante e boa actriz. Fui no play sem hesitar. E fiquei sem saber como agora descrever. Apanhada de surpresa, talvez, com uma certa pena, também. Estupidez a minha. Não a via há tanto tempo que agora me espantei mas, lá está, espantei por mera desatenção minha. Envelheceu, ela... Mas como não haveria de ter envelhecido se não a via talvez há vinte ou mais anos? Envelheceu mas envelheceu bem. Está grisalha. Está com a pálpebra um pouco caída de lado. Era tão inteira, um cabelo tão bonito, e agora está uma senhora. Numa casa muito bonita, a Glória Pires é agora uma senhora distinta. 

Até não há muito, quem me via não me vendo há muito tempo, exclamava: ah, está na mesma... Mas, se calhar, um dia destes, vou começar a perceber que quando falam de mim dizem que é que estou uma senhora. Caraças é que sou uma senhora. Não tenho vocação para senhora. As senhoras são baças, chatas, datadas. Eu não.

Mas isso era a Glória Pires. Mas depois o Marcos Frota. Pelo nome não estava a ver quem fosse. Havia um que era que era pornô da pesada que era Frota mas esse acho que esse não era Marcos. Quando apareceu aquele velho barbudo ali no vídeo, cabelo branco, não vi quem era. Mas depois, pela voz, tive um lampejo. Quando apareceu em novo fiquei até emocionada, quase tanto quanto ele ao recordar aquele tempo e aquele amor tão grande, tão incondicional.

Gostei de revê-los e, vistas bem as coisas, ainda bem que envelheceram: é sinal que estão vivos e isso é que interessa, olarilas. E dizer isto é um daqueles lugares comuns que não fazem falta nenhum? Ah pois é, bebé. (Agora soa-me bem dizer isto)



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Os gordos do Botero fazem-se acompanhar pelas  MonaLisa Twins com When I'm sixty-four

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Saúde. Sorte. Amor.

quarta-feira, dezembro 16, 2020

Um dos meus anti-Trump's preferidos despede-se do Rudy-merdarolas com uma bela canção de Natal
[Rudolph the leaky lawer - A Randy Rainbow Song Parody]

 

Há pessoas que justificam a esperança que se deposita num país. Por mil razões distintas, cada pessoa terá as suas referências. Ou não terá. Por exemplo, em relação a Portugal, haverá quem olhe e só aqui veja estafermos, imprestáveis, gente que não interessa nem ao menino jesus. Estes ainda se dividem nos que, ainda assim, ficam por cá a dizer mal e a cuspir para o ar e os outros, os que nem querem respirar o mesmo ar que os seus conterrâneos e abalam para paraísos de onde se entretêm a cuspir de longe. Mas também há o oposto e que eu dividiria em três sub-grupos: os que se derretem por todos, sem excepção, os que gostam dos que toda a gente gosta e desgosta dos que caem em desgraça nas redes sociais e os que nem uma coisa nem outra, acreditando que uns quantos valem a esperança em melhores dias.

Como é bom de ver insiro-me no último grupo. 

