terça-feira, dezembro 15, 2020

Devagar, despreocupadamente, caminhamos para o fim da luz, para o fim dos tempos?

 



Acho que o mundo está a entrar num caminho estreito. E não sei se, no fim desse caminho estreito, há uma saída.

Não é só isto da pandemia 

(embora também o seja, pois não podemos desvalorizar uma pandemia que faz colapsar a economia em todo o mundo e em que, ao fim de quase um ano, ainda permanece o mistério sobre como funciona este vírus, transmutando-se e escolhendo uns e não outros e matando uns e não outros), 

é também tudo o que aí vem com as alterações climáticas e, não menos grave, o que está por vir com a dependência total de tecnologias omnipresentes, ubíquas, baratas, ao alcance de todos... e não apenas desreguladas como impossíveis de regular.

Esta segunda-feira vários serviços da Google estiveram em baixo. O impacto que isto tem na vida de muita gente é incalculável. Claro que grande parte das pessoas nem pára para pensar que tem parte da sua vida alojada e processada em computadores longínquos, geridos por gente que ninguém sabe quem é... e que, ao não pagar um tostão por nada disso, dificilmente pode algum dia reclamar o que quer que seja. Mesmo que o queira fazer vai ter a maior dificuldade em saber a quem se dirigir e de que forma o poderia fazer.

E não estou a falar só de gmail, hangouts, blogger, youtube, etc, que, para muita gente não é apenas coisa lúdica mas sim profissional, social, familiar. Estou a falar também de uma miríade de equipamentos, dispositivos e toda a espécie de objectos que, sem nos apercebermos, estão ligados sabe-se lá onde. Um carro que recebe actualizações automáticas e que está permanentemente a ser localizado para poder ter o gps a funcionar ou para receber informações do trânsito, por exemplo. E nem falo dos telemóveis: ligados a tudo, apps a ferver ligadas a bancos, a fnacs e bertrands, a supermercados, a cartões de tudo e mais alguma coisa, a todo o lado. Falo de fábricas, falo da alimentação eléctrica das cidades, falo de painéis de sinalização de autoestradas, falo de tudo. Tudo automatizado, tudo ligado a tudo... e cada vez mais. A internet das coisas. Tudo automatizado, tudo com inteligência, tudo com algoritmos. Machine learning. Ah pois é. E tudo tem o seu inegável lado bom, óptimo. Mas está à mão de semear para quem o queira usar para o mal. E o pior é que não há como controlar. Por perversidade, por brincadeira, por pirraça, por dinheiro, por descaso... tudo está aí à disposição de quem queira fazer o que lhe apetecer como, por exemplo, deixar um país às escuras, fazer os carros irem uns de encontro aos outros, atirar com fábricas pelos ares. E não digo mais para não dar ideias.

Não falo apenas de ataques cibernéticos, dos hackers que entram onde não devem muitas vezes a soldo de Estados que praticam ingerência noutros Estados, não falo de espionagem industrial em larga escala, não falo em sabotagem cuidadosamente orquestrada. Não falo porque tudo isto é real, existe, é conhecido. Falo, sim, porque é o que mais preocupa, de quando as máquinas se programarem a elas próprias, de quando os humanos se tornarem redundantes face à fiabilidade dos algoritmos, falo de quando os sistemas ficarem descontrolados e os humanos, indefesos, isolados, sem saberem como sobreviver.

Claro que o Marcelo andar a meter-se onde não deve é uma chatice e um déjà-vu sem os quais passávamos bem, claro que o Marques Mendes ser a alcoviteira do regime é daquelas para as quais já não há paciência, claro que haver um populistazeco de meia tigela a subir nas sondagens e levado ao colo pelo PSD e pela comunicação social é uma daquelas chatices que corre o risco de vir a acabar mal, claro que o meu País ter um serviço onde se pratica a tortura e o desrespeito pela dignidade e pela vida humana é insuportável, inaceitável e, se isso acontece, alguma coisa de muito grave se passa e, mais do que apenas pedir a demissão do ministro, deve haver garantia de que coisas assim jamais poderão voltar a acontecer (exames psicológicos e rastreio de álcool e drogas aos agentes, vigilância dupla, não sei), claro que, nesta altura, os professores andarem a falar em greve pela reposição do tempo de serviço é deslocado e despropositado, claro que tudo isso e muito, muito mais é verdade. 

Mas a gravidade e a urgência do que está por vir é de uma outra magnitude, ultrapassa o circunstancial. 

