segunda-feira, dezembro 21, 2020

Um domingo normal
[E, se quiserem, sintam-se à vontade para encherem o normal de aspas]

 


A salinha onde habitualmente nos sentamos à noite a ver televisão foi, noutra vida, o quarto de um dos filhos dos anteriores proprietários. Tinha, pois, as tomadas adequadas a essas funções. Agora, com dois sofás, um móvel com uma televisão e box, candeeiros de pé, computador, etc, as tomadas eram poucas e situadas onde menos dava jeito. No piso de cima a que chamo sótão mas que, na verdade, é uma sala muito grande, para além de outros compartimentos, havia a mesma questão: ao lado de um sofá tenho uma mesa com um candeeiro e, para o ligar, só com uma extensão. Por isso, este domingo esteve cá um senhor a colocar, nessas divisões, as tomadas necessárias. Agora já não há fios à vista já que há tomadas perto do que é preciso. 

Entretanto, de manhã, chegou parte da família: vieram buscar as bicicletas e capacetes e, ala moço, todos a pedalar pelas redondezas. Quando chegaram do passeio, uns quilómetros, as crianças estavam com fome, perguntaram pelo lanche. Pãozinho morno com ovo mexido, servido na rua. A seguir, fomos até à horta e comeram tangerinas directamente da árvore, já bem docinhas. E, porque já eram quase horas, lá se foram.

Como o senhor ainda continuava, fui para a divisão onde está a biblioteca de língua portuguesa que uso como meu poiso para as reuniões pois é num canto da casa que é mais isolado e onde posso estar sossegada, falando sem incomodar e sem ser incomodada pelo meu parceiro de teletrabalho. E, então, pus-me a magicar. Desde sempre tive a ideia de colocar a chaise-longue sob a janela, abaixo do parapeito que é baixo, e a pequena secretária num canto ao fundo. E sempre estive aí lindamente instalada até que os dias começaram a ficar mais pequenos. Essa divisão está virada a norte o que, nesta altura do ano, a torna escura. Por isso, a partir para aí das quatro e tal da tarde tenho tido que estar de candeeiro aceso. Então, hoje não fui de modas: abdiquei da bela ideia da chaise longue junto à janela e, aí, mesmo de frente e encostada à janela, está agora a mesinha de trabalho. E a chaise longue foi para a parede entre a estante a e a outra parede. Agora escrevo mesmo à janela, vendo as flores de perto, cheia de boa luz. Se estiver com a janela aberta, se calhar sentirei o perfume das flores. Fiquei mesmo contente com esta nova disposição das coisas.

Depois do senhor sair, limpámos o chão de todo o lado por onde ele andou, desinfectámos tudo, deixámos estar a casa a arejar. 

Depois fui pôr a roupa na máquina. Já passava bem da uma e tal quando fui para a cozinha fazer o almoço. Fiz lombo de atum fresco de cebolada, acompanhado de arroz basmati aromatizado com uma folha de louro e um fio de azeite.

A seguir, estendemos a roupa e, por incrível que possa parecer, fomos outra vez ao supermercado. 

É o nosso contacto mais assíduo com o que nos sobrou da civilização. É pequeno, este, tem sempre pouca gente. Gostamos de lá ir. E só isto dá para ver ao que isto chegou, quão fundo batemos. É que, não sei se estão a ver, ambos detestávamos ir ao supermercado... Mas, enfim, adiante. 

Não apenas queríamos comprar já mantimentos para a ceia e para o dia de natal como, no outro dia, tinha lá visto, na entrada, um ficus benjamina já grandinho e a bom preço e que, por esquecimento, não trouxe. Explico porquê: em frente da cozinha há um pequeno pátio e é aí que está o estendal. Esse pátio é limitado, na parte paralela à rua, por uma meia parede de vidro e, em tempos, era aberto para o jardim. Como quem cá morava tinha gatos, para eles não fugirem, colocaram uma espécie de grelha alta, em metal branco, à laia de porta. Aquilo assim aberto até dá jeito: por exemplo, se estou na cozinha ou no jardim e tocam à campainha, posso ver, por ali, quem está ao portão. Mas tem o inconveniente de, se tenho roupa estendida, se ver um bocado quando se passa na rua. Não gosto. Então pensei em pôr um vaso grande, com uma planta que cresça bem, como um ficus, do lado de fora da grelha, no jardim. E assim foi. Trouxemo-lo. Depois fomos ao viveiro comprar um vaso. Como ando há séculos com vontade de ter uma taça de suculentas e havia lá uns vasinhos minúsculos muito baratos trouxe quatro e uma taça. 

Quando chegámos a casa, foi disso que fomos tratar. Fomos buscar terra escura e boa ao fundo da horta, coisa de que gosto muito, mexer na terra húmida e macia é para mim um prazer. Mudei-as dos vasos onde estavam para os novos, ajeitei-as. Fiquei toda contente. 