Mas os meus gurus são anti-gurus e alguns tão improváveis que nem saberia explicar porquê caso alguém tivesse a inoportunidade de mo perguntar. Por exemplo, o Manuel João Vieira. Acho-o o máximo. Um artista de primeira água, um maluco encartado, um irreverente sem igual, inteligente, informado, intemporal. Para a galeria dos portugueses indispensáveis, eu votaria nele. Outra que tenho acompanhado sempre que posso, por vezes em retrospectiva, e é, portanto, admiração recente e ainda apenas baseada na intuição, é a Matilde Menezes Ferreira que apresenta um programa que me fascina, o Paraíso. Acho-a fantástica na sua contenção e simpatia. Gostava de a convidar para vir passar uma tarde aqui comigo. Estou convencida que gostaria imenso de conversar com ela. Também gosto imenso da Paula Rêgo pois é, simplesmente, do caraças. Estou a falar apenas dos que ainda estão vivos, como é óbvio. Não quero falar de ninguém da política para a Isabel não vir queixar-se que isto é sobre política. Não é, Isabel, juro. Mas quero aqui incluir a Marta Temido porque acho que lhe somos devedores, porque a acho uma mulher de fibra, uma brava do pelotão, inteligente, destemida, abnegada. Se pudesse, fazia um presente e oferecia-lhe. Se soubesse fazer bolos bons, faria para ela um bolo bem especial e mandaria entregar em sua casa. Espero que o marido e os filhos, que devem sofrer com a sua ausência, se sintam honrados por uma mulher tão valorosa ser lá de casa. Também é sabido que acho o Simas, Pedo Simas, uma brasa. Não só uma brasa, também uma simpatia, um comunicador, um expert, um must. Também gosto de um misterioso poeta, um romântico que sempre me encanta com a beleza decantada que sai dos seus dedos. Dos seus dedos e do seu coração. E, por falar em bloggers, também gosto daquela que escreve textos algo enigmáticos mas sempre com um tal charme que mal vejo que há novidade vou logo ver a beleza com que adornou os seus belos atalhos de campo. Abençoada. Mas faço mal em especificar pois não é apenas um ou uma os bloggers que admiro e, até, estimo. E sei que isto de dizer que sinto estima por quem não conheço é meio estapafúrdio mas o que seria a vida sem coisas estapafúrdias, não é? Uma maçadoria. Por exemplo, também gosto bastante do Alvim, o Fernando. Um ganda maluco...? Ah pois é, bebé. O Alvim é maluco, sim senhor. Mas tem uma graça, um sentido de humor, uma maluqueira fervilhante dentro dele, uma criatividade que fico sempre com vontade de o convidar a vir cá jantar a minha casa. Uma tertúlia de gente doida e gente especial. Ah, o que eu gostava disso. Devia também ter um diseur, não era? O que é uma tertúlia sem um diseur especial? O Fernando Alves, por exemplo. De vez em quando interromperia a conversa e pediria aos dois Fernandos que dissessem poesia. 

Bem. Não vou continuar. Não caberiam aqui. Há portugueses extraordinários. Não incluí arquitectos, engenheiros, farmacêuticos, historiadores, médicos, jardineiros, empregadas da limpeza, cozinheiros, pianistas, violoncelistas, gestores, electricistas, professores, advogados, investigadores, recepcionistas.... não incluí tanta gente que, nos mais variados sectores da sociedade, a meus olhos, se destaca e que torna este país um lugar onde é bom viver. Podem alguns portugueses poluir o ambiente, incomodar-nos ou cansar a nossa beleza com a sua burrice, vacuidade ou gabarolice, mas -- e chamem-me retrógrada, pirosa ou o que vos apetecer --  há muita gente que vale o gosto que fazemos em pertencer ao bando dos ilustres lusitanos a quem um dia Neptuno e Marte obedeceram.

Mas desviei-me da rota. É que vi um vídeo e, como sempre que vejo os vídeos dele, fiquei toda bem disposta. 

Há, algures nos States, um pato cor-de-laranja que gosta de fazer de conta que é palhaço e que, afinal, não passa de uma alimária desqualificada. Como apenas se vê a si próprio, o resto passa-lhe ao lado. Por exemplo, continua a achar que vai continuar a ser o potus quando já não há quem não o veja como o destrambelhado pato Donald que sempre foi, o da boquinha de botão de rosa.

Na verdade, talvez passe à história como a figura de banda desenhada mais parva e narcisista que alguém inventou. 

Obviamente, vai acabar mal, na volta na prisa -- ele e, quiçá, também os seus donaldins.

Mas depois há o anti-Trump. Há vários anti-Trump e eu gosto deles todos. Colbert, por exemplo. Mas este aqui do vídeo é especial. Randy Rainbow. 


Desta vez o seu alvo é outro palhaço que tal, alguém que se decompõe em público exibindo a má qualidade da tinta de cabelo e a ausência de uma rolha anal para conter a inoportuna flatulência: o advogado-mor do palhaço Trump, Rudolph Giuliani de seu nome. Ora vejam o vídeo, por favor. 

Os States deixaram antever que ainda havia esperança de retomar a normalidade de cada vez que o Randy Rainbow publicava um dos seus deliciosos vídeos. A liberdade de expressão é um valores primordiais da democracia e o humor um dos seus mais poderosos aliados.

😂😂😂

Desejo-vos um bom dia

terça-feira, dezembro 15, 2020

Devagar, despreocupadamente, caminhamos para o fim da luz, para o fim dos tempos?

 



Acho que o mundo está a entrar num caminho estreito. E não sei se, no fim desse caminho estreito, há uma saída.

