Voltei ao escritório. Tinham-me dito que se concentravam agora por lá uns quantos que, por aversão à mudança ou receio do que lhes vai acontecer, se entretinham a armar confusão, lançando boatos e descrença. Por isso, achei que tinha que lá ir para ver como reagiam ao ver-me, para ver se os tinham no sítio e viriam dizer-me alguma coisa. Nada. Surpreendidos por me verem, sorriram, desejaram-me bom ano, e, quando lhes perguntei como estavam e como estavam as coisas a ir, disseram que 'tudo bem'. É sempre assim: fanfarrões destes não só não os têm no sítio como os devem ter pequeninos e rosados como little, little pink marshmello.
Só não digo o que vou fazer para a semana não vá algum Leitor infiltrado dar com a língua nos dentes, deixando-os de sobreaviso. Mas, aí, indo à toca do lobo, sempre quero ver.
Mas, então, ao ir e ao vir, circulei pela nossa belle Lisbonne, por alguns dos lugares mais lindos de Lisboa, la magnifique. Mas, infelizmente, ao contrário do que gosto mais, ir a ouvir jazz, janela aberta, devagar, quer ao ir quer ao vir, vinha com telefonemas complicados que me impediram de me entregar ao momento. Acho muito mal empregue o tempo -- que gostava de usar a sentir a luz e a beleza da cidade -- quando não consigo prestar-lhe atenção, concentrada que vou ao telefone.
Pensei: quando lá chegar, abro a janela e fico a olhar lá para fora, vista melhor é difícil haver. Mas ainda ia no corredor e já tinha à minha espera as três pessoas com quem tinha combinado lá nos encontrarmos. Portanto, vieram comigo até ao gabinete, abri a janela, coloquei a capa, a carteira e o telemóvel em cima da secretária e, até que saí, não consegui estar um minuto sozinha. De cada vez que recebia um telefonema, abri de par em par as janelas e pus-me a falar sentindo o ar da rua mas os telefonemas eram digamos que absorventes e não consegui desfrutar a paisagem. Outro desperdício.
Entretanto, confirmei aquilo que já constatei mil vezes antes: a minha produtividade é infinitamente superior quando estou em casa. Mas, em termos sociais e humanos, não se compara. Havendo um vazio, os mais ávidos de protagonismo, ocupam-no e o resultado não se coaduna com o que se pretende. Claro que os que estão ali são uma insignificante e ínfima minoria da totalidade de pessoas que trabalha na empresa mas, estando juntos, conseguem armar confusão e transmiti-la para os que estão noutros locais. Mas há também o lado humano, aquilo das pessoas virem ter comigo e contarem-me o que as preocupa a nível pessoal. Parece que estão naquele ponto em que rebentarão se não tiverem com quem falar. Uma colega falou da sua mãe, a situação em que ficou na sequência de uma queda. São daqueles dramas pessoais que se abatem na vida das famílias, que as atinge profundamente, deixando-as sem saber o que fazer, impotentes, sentindo que não poderão, de manheira nenhuma, estar à altura das necessidades, receando pelo destino dos seus mais velhos. Falava tentando conter as lágrimas. Com máscara, apenas os olhos lacrimosos à vista. Isto, de me procurarem para falar da sua vida, não acontece quando estamos fisicamente longe uns dos outros. Quando estamos remotos, telefona-se a outra pessoa ou marca-se uma conversa se houver algumas coisas de trabalho que o justifiquem.
Entretanto, enquanto escrevo, estou a ver o interessante documentário sobre Tomaz de Figueiredo feito pela neta. Tão íntimo, tão tocante. A vida de uma pessoa olhada, muitos anos depois, por uma neta que não o conheceu ou por uma das filhas que, na altura, não o compreendeu mas que, agora, muitos anos volvidos, acha que, se fosse hoje, com a vida que entretanto viveu e que a fez amadurecer, talvez compreendesse. Fiquei a pensar: quanto mais amadurecemos, mais tolerantes nos tornamos. Sabemos as mil cambiantes da vida, sabemos que o que está à vista é um pequeno nada face ao que calamos, sabemos que há mil razões que explicam comportamentos que, quando vistos superficialmente, nos parecem estranhos. Em contrapartida, reconhecemos à légua aquelas situações que não vão dar a nada e que mais vale cortar pela raiz. Mudamos, aprendemos.
No outro dia, vi um programa em que Lesley Stahl entrevistava pessoas em holograma, algumas das quais já mortas. Coisas estranhas. Um homem de idade, ainda vivo, assistia à entrevista com o seu holograma em mais novo. Cantavam ao mesmo tempo. E eu, vendo aquilo, pensei que não queria ver era mais nada. Do pouco que consegui ver, percebi que há uma empresa que entrevista pessoas para depois as fazer em holograma de corpo inteiro e, mais tarde, a pedido, pôr os mortos a fazerem de vivos ou os velhos a fazerem de novos. Estranhíssimo. Para quê? Queremos um mundo habitado por hologramas? Qual a substância de um holograma?
Mas atravessamos tempos disparatados, vamo-nos acomodando à estranheza que, antes, nos causaria repulsa.
Tudo muda. As circunstâncias vão derrapando, nós derrapamos em cima delas.
Enfim. Adiante.
Havia um tempo em que eu dizia que era urbana. Sempre gostei de campo e sempre tive vontade de ter uma casa no campo mas achava que viver mesmo tinha que ser na cidade, incógnita no meio de multidões. A grande cidade era essa a minha zona de conforto. O campo era uma evasão. Agora passo bem sem a grande cidade. Gosto mas como evasão. Agora é o contacto com a natureza, o silêncio, o ar puro que me cativam. Não vivo agora no campo mas é um local tão resguardado e tão integrado na natureza que é quase como se fosse.
Quando vou fazer a minha caminhada diária, se me cruzo com alguém, as pessoas cumprimentam-me. Ao princípio ficava admirada. Na cidade, é tanta a gente com que nos cruzamos que ficaríamos com a boca seca se andássemos a cumprimentar toda a gente. Aqui todos se cumprimentam com ar afável. Noutros tempos eu acharia isso uma invasão do meu espaço. Agora, não, agora também gosto de cumprimentar os outros. Antes, na cidade, gostava de ver em que paravam as modas, gostava de ver toilettes, lingerie, jóias, perfumes. Agora não quero saber de nada disso, já tenho que chegue e sobre até ter cento e cinquenta anos. Agora nas cidades gosto de olhar o ambiente, a paisagem, as flores, as árvores. E quando agora vou às compras, ao supermercado ou ao leroy, por exemplo, só me apetece ir ver que flores há. Tenho que me conter. No outro dia fomos lá para comprar um carrinho de mão, trouxe uma bromelia. Linda. Gostava de ter flores raras, gostava que os pássaros ficassem malucos de alegria como se vissem carne fresca no pedaço.
Mudamos com o tempo.