Como no sábado à noite tinha feito sopa e uns cuscus mediterrânicos a acompanharem frango estufado e tinha sobrado, e do almoço também tinha sobrado, estava livre de fazer jantar -- o que me faz sempre sentir quase de férias. 

Fomos, então, fazer a nossa caminhada. Já estava a fazer-se de noite e, a meio do passeio, já estava noite feita. Caminhar por aqui à noite dá-nos uma outra dimensão do lugar. As casas parecem diferentes. Sempre gostei de passear à noite -- por vários motivos e um deles tem a ver com a visão exterior da intimidade da casa dos outros. Na volta tenho um certo espírito de voyeuse... Como já aqui o contei, por estas bandas, grande parte das casas tem grandes janelas ou painéis de vidro que ninguém se preocupa em cobrir. De noite, com as luzes acesas lá dentro, vi várias árvores de natal gigantes, lindas. E vêem-se confortáveis salas com belos candeeiros. Por vezes vêem-se as pessoas lá dentro. Algumas casas têm iluminações no jardim. Gosto de ver. Se não estivesse tanto frio, se os cães não ladrassem tanto mal alguém se aproxima dos seus limites territoriais, se não pudesse prestar-se a confusões, acho que gostaria de andar de binóculos e máquina fotográfica a ver, a registar, a imaginar quem são e como é a vida daquelas pessoas. 

Quando chegámos a casa, estava a vizinha do lado a cirandar na sua cozinha. Estava confortavelmente vestida, com uma roupa confortável, casaco de capuz, o seu cabelo comprido espalhado pelas costas. O meu marido disse: não olhes. Mas era impossível não ver. É jovem, bonita, simpática e, pelos vistos, não se importa que a vejamos a andar pela casa.

Ao entrar, acendemos o candeeiro de pé que o meu marido se lembrou de colocar junto à entrada, ao pé de um jarrão natalício -- tem lá dentro umas as hastes iluminadas e, na base, ramos de pinheiro, camélias e umas pinhas --, e apontado à aguarela que está por cima. A luz é amarela, suave, fica o ambiente muito aconchegante. 

Pequenas coisas assim agradam-me: a luz suave num recanto da casa, um jardim iluminado numa rua envolta em noite, uma bola de natal rodopiando na aragem nocturna, suspensa num arbusto, o perfume dos cedros à noite quando passo junto às vedações, uma laranja pesada de sumo, fria, doce, uma fatia de diospiro doce e sumarento com uma fatia fina de queijo da serra em cima, um chá quente e saboroso, o sorriso, a voz, as brincadeiras das crianças. 

E, assim, começa-me uma nova semana. No trabalho, a mudança divulgada, a máquina em movimento. Em casa, o natal que ainda não consegui bem perceber como vai ser. Em casa de portas e janelas abertas? Na rua? Tão atípico. Tudo atípico.

Não sei como sairemos disto. Talvez consigamos voltar a ser parecidos com o que éramos antes. Talvez pareça um ano de hibernação. Talvez venhamos a pensar com saudade nestes tempos de hibernação. Sei lá. 


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As fotografias foram feitas cá por casa e fazem-se acompanhar pelos The Paper Kites a interpretar Climb On Your Tears

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

4 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

É curiosa a UJM... Também, eu 😆😆
Aqui com os meus vizinhos da frente é parece quase a iluminação camarária. Depois mando-lhe um vídeo que gravei para ver se se conseguia ouvir o mar e filmei aqui à frente.

Uma rica semana natalícia.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Eu ouvi e vi o que enviou no outro dia. Apanhou-me foi num destes dias em que tenho trabalhado até tarde (e, no intervalo desato a dormir...) e não consegui agradecer. Ouve-se, sim, o som do mar, um som fantástico.

Quando estou no campo, como a autoestrada não passa muito longe, se o vento estava daquele lado, ouvia-se um rugido ao longe, quase parecia o mar. Com a pandemia, houve redução de tráfego e já é apenas um rumorejar muito vago.

Sorte a sua a de morar num lugar tão bonito e, ainda por cima, tão perto do mar.

Dias felizes e, em especial, um feliz Natal.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ora UJM, sem problema, ainda bem conseguiu ouvir.

Aqui há várias opções consoante a direção do ar, para além do mar, temos os comboios, as buzinas dos faróis de São Martinho, o trânsito da variante Atlântica Caldas-Foz ou os sons da cidade.

Uma bela semana de Natal.

Lucília disse...

Na Praia da Granja, tenho o mar, a praia, os comboios, as dunas com algumas árvores e uma avenida.
Às vezes ouço o barulho das ondas e os comboios.
A paisagem está sempre a mudar.
Já prometi que um dia me vou sentar e fotografar todos os comboios com o mar e algumas árvores como fundo.


Feliz Natal e bom Ano Novo

PS: desde há muito que não a visitava, mas não me esqueci de si. Aprecio muito a sua escrita.