Não é só isto da pandemia 

(embora também o seja, pois não podemos desvalorizar uma pandemia que faz colapsar a economia em todo o mundo e em que, ao fim de quase um ano, ainda permanece o mistério sobre como funciona este vírus, transmutando-se e escolhendo uns e não outros e matando uns e não outros), 

é também tudo o que aí vem com as alterações climáticas e, não menos grave, o que está por vir com a dependência total de tecnologias omnipresentes, ubíquas, baratas, ao alcance de todos... e não apenas desreguladas como impossíveis de regular.

Esta segunda-feira vários serviços da Google estiveram em baixo. O impacto que isto tem na vida de muita gente é incalculável. Claro que grande parte das pessoas nem pára para pensar que tem parte da sua vida alojada e processada em computadores longínquos, geridos por gente que ninguém sabe quem é... e que, ao não pagar um tostão por nada disso, dificilmente pode algum dia reclamar o que quer que seja. Mesmo que o queira fazer vai ter a maior dificuldade em saber a quem se dirigir e de que forma o poderia fazer.

E não estou a falar só de gmail, hangouts, blogger, youtube, etc, que, para muita gente não é apenas coisa lúdica mas sim profissional, social, familiar. Estou a falar também de uma miríade de equipamentos, dispositivos e toda a espécie de objectos que, sem nos apercebermos, estão ligados sabe-se lá onde. Um carro que recebe actualizações automáticas e que está permanentemente a ser localizado para poder ter o gps a funcionar ou para receber informações do trânsito, por exemplo. E nem falo dos telemóveis: ligados a tudo, apps a ferver ligadas a bancos, a fnacs e bertrands, a supermercados, a cartões de tudo e mais alguma coisa, a todo o lado. Falo de fábricas, falo da alimentação eléctrica das cidades, falo de painéis de sinalização de autoestradas, falo de tudo. Tudo automatizado, tudo ligado a tudo... e cada vez mais. A internet das coisas. Tudo automatizado, tudo com inteligência, tudo com algoritmos. Machine learning. Ah pois é. E tudo tem o seu inegável lado bom, óptimo. Mas está à mão de semear para quem o queira usar para o mal. E o pior é que não há como controlar. Por perversidade, por brincadeira, por pirraça, por dinheiro, por descaso... tudo está aí à disposição de quem queira fazer o que lhe apetecer como, por exemplo, deixar um país às escuras, fazer os carros irem uns de encontro aos outros, atirar com fábricas pelos ares. E não digo mais para não dar ideias.

Não falo apenas de ataques cibernéticos, dos hackers que entram onde não devem muitas vezes a soldo de Estados que praticam ingerência noutros Estados, não falo de espionagem industrial em larga escala, não falo em sabotagem cuidadosamente orquestrada. Não falo porque tudo isto é real, existe, é conhecido. Falo, sim, porque é o que mais preocupa, de quando as máquinas se programarem a elas próprias, de quando os humanos se tornarem redundantes face à fiabilidade dos algoritmos, falo de quando os sistemas ficarem descontrolados e os humanos, indefesos, isolados, sem saberem como sobreviver.

Claro que o Marcelo andar a meter-se onde não deve é uma chatice e um déjà-vu sem os quais passávamos bem, claro que o Marques Mendes ser a alcoviteira do regime é daquelas para as quais já não há paciência, claro que haver um populistazeco de meia tigela a subir nas sondagens e levado ao colo pelo PSD e pela comunicação social é uma daquelas chatices que corre o risco de vir a acabar mal, claro que o meu País ter um serviço onde se pratica a tortura e o desrespeito pela dignidade e pela vida humana é insuportável, inaceitável e, se isso acontece, alguma coisa de muito grave se passa e, mais do que apenas pedir a demissão do ministro, deve haver garantia de que coisas assim jamais poderão voltar a acontecer (exames psicológicos e rastreio de álcool e drogas aos agentes, vigilância dupla, não sei), claro que, nesta altura, os professores andarem a falar em greve pela reposição do tempo de serviço é deslocado e despropositado, claro que tudo isso e muito, muito mais é verdade. 

Mas a gravidade e a urgência do que está por vir é de uma outra magnitude, ultrapassa o circunstancial. 