Agora estou aqui a pensar numa coisa: poderiam gravar-me agora a falar, por exemplo, com a minha filha e ela a falar naquela vez que eu apanhei um susto de morte pensando que, no meio do mato, estava a ser perseguida por um cavalo quando, afinal, era o meu filho a correr e a fazer uns estalidos lá dele e, creio, sem ter como intenção matar-me de medo. Sempre que ela, que estava em cima a assistir ao meu pânico, descreve a situação e me imita eu choro a rir. E tenho a certeza de que, se daqui por uns anos, me pusessem frente ao meu holograma, desfeita em lágrimas de tanto me rir, eu ia voltar a rir que nem uma perdida. Mas, enfim, valeria a pena o investimento? Quem me diz que gostaria de me ver setenta anos antes?
Adiante, adiante.
Deixem que partilhe convosco mais um daqueles vídeos com que o meu amigo algoritmo me presenteia. Gosto sempre de ver. A paz que se antevê nestes modos de viver chega até aqui.
Inspired By Nature
E mais este aqui abaixo que nos deixa alguns tópicos para reflexão
How Working Remotely Will Change More Than Work
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Pinturas de Henri Rousseau ao som de If I Go, I'm Goin - Gregory Alan Isakov with Aoife O'Donovan & Chris Thile
Não sei se o título do post tem alguma coisa a ver com alguma coisa mas, ao escrevê-lo, achei que sim. Cenas.
Quando, daqui por um ano, se fizer a resenha do mais relevante em 2021 haverá muito a dizer: a eficácia ou não da vacina, o sucesso ou não da operação logística relacionada com o seu fabrico, armazenagem e distribuição, a sustentabilidade ou não dos regimes democráticos face à inquietante evolução do populismo e do desvario popular, a absurda reacção de Trump face à sua derrota, a terrível mortandade entre os mais velhos, o declínio de vários sectores da economia, alguns deles de forma irreversível. Também haverá coisas boas a reportar, caminhos que começaram a desenhar-se. Mas, neste momento, qualquer futurologia parecerá deslocada. Acontecem agora coisas tão surreais que a normalidade começa a parecer uma ficção. A invasão do Capitólio por toda a espécie de grunhos que apoiam Trump vai para além de qualquer possível previsão. Os modelos matemáticos que se usam para fazer previsões assentam no estudo de padrões. Ora num mundo caótico em que os principais dirigentes são destituídos de princípios é impossível antever o que pode vir a acontecer. A aleatoriedade é total, fruto da medicação que tomam ou da ausência de medicação em situações em que ela era imprescindível.
E se, a nível pessoal, 2020 foi para mim um ano emocionalmente intenso, com sustos, medos, uma perda, mas também contacto profundo com a natureza, ainda maior estreitamento de relações com os mais próximos, a verdade é que foi também um ano de várias mudanças, todas profundas. Não sei o que o 2021 me reserva. Se consultar os astros vejo desafios, conquistas, poder. Coisas assim. A habitual falta de sossego. E tudo efémero.
Mas não interessa o que se pensa que pode ser, o que interessa é o que vamos fazer para que seja como gostaríamos que fosse. E o que passou já passou e nem vale a pena chorar sobre leite derramado, o que vale a pena é perceber que o que aconteceu aconteceu porque estávamos na rota para que tivesse acontecido e que, se não mudarmos de rota, os erros voltarão a acontecer.
Hoje não consigo dizer muito mais: continuo com dores, continuo com frio, continuo com sono. Continuo a trabalhar como se estivesse bem mas não me sinto bem. The show must go on. Não sou insubstituível mas as reuniões que tenho que ter neste arranque de ano estão no caminho crítico para que as coisas tenham maior probabilidade de correrem bem.
Antes de ir descansar partilho dois vídeos com factos de que não iremos esquecer-nos. Para memória futura.
Estou a ver um programa sobre o João Cutileiro. Mais um que se foi. Dirão os mais sensatos que é a lei da vida. E é. Ninguém cá fica. Acontece que, para quem está nessas idades e ainda tem o gosto pela vida, essa lei é cruel. Se olharmos com distanciamento, e é inteligente que o façamos, achamos que nem vale a pena ter pena lamentar quando os velhos se vão. E esquecemo-nos que, se vivermos até essa idade, esses velhos seremos nós, um dia. E, um dia, talvez olhemos a vida com pena que tenha decorrido tão depressa e que ainda tenhamos tanta coisa para fazer, tantas palavras por dizer.
A vida passa e as oportunidades também.
Sempre gostei muito de escultura e, se tivesse as minhas fotografias organizadas, poderia aqui mostrar as fotografias que, ao longo do tempo, fui fazendo a obras de Cutileiro. Por isso, vou ter que usar fotos obtidas na net.
Não sei se ele estava fatigado e com vontade de descansar ou se ainda tinhas trabalhos em curso ou em mente. Não sei se ele percebeu o que ia acontecer e teve pena ou se não deu por isso ou, se deu, se se sentiu puxado pela tal luz branca, indo, feliz, nessa direcção. Sei é que eu tenho pena.
Convivi de perto com o lento caminhar para a morte e sei como pode ser doloroso. Depois de ter ficado diminuído pelo avc, durante algum tempo havia desespero no meu pai. Impaciência. Queria recuperar os seus bons tempos e via que isso não ia acontecer. Antes pensava ser um homem saudável. Em boa forma física, aspecto jovem, não tinha doenças. Contava, com orgulho, como a sua vida saudável o trazia tão bem. Explicava a alimentação que seguia -- muito peixe, pouco sal, muitas saladas, muita fruta -- explicava os longos passeios no campo ou na praia. Nunca lhe ocorreu que um dia poderia acontecer-lhe o que lhe aconteceu. Mas aconteceu: nesse dia tudo se foi. Não valorizou as ameaças anteriores. Não ficou com medo. Achava-se sempre capaz de superar essas ameaças. Só que aquela, tão grande que quase o levou, venceu-o a ele. Mas levou doze anos a levar-lhe a melhor. Perdeu o andar e voltou a andar, perdeu a fala, recuperou a fala, perdeu a independência e voltou a recuperá-la. Mas nunca completamente. E sempre de uma maneira que se sentia ser efémera. Quando parecia estar melhor e a progredir no sentido da recuperação, apanhava uma pneumonia, depois uma bactéria hospitalar, depois voltava a perder o andar, a piorar. Ou, uma vez, no dia um do ano, caiu em casa, partiu uma perna, teve que ser operado. Não voltou a andar. Sempre assim. Desilusões sucessivas para ele, para nós.
