sábado, janeiro 02, 2021

Palavras escritas de noite

 




Começo a escrever quando o dia um já virou a página. Dormi mal até que me levantei para ir tomar um comprimido. De manhã a dor nas costas já não estava só nas costas mas também na nuca. Incapaz de mexer a cabeça. Resolvi ir de imediato para a banheira para dar com água quente na nuca durante algum tempo. Reconheci que, apesar disso, estava melhor. Senti que já não estava febril e isso, em mim, faz a diferença. Pouco dormi até ir tomar o comprimido mas, depois, dormi que me fartei. O meu corpo parece que está a querer dizer-me alguma coisa. 

A minha temperatura não está nos costumeiros 36 ou abaixo mas nos 36,3º, um pouco mais do que o normal, mas nada a assinalar. Tenho é umas olheiras como nunca. Quando as vi até me assustei, pensei que tinha tido algum derrame. Depois percebi que não, que era dos dois lados, meras olheiras. Olho-me ao espelho e pareço-me uma dama do século passado, descorada, olheiras fundas, como quando se morria de amor com doenças indefinidas.

Praticamente não comi o dia todo. Estou sem fome. Ainda assim, a meio do dia fui fazer uma pequena caminhada, devagar, e não me custou tanto como ontem. Fui super agasalhada e com uma echarpe muito quente em volta do pescoço. 

A minha mãe esteve a ler os seus livros e concluiu que foi um misto de três coisas: dias de muito stress, dias de muito frio e 'as porcarias que comes'. Espantada, pergunto-lhe a que porcarias se refere se tenho uma alimentação tão saudável. 'Queijos', são péssimos, favorecem estados inflamatórios, esclarece-me. Depois fala-me do cortisol que o stress provoca e que, segundo ela, é um veneno, que deveria ter uma vida mais tranquila, que, se fosse ela, ficava numa aflição com as situações em que me meto, não conseguiria ter a vida que tenho. Digo-lhe, 'pois, mas é a vida que tenho' e, quanto ao queijo, digo-lhe que cada vez gosto mais, há queijos fantásticos. Ela diz-me que deveria cortar nos queijos, ter uma vida mais calma, agasalhar-me mais, diz que não percebe como ando sempre tão à fresca. No entanto, sabendo-me sem febre e tendo encontrado explicação para este meu estado, descansa e já acredita que não é covid.

Passei parte da tarde no sofá, entre almofadas, nada à fresca. Pelo contrário, estou bem agasalhada. Há bocado fui pôr os pés em água quente, estavam outra vez gelados. Eu toda a boa temperatura, quente, e os pés gelados. Não sei porquê. No telefonema, ao falar nisto, a minha mãe disse que deveria fazer-me umas meias de lã, bem quentes. Disse-lhe que não, que geralmente nem suporto sentir calor nos pés, que esta novidade dos pés gelados deve ter a ver com estar adoentada.

De certa forma, ainda bem que isto me aconteceu nestes dias em que, por via do recolher obrigatório às 13 e da proibição de sair do concelho, também não poderia fazer grande coisa. O pior é que não faço pouco: não faço literalmente nada. O meu filho, depois de também me fazer as perguntas sacramentais, se tenho olfacto, se tenho paladar, se não tenho tosse, ainda assim aconselha que tire as dúvidas e faça um teste e, mal acabei o telefonema, já ele me tinha enviado o link para eu saber como fazer. Mas penso que isto deve ter mais a ver com o que a minha mãe diz do que com covid. E com um quarto factor, aquilo de que falei ontem: na outra semana andei a carregar baldes de terra, bem pesados; depois, no natal, transportei sacos bem pesados de laranjas e tangerinas, e o meu corpo que não é de camponesa como por vezes gosto de me iludir mas, sim, de princesa, ou seja, de burguesa lisboeta e elitista, desde há algum tempo não se dá bem com pesos. E também não se dá bem com dias inteiros sentada, de manhã à noite, sem tempo para desentorpecer as pernas ou o espírito, que foi o que me aconteceu a seguir ao natal e aos dias a seguir ao natal.