O tsunami múltiplo de desaires que está à espreita é global (tal como esta pandemia é avassaladoramente global), incontrolável e com tudo para ser dramático, talvez de consequências irreversíveis. E para isso ninguém parece estar atento. E o pior é que, mesmo que, aos poucos, alguns comecem a estar atentos, não sei se se vai a tempo. E quando falo em 'alguns' não falo em mim ou nuns quantos cidadãos mais preocupados e mais informados que eu. Estarmos ou não estarmos atentos e apreensivos é igual ao litro, não dá em nada. 

Falo, sim, que deveria haver uma urgência política reconhecida como a grande prioridade do mundo, falo numa espécie de abalo colectivo de tipo 'pára tudo!' que leve os Estados a encarem de frente, muito a  sério, os riscos e darem ordem expressa para que todas as baterias lhes sejam apontadas. 

E mais do que isso: um travão às quatro rodas, repensar tudo, criar mecanismos de não dependência absoluta das tecnologias. 

Mas não sei se vamos a tempo. 

O tempo de reacção política é um tempo lento, feito de cautelosas diplomacias, de demoradas negociações, de concessões, de sucessivos nivelamentos por baixo. E o tempo da tecnologia é o oposto, é o tempo do imediato, o tempo de quem age por si, o tempo de quem tem todos os meios à disposição, a baixo custo, o tempo de quem age por gozo ou por malvadez ou por mercenarismo ou por ambição, sem freios. De um lado está a malta do sistema, os totós que se acham o máximo e que não vêem um palmo à frente do nariz querendo apenas zelar pelos interesses mais próximos. Do outro estão os serviços de inteligência, os bandidos, os jogadores, os aventureiros, os novos piratas, os que desconhecem as leis ou conceitos tão abstractos como o bem ou o mal. 

Não sei se vamos a tempo.

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E, assim sendo, com estas preocupações em mente e com um dia cheio de manobras para pôr uma máquina em movimento, pouca disponibilidade física e mental me sobrou para ficções ou ilusões.

Cirandei pelo jardim mas pouco, fotografei, tentei que a cor das flores animasse o dia tão cinzento, tão escuro (tal como agora o faço, incluindo-as para que o post não fique demasiado sombrio), observei pela janela, enquanto falava ao telefone, os pequenos pássaros, tão frágeis, aparentemente tão despreocupados. Ao fim do dia estive a ler Adélia Prado, uma lufada de ar fresco. A cada frase espanto-me, surpreendida pela graça, pela irreverência da escolha das palavras, pela leveza dos pensamentos que dançam tão inocentemente sobre assuntos tão íntimos. Gosto muito. Gostava de ser capaz de decorar para agora, aqui, sem consulta, vos contar sobre algumas passagens -- mas não sou capaz e, ao mesmo tempo, não o tento. Sempre achei que quem decora muito e sabe tudo dificilmente se deixa encantar pelo que, de novo, for descobrindo. Esforço-me por preservar a minha ignorância e desprendimento.

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Desejo-vos um dia feliz.
Saúde. Boa disposição.

segunda-feira, dezembro 14, 2020

Presentes de Natal -- muito económicos e... DIY

 



Andando por estas bandas há algum tempo, não consigo ser sempre original, em especial quando falo de aspectos relacionados comigo. Foi o que foi e, se falo nisso, forçosamente repito-me. 

O tema tem a ver com presentes. Quando os meus filhos eram pequenos, eu pedia sempre que me dessem coisas feitas por eles como, por exemplo, cartõezinhos ou desenhos. Gosto do que tem um cunho pessoal. É como quando recebia cartas. Adorava receber cartas. Ansiava pela passagem do carteiro e, se ele trazia carta, já eu sentia a adrenalina a bombar. Empolgada e curiosa, abria o envelope e, quanto melhor recheado ele estava, mais antecipadamente feliz eu me sentia. Sempre gostei de cartas grandes. A primeira coisa que fazia era folhear para ver quantas páginas tinha. Era tempo de seu que quem escrevera me tinha dedicado e isso é o melhor que uma pessoa pode oferecer a outra. O afecto tem muitas vertentes mas uma das principais tem a ver com que uma pessoa dá de si própria a outra. Deve dar atenção, cuidado, disponibilidade, carinho, ajuda, companhia. Etc. Se pouco dá, então esqueçam. 