As sequelas foram tão extensas e profundas que teve que passar a estar fortemente medicado. Alguns medicamentos tinham efeitos secundários que confundíamos com o seu próprio e intrínseco estado físico. Se estava agitado, enervado, não sabíamos se era alguma coisa nele ou de algum medicamento. Se estava ausente, não sabíamos se tinha tido outro acidente ou se estava sedado em excesso. Muitas vezes, resolvíamos retirar parte da dosagem, aos poucos, para ver se voltava a estar mais normal. Mas logo notávamos que isso tinha consequências que se calhar eram pior para ele. O neurologista dizia: vão aferindo, tentando acertar na melhor dose consoante ele esteja, não há outra maneira. Era muito difícil, nunca sabíamos o que era melhor para ele. E ele, antes tão orgulhosamente independente, não podia ter uma palavra a dizer sobre a sua própria condição.
Uma vez disse à minha mãe: 'Nós temos uma filha?'. A minha mãe disse-lhe que sim, disse-lhe o meu nome. Continha as lágrimas ao contar-me isso. Fiz de conta que a mim não me fazia impressão para que ela não sofresse ainda mais. No fim, quando não via, mal ouvia, e já praticamente não conseguia falar, quando eu chegava perto dele, lhe punha a mão no ombro e o beijava. a minha mãe perguntava-lhe: 'sabes quem é?' e ele esforçava-se por dizer o meu nome. Era um esforço enorme para dizer apenas uma palavra.
Mais do que uma vez perguntou à minha mãe se já tinha morrido. A minha mãe assustava-se, dizia que não, que ideia, que não dissesse isso. Não percebíamos o que se passava na sua cabeça para colocar a hipótese de já ter morrido. Uma vez também perguntou se estava dentro do caixão. Muitas vezes não sabia onde estava e dizia que queria ir para casa. E, estando acamado, frequentemente, enquanto falava, gritava que a minha mãe ou a senhora que a ajudava se despachassem, dizia que queria ir para a cama para dormir. As vezes que dizia que queria morrer não têm conta. Muitas vezes, quando eu chegava perto dele e lhe perguntava 'Então, pai, como está?' ele respondia -- por fim, com a voz quase impossível de se perceber -- 'Quero morrer'. 'Que coisa, pai, não diga isso'. Mas percebia muito bem esse seu desabafo ou esse seu apelo. A degradação do seu estado físico foi progressiva, lenta, dolorosa. Uma pessoa antes com tanta vitalidade e tão orgulhosa ficou totalmente à mercê de outros: tinha que ser levantado, lavado, alimentado, aspirado. Não sei no que pensava quando estava mais lúcido. Sabemos, isso sim, que manteve até ao fim, pelo menos enquanto conseguia exprimir-se e salvo horríveis lapsos como os que acima referi, uma memória surpreendente. Mas parece que apenas reagia se chamássemos por ele e lhe fizéssemos perguntas. Senão, mantinha-se ausente.
Quando morreu, no meu íntimo, senti que o meu pai tinha, enfim, descansado, que não merecia ter sofrido tanto. O que senti como injusto foi o avc que teve há doze anos e o lento declínio a que assistiu aprisionado no seu corpo. Lembro-me de a minha mãe ter dito, no dia em que teve o avc, como um profundo lamento: 'acabou-se...'. E, quando lhe perguntei ao que é que tinha acabado, esclareceu: 'a vida que tínhamos'. A minha avó materna tinha morrido pouco antes e, finalmente sem encargos nem preocupações, os planos deles eram passear mais, iam de férias para o algarve no verão, iam para as beiras na primavera, iam para perto de nós com maior frequência, estavam a imaginar uma vida de qualidade. E uma rasteira assim, indecente, roubou-lhes doze anos de vida. Quando alguém sofre um tal sofrimento, é toda a família que o sofre, em especial os que lhe estão mais próximos.
Enfim.
Moral da história: não guardar para depois o que agora pode acontecer mas amanhã não sabemos. Não guardar decisões, palavras, afectos. Se podemos fazer ou dizer hoje, é hoje mesmo que o deveremos fazer ou dizer. Quanto ao que vai acontecer amanhã, isso nunca o sabemos. Amanhã pode ser tarde de mais.
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Gosto do vídeo abaixo. Pensei dar o seu nome a este post, a thing about life. Mas seria pretensioso. Fica antes 'uma coisinha sobre a vida' porque não consigo falar sobre a Vida, a vida em geral, só o consigo sobre a vidinha, em especial sobre a minha já que é sobre ela que falo com maior à vontade, sem recear tocar em pontos alheios, pontos privados onde não tenho o direito de tocar.
A primeira vez que soube de alguém concreto com demência foi com a mãe de um colega. Ele era daqueles solteirões ingénuos, desejosos de arranjar namorada, mas tão explícito nessa vontade que se tornava alvo fácil de chacota. As mulheres gostam de perceber que os homens têm uma certa malandrice e que já tiveram alguma vida. Ora, aparecer-lhes um homem com cerca de quarenta anos e que, pela sofreguidão que demonstrava, mais parecia um adolescente virgem é coisa que uma mulher dificilmente pode levar a sério.
Na altura eu tinha uma colega, a quem tinha levado para lá para me substituir durante a baixa de parto. Tinha-a conhecido na faculdade e tínhamos ficado amigas. Muito bonita, muito independente, muito maliciosa, ultra moderna, super gozona. Provocava-o só para se divertir com os inocentes entusiasmos dele. Eu casada, na altura já com a minha filha, pedia-lhe que não exagerasse pois ele não percebia, caía em todas as esparrelas, estava como se estivesse apaixonado, sem perceber que uma mulher como ela jamais -- em tempo algum --poderia interessar-se por um inocente carente e totó como ele.
Vivia com a mãe, ele, uma senhora viúva, professora reformada, tinha sido uma mãe tardia. Falava dela sempre com cuidado e ternura e percebia-se que a mãe deveria querer que o filho se casasse e percebia-se que, até para dar esse gosto à mãe, ele não apenas tinha vontade de namorar como queria que fosse coisa 'a sério' para dar essa alegria à mãe.
Mais tarde, o namorado de longa data dela, um homem divorciado, mais velho que ela, com filhos adolescentes, com quem nunca vi qualquer afinidade nem grande interesse mútuo, saiu da hesitação em que andava há uns dois anos e propôs que namorassem mais a sério e casassem. Nunca consegui perceber qual o verdadeiro sentimento dela em relação a ele. Contava-me que andavam com advogados a discutir acordos pré-nupciais. Eu, que me tinha casado, miúda ainda, na desportiva, sem pensar em nada disso, aliás sem sequer saber que coisas dessas existiam, pasmava com tanta discussão para delimitar com o que cada um ficaria se se separassem. Ela tinha um apartamento dela mas ele morava numa grande casa numa zona nobre da cidade para além de que tinha uma outra casa na praia. E devia haver dinheiros, já não me lembro.