Portanto, o meu primeiro dia do ano foi assim, verdadeiramente atípico. Mas, afinal, tinha uma peça de roupa nova para estrear. Uma blusa confortável, homewear, que a minha filha encomendou para a minha mãe me oferecer. Verde. Se sou incandescente quanto às minhas paixões, sou verde quando me visto. Creio que já o contei. Quando para aí há um ano e picos tirei para fora toda a roupa dos roupeiros e as voltei a arrumar por cores, fiquei espantada com a larga, larga, maioria de diferentes tons de verde. E acontece-me frequentemente que, quando tenho alguma reunião verdadeiramente decisiva e quero vestir-me em consonância, quase invariavelmente a escolha recai nos verdes.

De tarde e à noite, estivemos a ver filmes na televisão. O meu marido disse: 'nem sabíamos que dava para ver filmes na televisão'. Ironizava, claro. Mas nunca os víamos. Não tínhamos tempo, não tínhamos paciência, tínhamos sempre qualquer outra coisa melhor para fazer. Pois hoje, comigo neste estado, rendemo-nos à televisão. Contudo, adormeci. Depois de ter dormido tanto, pela manhã adentro, voltei a adormecer à tarde. Quando estou assim, o meu corpo vinga-se, põe-se a dormir. 

E mal vi as notícias, pouco depois de acordar, constatei que tinha morrido o Carlos do Carmo. Tem sido uma ceifa inclemente. Dá medo. A ver se o 2021 não vai pelo mesmo caminho que o malvado 2020. Tem sido uma razia. Mas, se tenho pena pelo Carlos do Carmo, e claro que tenho e não é pequena, não menorizo o sofrimento dos indefesos que estão a morrer nos lares. Esta situação leva-nos também a conhecer a quantidade imensa de lares ilegais. E, no entanto, quem ali está, está porque não tem onde mais estar, talvez porque as famílias não podem tê-los noutro lugar. Os filhos a trabalharem, com casas pequenas, sem poderem assegurar os cuidados necessários, alguma solução têm que arranjar. E os lares legais são escassos e caros face às necessidades. Deveria ser uma área de forte investimento público. O orçamento e os fundos da segurança social não dão para tudo mas terá que se arranjar uma fonte de financiamento para resolver este drama. Não podemos ter milhares de portugueses à mercê do que quer que seja -- maus tratos, cuidados deficientes --, uma triste antecâmara da morte.

Mas não é só nos lares clandestinos que as pessoas morrem às mãos cheias, é em todos os lares. E tem a ver, sobretudo, com o ar que respiram. Não podem estar de janela aberta senão ainda apanham alguma pneumonia, e, portanto, provavelmente com ares condicionados que recirculam o ar em vez de extrairem o ar viciado e injectarem ar novo, são vítimas adiadas, é só até aparecer o primeiro caso. Imagino o medo das pessoas que lá vivem, receando pela sua própria vida, esperando, solitários, que o tempo passe e não os leve. Espero bem que haja um qualquer fundo para ajudar a financiar, junto de quem não tem verbas para isso, a remodelação dos sistemas de ar condicionado dos lares. Não é justo nem digno que se faça de conta que é uma fatalidade que os nossos mais velhos, enclausurados em lares, estejam a morrer desta forma (e falo de Portugal mas, do que as notícias nos dão conta, o mal é geral).

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Quando ia começar este post, a minha ideia era falar do planeta, da maravilhosa perfeição que o habita, do respeito que nos deveria merecer, guiando todos os nossos actos. 

Facilmente poderia dizer que o amor e o respeito pela natureza são os valores primordiais da minha religião. Mas não sinto necessidade de caracterizar a minha espiritualidade pois certamente deixaria de fora aspectos também essenciais.

Contudo, as dores que sinto e o meu mal-estar tomaram conta do texto e, sem me dar conta disso, fui desfiando maleitas, coisa que, ao vivo, nunca faço. Acho uma maçada estar a ocupar tempo das outras pessoas com males que são só meus. Mas isso é ao vivo, espaço onde tenho algum controlo sobre os meus actos. Aqui são as minhas mãos que me conduzem. 

Deixo-vos, contudo, com um vídeo com a chancela BBC e a marca de Sir David Attenborough que, ao fim de tantos anos, continua a deslumbrar-se (e a deslumbrar-nos) com a espantosa beleza da natureza. Penso que no dia em que todos nós interiorizarmos que deveremos respeitar o planeta e ter como nossa missão na terra a de deixarmos um planeta melhor para os nossos descendentes, grande parte dos estúpidos problemas dos humanos desaparecerão.