Quando me casei, deixei de ser a menina que recebe presentes para ser a mulher casada também com o dever de oferecê-los. Mas com vinte anos ainda não se tem bem a noção. Faz-se o que se gosta de fazer, com toda a generosidade de que se é capaz.

Como sempre considerei que dar uma coisa a uma pessoa tem que ser uma verdadeira dádiva, alguma coisa pensada mesmo para a pessoa a quem querermos fazer um agrado, achava que não fazia sentido ir a uma loja e comprar coisas impessoais. Então, com antecedência, punha-me a fazer eu 'obras' artesanais. Fazia panos de tabuleiro ou individuais, por exemplo. Fazia em crochet, peças originais que inventava, coloridas, ou feitas em linha crua com aplicações coloridas, flores amarelas, por exemplo. Eu achava que ficavam bonitas, eram úteis, e sobretudo, era coisa mesmo minha. Para os homens já não me lembro, presumo que nada disto. Se calhar para 'eles' seriam livros, cada livro segundo quem o ia ler. Mas, para minha surpresa, notava que, mais do que agrado, toda a gente que recebia os meus trabalhos mostrava algum espanto e a coisa acabava inevitavelmente com um irónico 'mas tão prendada...' e as pessoas de mais idade mostravam alguma perplexidade pois eram trabalhos muito diferentes das tradicionais rendas e as mais novas não estavam nem aí para coisas naquela base.

Persisti por mais algum tempo até que me rendi ao consumismo e esqueci o que me seria natural. 

Mas, até hoje, tenho pena de continuar na onda de oferecer presentes adquiridos em vez de ousar presentes confeccionados. No entanto, claro que fazer coisas para oferecer tem o seu quê. O gosto de quem faz pode ser o oposto do de quem recebe.

Volta e meia vejo em casa da minha mãe algum objecto que me intriga. Sem excepção, são presentes de amigas que frequentam ateliers e que se entretêm a fazer objectos artesanais: peças em madeira pintada, saquinhos com ervas de cheiros ou coisas assim. Por acaso, ultimamente até são coisas com um gosto aceitável e que, por sinal, até são úteis. Mas tempos houve em que, embora se visse que havia ali um esforço e alguma perícia, estava tudo longe de encaixar harmoniosamente lá em casa. Era como quando acabava o ano lectivo: vinha carregada de flores que às tantas nem sabia onde pôr e de peças que, por vezes, eram de gosto altamente duvidoso. Imagino que o móvel onde guardava os tesourinhos deprimentes ainda os lá tenha. Uns feitos outros adquiridos, supostamente peças que quem dava achava que fariam as delícias da professora. Por vezes nem sabíamos o que era, tal a excentricidade.

Continuo, contudo, a ter vontade de voltar a ter coragem para ser eu a fazer os presentes. Quando vejo artigos ou vídeos com sugestões DIY (Do it yourself) não resisto a ver se seria coisa que me agradaria. Tem que ser útil, agradável, relativamente neutro face ao gosto. O vídeo que abaixo partilho tem ideias que acho que são assim.

E partilho-o acolhendo-vos com hospitalidade neste espaço que diariamente componho como se conversasse convosco: mostrando um pequeno arranjo que a minha filha hoje fez em meia dúzia de minutos, juntando umas pinhas e urze (que apanhámos numa nesga de campo no limite da horta) com umas bolas de natal que sobraram, também o vaso de poinsétia cheio de gotinhas de chuva, uma madona com um bebé e, por fim, umas bolas de natal que suspendemos nas árvores do jardim. 

E, lá em cima, escolhi, para 'acompanhamento musical', um vídeo que é mais do que apenas música: é leveza, elegância, beleza. Espero que gostem. 

Mas, pronto, já chega de conversa. Está na hora do vídeo: vejam, por favor, o vagar e o cuidado na preparação dos presentes, úteis, bonitos, e sintam a simpatia que os envolve. Espero que o conforto da casa e o espírito acolhedor que acho que se sente cheguem até vocês (mesmo que não apreciem o lado de menina-prendada aqui da Niamh -- que a ver se recupero também para mim).