No meio disto, destas discussões entre eles, desentendimentos, geralmente aborrecidos um com o outro por estes motivos, entrou um jovem economista, alto, giraço todos os dias, uma simpatia. Arranjava sempre maneira de vir falar connosco: éramos os mais jovens e gostávamos de conversar e de rir. O outro pobre coitado andava pelos cantos a morrer de ciúmes, completamente descartado. Claro está que não tardou que, saindo eu para ir buscar a criança, dar-lhe de mamar e ir tratar da vida doméstica, ela e o jovem colega saíssem dali para beber um copo, depois beber um copo e ir jantar, depois beber um copo, jantar e ir dançar. Ela ia-me contando isso com sorrisos maliciosos, que o colega beijava bem que só visto, que dançava bem que só experimentando. O namorado dela devia andar muito ocupado com advogados e com os filhos adolescentes e a muito bem sucedida vida profissional que o levava a viajar muito, e ela andava naquilo, ocupada a gozar a vida.
Um dia, de manhã, apareceu com ar pesado, quase choroso. 'Então, o que foi?'. Nem precisava de ouvir a resposta mas ela confirmou: 'Aconteceu'. Fiquei admirada com aquele ar tão pesaroso quando estava na cara que tinha que acontecer. Disse-me que não, que não era suposto acontecer e que se sentia muito mal, que não sabia se havia de contar ao namorado. Respondi-lhe que ela parecia querer arranjar pretexto para se afastar do namorado e que aparentemente não gostava dele, que, se calhar, mais valia, simplesmente, dizer-lhe que afinal não gostava dele o suficiente. Desatou a chorar, que gostava, que não sabia porque tinha feito aquilo. Fiquei estupefacta, disse-lhe que me parecia que ela estava a enganar-se. Disse-me que não, que gostava mesmo. Achei extraordinário. Mas desde cedo aprendi que não se deve fazer juízos de valor.
Mais estupefacto ficou o bonitão com ela a cortar relações com ele, sem perceber o que tinha acontecido, que tinha sido uma noite fantástica, não entendia tal reacção.
O outro ingénuo, percebendo que a costa estava livre, voltou a aproximar-se mas só recebeu da parte dela uma grande frieza.
Passado pouco tempo, a minha bela colega demitiu-se. E pouco tempo depois casou-se. E, como expectável, uns quatro ou cinco anos depois, período durante o qual andou a iludir-se relatando viagens, festas e feitos enamorados de ambos e louvando as grandes qualidades dele como se estivesse apaixonada, divorciou-se. Quando me contou, face à minha indiferença, perguntou-me: 'Não dizes nada?'. Só consegui dizer-lhe que não, e mudei de assunto. Desde o início era claro que n,ão eram um para o outro. Não sei como aquele pseudo-romance tinha durado aquele tempo todo pelo que a surpresa era essa, não que tivessem acabado.
Entretanto, tinha entrado uma outra colega, uma mulher grande, gorda, despudorada, desbocada, sempre pronta para uma conversa apimentada, palavrão de criar bicho de permeio. Também pelos quarenta, divorciada, mulher livre, sem receio do que dissessem ou pensassem. Os homens gostavam de provocá-la para verem até onde ela ia e ela nunca desiludia. O outro inocente, sempre a ver se conseguia namorada, não percebia que aquela não era também a mulher certa para ele. Mas o que ela se divertia com o pobre coitado. Ele, uma vez mais, caidinho por ela, autêntico babaca, toda a gente a gozar com ele e ele sem perceber. Ainda me lembro quando ela fez anos, ele a mandar entregar-lhe um ramo de rosas, ela levemente comovida -- mas toda a gente a gozar com ele e ela também, para não desiludir a plateia, e ele, tão tonto, apesar de tudo, a julgar que tinha encontrado a mulher certa. Durante muito tempo ela dizia-me que das poucas coisas que se arrependia na sua vida de excessos era de ter gozado com ele quando ele lhe tinha oferecido as rosas.
Até ao dia em que ele recebeu um telefonema da polícia: a mãe tinha saído de casa, tinha-se perdido, tinham-na levado para uma esquadra porque ela não se lembrava da morada, tinham encontrado na carteira dela o cartão de visita do filho. Ficou espantado, preocupado, saiu a correr.
Nessa tarde, voltou ao trabalho, disse que a mãe tinha ficado em casa, estava bem, não percebia o que se tinha passado. Tenho ideia que não se preocupou muito. Desvalorizou. Achou que toda a gente de vez em quando pode ter um lapso.
Continuava aquela paródia de flirt tardo-adolescente, ela tinha um carro meio velho e ele um desportivo e, volta e meia, um dos carros ficava lá durante a noite -- e nada de mais. Até que um dia, de tarde, ele chegou bem mais tarde. Não morando muito longe do trabalho, ao passo que todos nós almoçávamos uns com os outros nos restaurantes das redondezas, ele ia almoçar a casa com a mãe. Nessa tarde, vinha atordoado. A mãe não tinha feito o almoço e tinha deixado o gás ligado, sem colocar o tacho em cima e, aparentemente, não tinha dado por isso. Não tinha havido almoço e a mãe, que toda a vida tinha tratado escrupulosamente, do seu menino, aparentemente não estava nem aí.
Na altura tenho ideia que pouco ou nada se falava em Alzeihmer. Eu também ficava espantada com aquilo, dizia-lhe que alguma coisa não estava bem. Ele dizia que ela conversava bem, estava bem, de boa saúde, cuidava da casa, que não percebia o que tinha sido aquilo, talvez tivesse adormecido, talvez nada de mais.
Mas, progressivamente, as coisas estranhas iam-se sucedendo. Um dia, quando ele ia a chegar a casa, viu uns sacos de plástico com roupas à porta de casa. Espreitou e pareceu-lhe perceber serem lençóis normais. Quando perguntou à mãe que sacos eram aqueles, ela disse que não sabia mas ele viu as gavetas da cómoda desarranjadas, meio esvaziadas.
A partir daí foi em crescendo. Coisas inexplicáveis, esquecimentos, alheamento. A tristeza dele era comovente. Ajudámos muito, nós, com os nossos conselhos, ouvindo-o, apoiando-o. Mas apoiou-o, sobretudo, ela, a maria-doida. Foi uma irmã para ele. Por fim, saíam juntos para ela ir ajudá-lo no que fosse preciso, e cada vez era preciso mais. Passou a ter que fechar a mãe pois fugia e perdia-se, deitava tudo fora, tinha que deixar a torneira do gás desligada. Andava sempre em pânico. As coisas que ele contava enchiam-no de estranheza e a nós também. Acabou por contratar uma senhora para ficar com a mãe durante o dia. Frequentemente, confundia o filho com o marido, depois com o pai. Por fim, já nada dizia que fizesse qualquer sentido. Já não tinha força nem qualquer autonomia. O declínio foi rápido.
Na altura falava-se de demência. Quando ele falou em Alzeihmer ficámos a saber que havia uma doença com esse nome.