O tsunami múltiplo de desaires que está à espreita é global (tal como esta pandemia é avassaladoramente global), incontrolável e com tudo para ser dramático, talvez de consequências irreversíveis. E para isso ninguém parece estar atento. E o pior é que, mesmo que, aos poucos, alguns comecem a estar atentos, não sei se se vai a tempo. E quando falo em 'alguns' não falo em mim ou nuns quantos cidadãos mais preocupados e mais informados que eu. Estarmos ou não estarmos atentos e apreensivos é igual ao litro, não dá em nada. 

Falo, sim, que deveria haver uma urgência política reconhecida como a grande prioridade do mundo, falo numa espécie de abalo colectivo de tipo 'pára tudo!' que leve os Estados a encarem de frente, muito a  sério, os riscos e darem ordem expressa para que todas as baterias lhes sejam apontadas. 

E mais do que isso: um travão às quatro rodas, repensar tudo, criar mecanismos de não dependência absoluta das tecnologias. 

Mas não sei se vamos a tempo. 

O tempo de reacção política é um tempo lento, feito de cautelosas diplomacias, de demoradas negociações, de concessões, de sucessivos nivelamentos por baixo. E o tempo da tecnologia é o oposto, é o tempo do imediato, o tempo de quem age por si, o tempo de quem tem todos os meios à disposição, a baixo custo, o tempo de quem age por gozo ou por malvadez ou por mercenarismo ou por ambição, sem freios. De um lado está a malta do sistema, os totós que se acham o máximo e que não vêem um palmo à frente do nariz querendo apenas zelar pelos interesses mais próximos. Do outro estão os serviços de inteligência, os bandidos, os jogadores, os aventureiros, os novos piratas, os que desconhecem as leis ou conceitos tão abstractos como o bem ou o mal. 

Não sei se vamos a tempo.

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E, assim sendo, com estas preocupações em mente e com um dia cheio de manobras para pôr uma máquina em movimento, pouca disponibilidade física e mental me sobrou para ficções ou ilusões.

Cirandei pelo jardim mas pouco, fotografei, tentei que a cor das flores animasse o dia tão cinzento, tão escuro (tal como agora o faço, incluindo-as para que o post não fique demasiado sombrio), observei pela janela, enquanto falava ao telefone, os pequenos pássaros, tão frágeis, aparentemente tão despreocupados. Ao fim do dia estive a ler Adélia Prado, uma lufada de ar fresco. A cada frase espanto-me, surpreendida pela graça, pela irreverência da escolha das palavras, pela leveza dos pensamentos que dançam tão inocentemente sobre assuntos tão íntimos. Gosto muito. Gostava de ser capaz de decorar para agora, aqui, sem consulta, vos contar sobre algumas passagens -- mas não sou capaz e, ao mesmo tempo, não o tento. Sempre achei que quem decora muito e sabe tudo dificilmente se deixa encantar pelo que, de novo, for descobrindo. Esforço-me por preservar a minha ignorância e desprendimento.

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Desejo-vos um dia feliz.
Saúde. Boa disposição.

6 comentários:

Paulo B disse...

Um abraço de esperança deste lado: https://youtu.be/7C9GKdPdu_c

Boa semana

Paulo B disse...

Ps: e uma sugestão de um bom documentário sobre "o estado a que chegamos". Da política à tecnologia. Da paz à guerra. E vice versa.
https://www.imdb.com/title/tt6156350/

Maria Dolores Garrido disse...

Gostei muito da variedade e articulação de temas e preocupações tão atuais. E muito também da abertura ao encantamento que surge, naturalmente, do que nos rodeia e que as fotos sugerem tão bem.
M
olamariana.blogspot.com

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

As coisas extraordinárias que conhece... E sempre oportunas. Do HyperNormalisation apenas ainda vi bocadinhos, é muito grande. A ver se o vejo no fim de semana.

Obrigada, Paulo. Um abraço (com uma esperança muito relativa...) para agradecer a esperança do seu abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria Dolores,

Muito obrigada pela visita e pela gentileza das palavras.

Também já fui espreitar o seu blog e pareceu-me bem simpático, muito espontâneo.

Volte sempre. Dias felizes.

Maria Dolores Garrido disse...

Voltarei, sim, porque gostei do 'Jeito Manso' como fala do mundo, reparando em tantas dimensões nada mansas e noutras que, felizmente, (ainda) o são.

Volte também e ficarei contente.

Um dia de sol e feliz.

M
olamariana.blogspot.com