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Desejo-vos um dia feliz

domingo, dezembro 13, 2020

Memórias e medos a caminho de um heaven transbordante de cogumelos mágicos

 


Quando eu era pequena tinha medos. Aliás, tinha um medo. Um senhor medo: um pavor. Tinha medo de ver alguém com alguma doença que me parecesse grave. Era um medo incapacitante. Toda eu tremia por dentro, aterrorizada. Não sei precisar quando nasceu esse medo. Seria quando o meu avô materno morreu? Não sei. Pensava que teria uns três anos quando ele morreu num acidente. Afinal, tinha dois anos, disse-mo a minha mãe. No outro dia, quando morreu a filha do Tony Carreira, a minha mãe disse que nem queria imaginar o choque da família ao receber a notícia. Chorava enquanto falava. Perguntei porque chorava assim. Disse-me que se lembrava de quando recebeu a notícia do acidente do meu avô. Diz que até hoje ainda não recuperou do choque e desgosto. Imagino como terá sido, na altura. Tinha vinte e cinco anos, ela. Tinha uma relação por vezes um pouco indiferente em relação à mãe mas era amicíssima dele. Durante toda a vida presenciei o desgosto pela morte prematura do pai. Foi um acidente traumatizante. A minha avó, que era apaixonada pelo marido e que nesse dia ia ao cinema com ele, teria quarenta e um ou quarenta e dois. Durante anos a vi chorar ao falar do meu avô. Vestiu luto durante quase toda a vida. Na altura esconderam de mim (já o contei muitas vezes) mas devo ter percebido. Penso que é, portanto, provável que tenha nascido aí o meu medo da morte. 

Depois foi um acidente grave que aconteceu ao irmão da namorada de um dos meus tios, aquela que veio a casar com ele e de quem eu ainda sinto muitas saudades, custando-me, por vezes, até a acreditar que já se tenha ido, tão alegre era e tão saudável parecia. Ficou paraplégico, esse irmão dela, o mais novo de cinco irmãos. E eu, que o conhecia bem, um jovem simpático e tímido, ao ver a consternação de toda a gente, dos meus pais, dos meus avós, dos meus dois tios, jovens como ele, fiquei soterrada pela dor que sentia em toda a gente. Esteve internado durante muito tempo. Eu desejava que ele não regressasse, antevendo já o terror que nasceria da proximidade. Lá por casa, sabendo-me muito sensível a esses sofrimentos, escondiam de mim, falavam por meias palavras ou em voz baixa. Eu ouvia, pressentia, adivinhava. Os pais dessa que viria a ser minha tia, face ao estado em que tinha ficado o filho, tiveram que mudar de casa. Era uma casa térrea que ficava na mesma rua que a escola infantil em que eu andava. E eu, a partir daí, passei a ter medo de ir para aquele lado do recreio com pavor de o ver ou de me aperceber que alguma coisa de grave estava a acontecer. Mas devia perceber que, se falasse neste meu terror, preocuparia os meus pais. Por isso, calava-o, escondia-o.

Depois foi o pai de uma colega de escola, uma a casa de quem eu ia muito até porque, por coincidência, também morava perto da escola. Além disso, ele era colega do meu pai. Eu percebia que se passava alguma coisa de grave e morria de medo. Nunca mais lá fui a casa, para desgosto da minha colega. Nem falava com ela na doença do pai com medo de descobrir que a morte rondava a casa. Quando ele morreu, a minha vontade era não ir à escola. Fui mas nem olhava para a rua, aturdida de pavor. E quando ela regressou à escola nunca falei na morte do pai com medo de saber pormenores e com uma pena imensa por ela já não ter pai e porque tinha ouvido dizer que ele estava muito magro, irreconhecível, e que tinha muitas dores.

Durante anos íamos passear e fazer compras à Baixa, usando um transporte público que era usado por quem também ia para a 'Palhavã', o IPO. O pavor que eu sentia, o terror que me trucidava as entranhas só eu sei. Se via alguém com pensos, ligaduras ou ar de doente quase morria de medo. Mas escondia-o. Tinha medo de preocupar os meus pais. Penso que eles perceberam pois tenho ideia que tentavam que eu compreendesse que não tinha mal nenhum. Mas era mais forte que eu. 

Feridas, chagas, sofrimentos terminais, tudo isso sempre me aterrorizou. Mas só nos outros. Penso que, no fundo, sobretudo, tinha medo de deixar transparecer o meu medo e que as outras pessoas se sentissem ainda piores por verem os cuidados e medos que me inspiravam. E a verdade é que penso que isso ainda subsiste em mim, embora mais controlado.