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A prescrição de Sanjay Gupta para combater a demência
The neurosurgeon, CNN commentator and author of "Keep Sharp: Build a Better Brain at Any Age" has long studied the brain and the onset of Alzheimer's. He talks with CBS News chief medical correspondent Dr. Jon LaPook about the recommended steps to a healthier brain, from diet and exercise to the value of sleep and social interaction.
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Pinturas de Paula Rêgo ao som de Spiral · Ólafur Arnalds
Acabou-se este período de descanso. Noutros tempos teria sido bem aproveitado. E, noutros tempos, para mim, aproveitar bem era ir passear ou, pelo menos, ir para o campo. Desta vez, covid, recolher obrigatório e, sobretudo, estado de empenanço agudo, foram dias de desconforto. Hoje estava um pouco melhor das costas, quase sem dor da nuca mas com um torcicolo dos bons. É assim comigo: quando tenho destas, a coisa gosta de brincar comigo. Muda de sítio. Se falo nisto a quem quer que seja, ninguém leva muito a sério. São crises inflamatórias que parece que vão percorrendo os sítios mais frágeis a nível muscular. Ontem a minha filha também se lembrou: 'E tens feito tiro ao arco...'. Exacto. Gosto e gosto de atirar de longe, forço o arco ao máximo para a flecha sair com uma força danada para que, se acertar no alvo, faça aquele som compensador. Se vai à mouche, então, é um prazer. Mas também badminton. Não tanto como o arco mas também. E isto já para não falar em saltar à corda. A minha filha falou que tinha saltado à corda e já não tinha aquela elevação que antes lhe era tão espontânea. E foi exemplificar. A minha nora também foi saltar. E eu, que quando era miúda, passava horas a saltar, para a frente, para trás, cruzado, sozinha, a pares, sei lá..., fui também saltar. Por acaso, à posteriori, ao querer atribuir culpas a alguma coisa em concreto, lembro-me que, na altura, pensei: 'A ver se tanto exercício não dá cabo de mim'. Mas isto é complicado porque gosto imenso de fazer estas coisas e porque o faço sem esforço. Portanto, na altura não me sinto limitada nem me dói nada. Mas o que, pelos vistos, acontece é que, quando tudo se conjuga, alguns músculos estarem mais frágeis porque sujeitos a um esforço adicional, e alguma coisa no meu organismo, talvez o sangue, transportar alguma substância que faz com que seja como veneno sobre os músculos mais frágeis, dá buraco. Portanto, diria eu que o segredo está em descobrir o que é que, de vez em quando, aparece no meu sangue.
E aqui entra o que a minha mãe diz: cortisol (do stress?), ácido úrico por comer queijo a mais? comi carne demais? Não faço ideia.
Das vezes anteriores em que estive assim, se calhou fazer análises a seguir, aparece evidente que o indicador das inflamações ainda está muito acima do valor mas, para além disso, nada de mais. Até o cortisol me aparece normal. Mas isto quando faço análises que, em geral, nunca é nos dias em que estou mal pois é preciso preparação e mais não sei o quê e, além disso, quando estou com dores não tenho qualquer disposição para ir para o médico. Ele diz-me: se não passasse era pior, como passa, menos mal. Pronto. Arruma o assunto. É um prático, o meu médico, não tem qualquer veia de investigador.
Mas, resumindo: ao levantar-me percebi que isto não ia lá só com ben-u-rons e repouso. Portanto, comecei com brufen e hoje já tomei ao almoço e ao jantar e, assim sendo, espero que agora comece a melhorar.
Espera-me uma nova semana das valentes. Não sei o que me passou pela cabeça achar que devia pegar o ano novo pelos cornos, reservando a primeira manhã de trabalho do ano com as três reuniões que mais preferia não fazer, de tal maneira que nem consigo pensar nelas. Não preparei nem vou preparar, vai ser na base do que me ocorrer. E não faço ideia do que vou ter pela frente. Se fosse nos tempos em que saíamos à rua para trabalhar, admito que talvez me passassem com o carro por cima. De tarde, não vai ser tão violento mas vai ser complexo e exigente. E, pior, de seguida. Três de seguida. Reuniões, bem entendido. Estes agendamentos foram quando não me doía nada e na base de o que tem que ser feito, deve ser feito o mais rapidamente possível. Mas, estar a começar o ano com tal programa de festas e o corpo a pedir tréguas, não é das melhores combinações. A ver como chego ao fim do dia.
E é isto, cá estou outra vez a falar das minhas maleitas. Só espero amanhã já nem me lembrar de tal coisa e já ter outro assunto.
Bem. Tinha dito que a ver se hoje, pelo menos, agarrava num livro. E agarrei. E estive a ler. Deitei-me no sofá. Durante o dia nunca consigo deitar-me na cama. No sofá, reclinada entre almofadas, com uma manta de veludo, tigresa, por cima, pus-me a ler 'Acidentes' de Hélia Correia. Na vez anterior que lhe tinha pegado não me convenceu especialmente. Desta vez, encontrei outro sentido, outra toada. Os livros também somos nós, leitores, que os acrescentamos (ou anulamos). Depois adormeci, um daqueles sonos que me tiram do sério. Não percebo de onde vem tanto sono. Em suma: terei que voltar ao livro com idêntica predisposição, passando adiante quando me parece que falta a toada ou quando encontrar alguma palavra que me parece indevida. Penso que este é o segredo quando não gostamos de alguma coisa (ou de alguma pessoa): em vez de persistirmos a tentar compreender e aceitar, não, é de fazer é o oposto: saltar por cima, deixar para trás. A gente às vezes parece que gosta de complicar. Perdemos tempo a tentar salvar o que não tem salvação possível. Mais vale isto: seguir em frente e ignorar o que não nos agrada.
Fiz isso hoje e só me detive naquilo que me soou bem. E, portanto, fiquei mais contente com o que li.
Por exemplo, gostei deste bocado de poema:
Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema
Fala de palavras, ela. E eu, que tanto gosto de palavras, esses misteriosos acasos que se acasalam, gosto de pensar que tudo o que fale de palavras encerra em si parte do mistério e, portanto, leio com atenção a ver se percebo porque gosto tanto delas. Mas não. Aquilo de que a gente gosta mesmo está acima da nossa capacidade de compreensão. Gosta-se por mil motivos, porque é aquilo mesmo de que se gosta mas, sobretudo, gosta-se porque se gosta.
Por exemplo, gosto de ler isto:
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo fome.
mas seria incapaz de explicar porque gosto tal como me parece fútil e inútil querer encontrar explicação para o próprio poema. Não sei como é que se dá aulas de Poesia. Penso que a única maneira razoável é ler. Ler, ouvir ler, deixar que a toada nos invada o corpo. Atribuir significados ou querer enquadrar burocraticamente na gramática normal é abafar a poesia quando o que a poesia precisa é de oxigénio, ar puro. Mas isto, claro, sou eu, leiga, leiga, a falar.
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E, por falar em palavras e em poesia, uma vez mais o Faz uma chave de Eugénio de Andrade, num vídeo muito bonito do Cine Povero
Não vou gastar muito tempo a falar desta coisa que me atacou, direi apenas que pior não estou mas muito melhor ainda não. O dia foi passado, de novo, na indolência a que, se eu quiser ser menos crua, poderia chamar repouso. Calhou à tarde dar o filme da Gaga com o Bradley que a minha filha andava há tempo a dizer que visse. Gostei, boas interpretações. Tínhamos acabado de ver, não sei em que canal lá mais para a frente, o drama dos opiáceos e do álcool entre as figuras do rock americano. Uma decadência a que assusta assistir. Não conhecia a história do filme, imaginava que teria um happy end e, à medida que a trama ia evoluindo, fui percebendo que era muito improvável que o fim feliz fosse possível. Dramas infelizmente reais naquele meio. Naquele meio e se calhar em vários outros meios e, por acaso, até sei de alguns.
Para além disso, toda a tarde me debati com sono, sentindo as pálpebras pesadas; contudo, não sei porquê não consegui dormir. À hora de almoço fui fazer a minha caminhada, mas tal como nos dias anteriores, em versão light, caminhada para quase entrevadas. E a meio da tarde fui para o jardim mas senti que o frio, cortante, não iria ser de grande ajuda. Por isso, apanhei uma laranja, comi-a, sumarenta, doce e gelada, e pouco mais. A minha filha mandou-me receitas de doces com tangerinas e ando com vontade de experimentar. Mas custa-me estar de pé, sem andar, e também não sei se é boa ideia pensar em doces, depois do exagero do Natal.
No inverno, por aqui, impera o silêncio. De vez em quando ouvem-se alguns cães a ladrar: é quando passa algum desconhecido junto à separação entre as casas. Ou ouve-se o grasnido de grandes gralhas negras. Não sei se são gralhas nem se se a sua voz é grasnido ou gralhar mas penso que é capaz de não andar longe. As rolas andam mais desaparecidas e silenciosas. Há passarinhos pequeninos que andam em grupos a debicar a terra sob a relva, para apanhar pequenas minhocas ou, então, sementes invisíveis. Quando passei ao pé da cameleira, que está cheia de camélias, aproximei-me para as cheirar e, para meu espanto, preguei um susto aos pássaros que lá estavam abrigados. Saíram, num sobressalto, as asas a bater na folhagem, voando desconcentradamente.
Mas, portanto, foi isto. Assisti durante um bocado à entrevista do João Adelino Faria à ministra da Justiça e, confesso, gabo a paciência de quem se sujeita a um interrogatório acusatório daqueles, pesporrente, sem querer ouvir as respostas nem perceber o que se passou, apenas julgar, condenar, empolando e dramatizando uma coisa que, sopesando os factos e colocando-os em perspectiva, podem ser desagradáveis mas, do que percebi, não maculam o todo. Mas o João Adelino Faria, encarnando o implacável e embrutecido agente inquisidor, não estava ali para ouvir Francisca Van Dunem. Juro que, se fosse comigo, lhe diria que, se era para apenas se ouvir a si próprio e tirar conclusões dos seus próprios raciocínios, então a minha presença era escusada pelo que iria levantar-me e dar a entrevista por acabada. Claro que, por estas e por outras, é que eu nunca aceitaria um cargo público. Falta-me a paciência para exibicionistas, ainda por cima com comprovado défice cognitivo.
Entretanto estou a ver, na Sic Caras, um programa que mostra a vida a bordo de um veleiro. Eram 6 clientes e uma tripulação para aí de oito ou mais. Conheço umas pessoas que, até há algum tempo, mais propriamente enquanto o pai era vivo, todos os anos iam num grande iate passar férias no Mediterrâneo, o avô, a família toda. Não sei quantas pessoas estariam a bordo como convidados, imagino que umas boas dezenas. Nem imagino o que seria a tripulação para uma coisa destas. Mas agora que digo isto, acho que estou a fazer confusão, acho que era apenas o avô e os netos. Portanto seria muito menos gente. Quando uma vez me disseram o valor da brincadeira pensei que não podia ser. 'Ai pode, pode...', asseguraram-me. Lembro-me que, na altura, perguntei: 'Mas não lhe ficaria mais barato que o barco fosse dele em vez de estar a alugá-lo?' e perguntaram-me: 'mas quem é que disse que não é?'. Outros números, outras escalas, outras vidas, outros tempos.
Claro que nunca me vi metida numa destas. O mais aproximado, e de aproximado não tem nada, foi um barco fretado para passear no Tejo, com almoço, música e bebidas até ao sunset. Uma coisa exclusiva para convidados, onde estava la toute Lisbonne. Hoje estas coisas seriam impensáveis. Um notável advogado, muito mediático e namoradeiro, espalhava charme às descaradas. Um empresário e um ex-ministro segredavam. Muita malta bebia como se o romantismo da cidade visto do rio pedisse um espírito etilizado. Alguns queriam dançar e era divertido vê-los a tentar controlar o balanço do barco e a sua mal disfarçada euforia. Ainda devo ter para aí um polo de excelente qualidade que nos ofereceram de recordação. E acho que mais qualquer coisa, não me lembro. Lá está: outros tempos. Por fim, já estava era deserta que aquilo acabasse mas não dava para sair antecipadamente, saídas à francesa num passeio de barco não são muito convenientes. Tive que aguentar.
Bem. O resultado de dias de repouso forçado dão nisto: zero de que falar. A ver se amanhã consigo energia e motivação para ao menos pegar num livro. Detesto ter tempo livre e, ao mesmo tempo, falta de vontade para o usar de uma forma minimamente razoável.
Deixo-vos, uma vez mais, com um dos vídeos que o algoritmo do youtube anda a recomendar-me que vejo sempre de gosto. Cada vez mais, tenho para mim que não é preciso procurar muito a felicidade. Temos é que saber de que é que gostamos. E, sabendo, focar-nos nisso, não nos metermos por caminhos que nos afastam do que verdadeiramente gostamos. Se, por exemplo, a minha cara Leitora gosta é de altos e espadaúdos que a peguem ao colo e tenham a vida de entrosamento e empatia com que sempre sonhou, seria de bom senso meter-se com um zé cueca que mais não é do que uma mala sem alça? Não, não é? Ou, se gosta de uma vida animada e que inclua passeios e encontros de amigos, não vai acomodar-se a uma vida que não inclua nada disso, não é? Ou se gosta de viver na montanha, conduzir tractores e andar com memés ao colo, vai arranjar um emprego das nove às cinco onde não veja nem nesga se terra? Ou, se gosta de descobrir e estudar literatura, vai estudar marketing? Ou se gosta de jardinar, escolhe viver num lugar onde não consegue nem ter um vaso na varanda? A vida é uma só e é apenas o que fazemos dela. Os vídeos da Green Renaissance são muito nesta onda, de sermos fiéis àquilo de que gostamos. É esta também a minha onda.