Comigo, no entanto, não existe esse medo. Em mim, suporto relativamente bem a dor física, tenho uma certa coragem e desprendimento em relação a mim própria.

Já o contei. Desculpem que me repita. Quando era pequena, talvez três anos, parti uma clavícula. Estava em casa sozinha com o meu avô paterno. Gostava de me pôr de joelhos em cima de um banco que havia na cozinha e de me balouçar lá em cima. Ninguém queria que eu fizesse isso mas eu gostava de pôr o banco em dois pés e de o inclinar para ver até onde conseguia equilibrá-lo. Os meus pais e a minha avó agarravam-me, zangavam-se. Mas o meu avô, muito meu amigo e muito condescendente, tinha dificuldade em zangar-se. E, naquele dia, o banco virou-se, eu caí e, ao contrário do que costumava acontecer, chorei muito. O meu avô percebeu logo que alguma coisa se passava e mandou chamar o meu pai que estava a trabalhar. Quando o meu pai chegou, lembro-me bem, eu estava na cama do quarto ao lado do quarto dos meus avós e estava a chorar. O meu pai vinha assustado e ao tentar perceber o que se passava deve ter-me mexido no braço ou deve ter visto, através da pele, que o osso estava partido. E eu vi o meu avô também assustado e a declarar-se culpado, e o meu pai, aflito, quase a chorar. Então, para os descansar, disse que já não me doía e fiz de tudo para não chorar. Fui de imediato levada ao médico que, à vista, percebeu logo o que se passava. Tinham-me pegado ao colo e puseram-me numa marquesa que me lembro como sendo muito alta mas que, se calhar, era normal. Sei que o médico disse que ia, com as mãos, endireitar os ossos, alinhando as duas partes. Avisou que ia doer e que eu tinha que ser corajosa. E fui. Lembro-me bem. Doeu-me muito. Mas não chorei. Os meus pais sim. O médico ficou espantado com a coragem daquela criança; e eu hoje espanto-me com isto. 

Toda a vida fiz de tudo para me mostrar corajosa para não assustar os outros. 

Corria muito, descia a correr por veredas, voava pelo campo em descidas acentuadas, subia muros e árvores, brincava muito, caía muito, esfolava-me toda. Para não assustar os outros, não chorava. Tenho os joelhos com marcas, tamanhos os ferimentos que fiz. Por vezes, infectavam. Os meus pais desinfectavam, muitas vezes com tintura de iodo, que me ardia e magoava muito. Lembro-me, em especial, já andava na primária, de um ferimento profundo que fiz num dos joelhos. Estava ainda a cicatrizar, voltei a cair, entrou areia. Infectou, já tinha pus. Pedi, então, ao filho de uma vizinha da minha avó, um recém adolescente, que tratasse de mim para não preocupar nem a minha avó nem os meus pais. Ainda me lembro: eu sentada num muro, ele com um pauzinho a retirar os grãos de areia da carne viva. O que me doía... Depois ele foi a casa buscar mercurocromo. Quando a minha mãe viu o estado em que aquilo estava, ficou toda zangada. Eu não me queixava. Por causa disso, não tive tétano por um triz, tendo que ser levada, a meio da noite, de urgência, para o hospital, onde, a custo, me espetaram uma seringa na barriga.

E de tal maneira me habituei a esconder as minhas dores que acabei mesmo por me tornar a modos que estoica em relação a mim própria. 

Em contrapartida, mantive-me medrosa em relação aos outros. Por exemplo, com os meus filhos sempre fui de uma fragilidade total, por vezes absurda. Mal tinham alguma coisa, logo eu ficava num estado de nervos que frequentemente não era proporcional ao mal que os assolava. Penso que notoriamente vinha desses tempos primordiais em que o medo me estrangulava. Mas nem era preciso ser alguma coisa de especial: bastava uma coisinha. Lembro-me, por exemplo, do que eu sofria quando eles tinham os dentes quase a cair. Nunca fui capaz de os ajudar a tirá-los. Uma vez a minha filha tinha um dente preso por um fio. Já nem conseguia comer. Estávamos numas termas (um tempo abençoado, esse). E estávamos a almoçar no restaurante de lá. Com o dente preso por um fio de carne, fomos as duas ao quarto a ver se conseguíamos resolver aquilo. Mas qual quê... Só a perspetiva de poder magoá-la me deixava transida. Ela a querer que eu puxasse e eu aflita. Pior: já a sentir-me mal, quase a desmaiar. A miúda, pequena, a tranquilizar-me e a incentivar-me e eu está quieto. Tive que me sentar na cama e ela, corajosa, ao espelho, teve que resolver, sozinha, o assunto. Às vezes ainda fala disso. Uma vez foi o meu filho. Também caiu de um banco na cozinha, a mesma coisa que eu. Só que se magoou num dedo, cortou-se. O meu pânico ao ver como ele tinha o dedo, ao pensar como lhe devia doer, a minha aflição quase despropositada. Felizmente não sou de exteriorizar senão ainda mais ridículo ficaria. Fico transida, sem falar, simplesmente num temor enorme.