Uma vida plena
Maggie Fourie, uma mulher imparável
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Pinturas de He Sen ao som das Ghostly Kisses a interpretarem The City Holds My Heart
Começo a escrever quando o dia um já virou a página. Dormi mal até que me levantei para ir tomar um comprimido. De manhã a dor nas costas já não estava só nas costas mas também na nuca. Incapaz de mexer a cabeça. Resolvi ir de imediato para a banheira para dar com água quente na nuca durante algum tempo. Reconheci que, apesar disso, estava melhor. Senti que já não estava febril e isso, em mim, faz a diferença. Pouco dormi até ir tomar o comprimido mas, depois, dormi que me fartei. O meu corpo parece que está a querer dizer-me alguma coisa.
A minha temperatura não está nos costumeiros 36 ou abaixo mas nos 36,3º, um pouco mais do que o normal, mas nada a assinalar. Tenho é umas olheiras como nunca. Quando as vi até me assustei, pensei que tinha tido algum derrame. Depois percebi que não, que era dos dois lados, meras olheiras. Olho-me ao espelho e pareço-me uma dama do século passado, descorada, olheiras fundas, como quando se morria de amor com doenças indefinidas.
Praticamente não comi o dia todo. Estou sem fome. Ainda assim, a meio do dia fui fazer uma pequena caminhada, devagar, e não me custou tanto como ontem. Fui super agasalhada e com uma echarpe muito quente em volta do pescoço.
A minha mãe esteve a ler os seus livros e concluiu que foi um misto de três coisas: dias de muito stress, dias de muito frio e 'as porcarias que comes'. Espantada, pergunto-lhe a que porcarias se refere se tenho uma alimentação tão saudável. 'Queijos', são péssimos, favorecem estados inflamatórios, esclarece-me. Depois fala-me do cortisol que o stress provoca e que, segundo ela, é um veneno, que deveria ter uma vida mais tranquila, que, se fosse ela, ficava numa aflição com as situações em que me meto, não conseguiria ter a vida que tenho. Digo-lhe, 'pois, mas é a vida que tenho' e, quanto ao queijo, digo-lhe que cada vez gosto mais, há queijos fantásticos. Ela diz-me que deveria cortar nos queijos, ter uma vida mais calma, agasalhar-me mais, diz que não percebe como ando sempre tão à fresca. No entanto, sabendo-me sem febre e tendo encontrado explicação para este meu estado, descansa e já acredita que não é covid.
Passei parte da tarde no sofá, entre almofadas, nada à fresca. Pelo contrário, estou bem agasalhada. Há bocado fui pôr os pés em água quente, estavam outra vez gelados. Eu toda a boa temperatura, quente, e os pés gelados. Não sei porquê. No telefonema, ao falar nisto, a minha mãe disse que deveria fazer-me umas meias de lã, bem quentes. Disse-lhe que não, que geralmente nem suporto sentir calor nos pés, que esta novidade dos pés gelados deve ter a ver com estar adoentada.
De certa forma, ainda bem que isto me aconteceu nestes dias em que, por via do recolher obrigatório às 13 e da proibição de sair do concelho, também não poderia fazer grande coisa. O pior é que não faço pouco: não faço literalmente nada. O meu filho, depois de também me fazer as perguntas sacramentais, se tenho olfacto, se tenho paladar, se não tenho tosse, ainda assim aconselha que tire as dúvidas e faça um teste e, mal acabei o telefonema, já ele me tinha enviado o link para eu saber como fazer. Mas penso que isto deve ter mais a ver com o que a minha mãe diz do que com covid. E com um quarto factor, aquilo de que falei ontem: na outra semana andei a carregar baldes de terra, bem pesados; depois, no natal, transportei sacos bem pesados de laranjas e tangerinas, e o meu corpo que não é de camponesa como por vezes gosto de me iludir mas, sim, de princesa, ou seja, de burguesa lisboeta e elitista, desde há algum tempo não se dá bem com pesos. E também não se dá bem com dias inteiros sentada, de manhã à noite, sem tempo para desentorpecer as pernas ou o espírito, que foi o que me aconteceu a seguir ao natal e aos dias a seguir ao natal.
Portanto, o meu primeiro dia do ano foi assim, verdadeiramente atípico. Mas, afinal, tinha uma peça de roupa nova para estrear. Uma blusa confortável, homewear, que a minha filha encomendou para a minha mãe me oferecer. Verde. Se sou incandescente quanto às minhas paixões, sou verde quando me visto. Creio que já o contei. Quando para aí há um ano e picos tirei para fora toda a roupa dos roupeiros e as voltei a arrumar por cores, fiquei espantada com a larga, larga, maioria de diferentes tons de verde. E acontece-me frequentemente que, quando tenho alguma reunião verdadeiramente decisiva e quero vestir-me em consonância, quase invariavelmente a escolha recai nos verdes.
De tarde e à noite, estivemos a ver filmes na televisão. O meu marido disse: 'nem sabíamos que dava para ver filmes na televisão'. Ironizava, claro. Mas nunca os víamos. Não tínhamos tempo, não tínhamos paciência, tínhamos sempre qualquer outra coisa melhor para fazer. Pois hoje, comigo neste estado, rendemo-nos à televisão. Contudo, adormeci. Depois de ter dormido tanto, pela manhã adentro, voltei a adormecer à tarde. Quando estou assim, o meu corpo vinga-se, põe-se a dormir.
E mal vi as notícias, pouco depois de acordar, constatei que tinha morrido o Carlos do Carmo. Tem sido uma ceifa inclemente. Dá medo. A ver se o 2021 não vai pelo mesmo caminho que o malvado 2020. Tem sido uma razia. Mas, se tenho pena pelo Carlos do Carmo, e claro que tenho e não é pequena, não menorizo o sofrimento dos indefesos que estão a morrer nos lares. Esta situação leva-nos também a conhecer a quantidade imensa de lares ilegais. E, no entanto, quem ali está, está porque não tem onde mais estar, talvez porque as famílias não podem tê-los noutro lugar. Os filhos a trabalharem, com casas pequenas, sem poderem assegurar os cuidados necessários, alguma solução têm que arranjar. E os lares legais são escassos e caros face às necessidades. Deveria ser uma área de forte investimento público. O orçamento e os fundos da segurança social não dão para tudo mas terá que se arranjar uma fonte de financiamento para resolver este drama. Não podemos ter milhares de portugueses à mercê do que quer que seja -- maus tratos, cuidados deficientes --, uma triste antecâmara da morte.