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E vinha para escrever sobre outra coisa e, afinal, distraí-me e acabei por me perder. Não era de nada disto que eu vinha para falar. Ia contar que, à ida para o campo, íamos a ouvir o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu a falarem da pandemia e das pestes ao longo da história, tema do último livro do Jaime Nogueira Pinto. E falavam de como isto vai mudar a vida e o mundo e do medo com que aprenderemos a viver porque primeiro que esta se extinga muito tempo decorrerá e, a seguir a esta, outra pandemia virá. Aprenderemos a viver com medo do invisível, do mal que nos pode chegar através de um filho, de um neto, de um amigo. E falou de como é desolador o estado da baixa de Lisboa, muitas lojas fechadas, provavelmente definitivamente fechadas. E eu pensei como deve ser frustrante e triste para as pessoas mais velhas que poderiam viver os seus últimos anos mais tranquilamente e agora a terem que andar de máscara, sem a ternura de um beijo ou abraço, longe da companhia dos seus.

À tarde, ao receber o telefonema de um amigo, soube que uns outros tinham tido covid e, mais estranho, soube que uma delas, que teve covid há quatro meses, semanas de sintomas e testes positivos, agora, num teste serológico, soube que não está imune. Foi a outro lugar fazer o mesmo teste, convencida que o primeiro estava errado, e obteve a confirmação: está como se não tivesse tido covid. E fiquei a pensar que esta porcaria desta doença, de facto, tira o tapete a toda a gente. Parece não seguir um padrão e isso mais difícil se torna de gerir. Uma roleta russa. 

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Mas isto das pandemias e dos medos até era para ser de passagem pois a minha ideia era mesmo falar da maravilha dos verdes in heaven. Do perfume do campo. Dos passarinhos e dos seus alegres e inocentes cânticos. Dos cogumelos. E da gata. 

Num blog, a escrita deve ser contida, parca. E eu, sabendo disso, esqueço-me e escrevo desabaladamente, esquecendo-me de que pouca gente deverá ter paciência para estes longos testamentos. Por isso, agora que vejo o comprimento do que já escrevi, não vou poder alongar-me a descrever o encantamento em que por ali andei. Apanhei laranjas e tangerinas, comi algumas, fotografei tudo o que vi, vagueei, maravilhei-me.

A quantidade e variedade de cogumelos continua a deixar-me espantada. Hoje até com uns redondos e peludos, coisa nunca vista, me deparei. Outros, umas bolinhas acastanhadas, compactas, superfície também a querer dar-se ares de felpuda. Outros cor de laranja, ondulados e como se de borracha, outros translúcidos, outro grande, quase azul. Uns grandes, outros minúsculos. Outros aos folhos verdes, como se de bordado inglês às palas. Não sei que terra mágica virou o meu querido e abençoado heaven para dele saírem seres tão extraordinários. Nem sei o significado disto, se é que tem significado. Mas será que, nas grutas, também vivem animais assim, às cores, seres nunca sequer imaginados? Teria graça.

E, de novo, eu a levitar por ali, silenciosa, em estado de êxtase, e ela, esfíngica, a observar-me. 

Aproximei-me, quase emocionada por ela estar ali, parada, a ver-me. Deixou-se estar. Fui-me aproximando, falando com ela. E ela a ver-me. Até que, sem querer desliguei a máquina e, ao voltar a ligar, o som de arranque a fez ir-se embora. É esquiva. Mas sinto-a como um ser superior. 

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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven e acompanham The Lullaby Project pelas mãos de Catrin Finch & Seckou Keita

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Desejo-vos um belo dia de domingo, sem medos.

Saúde.