Mas não é só nos lares clandestinos que as pessoas morrem às mãos cheias, é em todos os lares. E tem a ver, sobretudo, com o ar que respiram. Não podem estar de janela aberta senão ainda apanham alguma pneumonia, e, portanto, provavelmente com ares condicionados que recirculam o ar em vez de extrairem o ar viciado e injectarem ar novo, são vítimas adiadas, é só até aparecer o primeiro caso. Imagino o medo das pessoas que lá vivem, receando pela sua própria vida, esperando, solitários, que o tempo passe e não os leve. Espero bem que haja um qualquer fundo para ajudar a financiar, junto de quem não tem verbas para isso, a remodelação dos sistemas de ar condicionado dos lares. Não é justo nem digno que se faça de conta que é uma fatalidade que os nossos mais velhos, enclausurados em lares, estejam a morrer desta forma (e falo de Portugal mas, do que as notícias nos dão conta, o mal é geral).
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Quando ia começar este post, a minha ideia era falar do planeta, da maravilhosa perfeição que o habita, do respeito que nos deveria merecer, guiando todos os nossos actos.
Facilmente poderia dizer que o amor e o respeito pela natureza são os valores primordiais da minha religião. Mas não sinto necessidade de caracterizar a minha espiritualidade pois certamente deixaria de fora aspectos também essenciais.
Contudo, as dores que sinto e o meu mal-estar tomaram conta do texto e, sem me dar conta disso, fui desfiando maleitas, coisa que, ao vivo, nunca faço. Acho uma maçada estar a ocupar tempo das outras pessoas com males que são só meus. Mas isso é ao vivo, espaço onde tenho algum controlo sobre os meus actos. Aqui são as minhas mãos que me conduzem.
Deixo-vos, contudo, com um vídeo com a chancela BBC e a marca de Sir David Attenborough que, ao fim de tantos anos, continua a deslumbrar-se (e a deslumbrar-nos) com a espantosa beleza da natureza. Penso que no dia em que todos nós interiorizarmos que deveremos respeitar o planeta e ter como nossa missão na terra a de deixarmos um planeta melhor para os nossos descendentes, grande parte dos estúpidos problemas dos humanos desaparecerão.
David Attenborough's Jaw dropping
A Perfect Planet 🌍
Em mais uma manifestação do perigo da Inteligência Artificial, neste caso um perigo ainda apenas antevisto e, neste caso, não concreto (pelo menos, para já), o Google Arts & Culture tinha para me recomendar o vídeo abaixo que, de facto, não poderia agradar-me mais. Partilho-o também convosco.
Celebrating Art and Nature with Beethoven's Pastoral Symphony - First Part
Escolhi, como música, lá em cima, Words | Gregory Alan Isakov e espero que as recebam, pelo menos alguns de vós, como uma espécie de explicação para eu deixar aqui, noite após noite, a minha pele, os meus ossos.
Words mean more at night
Like a song
And did you ever notice
The way light means more than it did all day long?
And I'll send you my words
From the corners of my room
And though I write them by the light of day
Please read them by the light of the moon
E etc.
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Desejo-vos um bom dia -- e nem vale a pena dizer muito mais para não começarmos o ano a acumular decepções
Que me lembre, deve ter sido a primeira véspera de Ano Novo em que não tive produção a preceito para o réveillon e toilette a estrear no dia, geralmente na base do branco. Não me lembro de noite em que não tenha usado vestido com brilhos, salto alto, jóias a condizer. Acho que faz parte. Não se recebe o Ano Novo na base da informalidade. Contudo, desta vez não houve festejos, idas para a rua para ver o fogo de artifício. Estamos apenas os dois. Estivemos a jantar, uma ceia cheia de belos petiscos, quase tudo presentes de Natal, na mesa junto à lareira. Temos é trocado mensagens entre o grupo de família.
Mas hoje não estou grande coisa, aliás estou assim desde ontem, penso que dei para aqui algum jeito ao carregar pesados sacos de laranjas e tangerinas. Na noite passada tive febre e, há pouco, não me sentindo bem, fui confirmar. 37,2º o que para mim é muito pois tenho sempre 36 ou um pouco menos. De tarde, sentia-me tão enregelada que fui pôr os pés de molho em água bem quente. Fiquei melhor. Claro que se levanta logo a questão 'não será covid?'. A minha mãe, então, fica logo num stress, insiste que eu ligue para a Saúde 24. Mas espero bem que não, que seja apenas algum vulgar estado inflamatório. Mas estou em baixo e enroupada -- ao contrário dos outros anos em que ando de alças, decote, sem frio e com a alma em festa.
À hora de almoço, forcei-me a ir fazer a caminhada do costume mas foi um sacrifício, cheia de dores nas costas, a sentir-me doente e com muito frio. Daqui a nada vou tomar um paracetamol, a ver se amanhã estou melhor.
À meia noite comi as passas e as uvas, brindei ao novo ano, formulei votos para os meus e para mim, fui para a porta da rua bater tampas para fazer o ano velho ir para bem longe. Curiosamente havia fogo de artificio por todo o lado e creio que deve ter sido de uma das casas ao lado ou em frente que atiraram umas morteiradas valentes pois, não apenas foram uns big estrondos como, quando voltei ao jardim, cheirava imenso a pólvora.
No último dia do ano recebi mails, mensagens e telefonemas a desejarem-me um bom ano e eu fiz o mesmo. A nossa esperança leva-nos a pensar que, se o formularmos, a coisa se dará. São rituais e todos, de um maneira ou de outra, gostamos de ter rituais a que nos possamos agarrar como âncoras.
Digo isto mas, ao dizê-lo, lembro-me que nem todos. Uns amigos nossos faziam questão de passar o ano a dormir para nem darem pela mudança. Enquanto na minha casa havia festa, na deles era como se nada se passasse. 'E nada se passa, de facto', dizia-me ele.
Somos diferentes, o que é relevante para uns, é treta para outros. Por isso, é bom que tenhamos a humildade de não nos acharmos nem melhores do que os outros nem especiais.
Talvez por não estar grande coisa, não consigo dizer muito mais que estas banalidades. Digo apenas que em cada pequeno bom momento vive uma memória eterna. Saibamos, pois, dar valor a esses instantes e guardá-los dentro de nós para que sempre nos acompanhem.
Mesmo num ano tão cruel, que tanta gente tem matado e em que tanta gente viu a vida a esvair-se, em que deixámos de nos cumprimentar com beijos e abraços, em que tanta gente está no desemprego ou num desespero por não conseguir fazer face às despesas, conseguiremos encontrar momentos em que a graça de existirmos ou de amarmos e sentirmo-nos amados ou a bênção de presenciarmos belas paisagens, uma flor ou o sorriso de uma criança valeram a pena.
Continuo a querer acreditar que talvez estejamos num momento de viragem para melhores tempos. Seria bom.
Desejo-vos saúde, em especial aos que estão doentes, aos que apanharam sustos e estão a fazer tratamentos (estou a torcer por si, estimado Joaquim), desejo-vos motivação, ânimo. Desejo-vos alegria, afecto, desejo-vos força para tomarem as decisões que se impõem na vossa vida, desejo-vos que se sintam abraçados por quem vos quer bem.