David Attenborough's Jaw dropping 

A Perfect Planet 🌍


Em mais uma manifestação do perigo da Inteligência Artificial, neste caso um perigo ainda apenas antevisto e, neste caso, não concreto (pelo menos, para já), o Google Arts & Culture  tinha para me recomendar o vídeo abaixo que, de facto, não poderia agradar-me mais. Partilho-o também convosco.

Celebrating Art and Nature with Beethoven's Pastoral Symphony - First Part

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As pinturas são de Shakir Hassan Al Said

Escolhi, como música, lá em cima, Words | Gregory Alan Isakov e espero que as recebam, pelo menos alguns de vós, como uma espécie de explicação para eu deixar aqui, noite após noite, a minha pele, os meus ossos. 

Words mean more at night
Like a song
And did you ever notice
The way light means more than it did all day long?

And I'll send you my words
From the corners of my room
And though I write them by the light of day
Please read them by the light of the moon

E etc.

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Desejo-vos um bom dia -- e nem vale a pena dizer muito mais para não começarmos o ano a acumular decepções

8 comentários:

Gina disse...

Olá UJM
Folgo que tenha melhorado. Acho que a gente escreve mais do que diz, por isso contou das maleitas, o que não considero mau, nem me aborrece.
Feliz 2021

Estevão disse...

“ … Ela diz-me que deveria cortar nos queijos …”
A propósito de queijos, ensinaram-me que os bons apreciadores vão atrás deles com uma mola no nariz e um garfo na mão. Talvez daqui as dores nas costas ..

Paulo B disse...

Olá UJM,

Já aqui vim dar o meu apoio a essa perspectiva dos sistemas de ventilação. E contínuo a achar isso. No entanto, agora que tenho assistido de perto a um surto numa dessas instituições, o que tenho visto é uma grande falta de preparação.
Equipas com a maioria dos trabalhadores muito pouco qualificados e mal remunerados, não receberam nenhuma formação intensiva prévia, chefias incompetentes, com estilos de gestão anacrónicos, do tipo "ditatorial" e/ou intriguista (dividir para reinar). Resultado? falta de liderança e autoridade, agravada pelas enormes desigualdades salariais que grassam entre essas chefias e a generalidade dos cuidadores pouco qualificados - na.maioria a ganhar o salário mínimo. Conclusão: não exista grande disciplina para seguir orientações de forma rigorosa, como se vê o pessoal hospitalar a fazer (julgo que os procedimentos deveriam ser semelhantes).
A propósito dos sistemas de ar... Vejo afinal que existem muitos casos com sistemas do tipo aquecimento central com caldeira e não do tipo ar condicionado onde a questão da recirculação de ar não se coloca (talvez sim a falta de arejamento).

A questão dos.mais velhos parece-me ser um problema gravíssimo que só se irá agravar (dado o envelhecimento acentuados), que trará consequências graves para a própria população ativa (que, já apertada, terá de desviar imensos recursos para a sobrevivência dos seus ascendentes...). A isto acresce a má qualidade da habitação da esmagadora maioria das pessoas que dificultará e muito a sua autonomia.

Talvez a basuca usada para isto fosse importante: Libertava a população ativa para a reconstrução económica.

Abraço!

Pôr do Sol disse...

Querida UJM,

As mães têm SEMPRE razão. 😊

Só concordamos com isto, muitas vezes depois de sermos avós.

Cá em casa tambem luto contra o consumo diário da famosa "tabua de queijos", cujos efeitos mais dia menos dia se manifestam. A resposta, é sempre a mesma, perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. Para mim os nossos queijos são os melhores do Mundo. Contudo as suas diferentes curas e fermentações não se dão muito bem com o meu figado e rins.

Desejo-lhe a continuação de boas melhoras.



Um Jeito Manso disse...

Olá Gina,

Acho que tem toda a razão. Provavelmente quem por aqui me acompanha ficará com a ideia que sou uma insuportável tagarela. Contudo, não sou. Aliás, até me cansam as pessoas que falam demais. Sou de dizer o quanto baste. Mas aqui dá-me para isto, escrevo, escrevo. Se calhar, deveria inscrever-se no seu clube, o das Grafómanas...

Um feliz 2021 para si e para os seus, Gina!

Um Jeito Manso disse...

Olá Amofinado,

Por acaso até não aprecio muito os queijos malcheirosos. Mas eu, que só gostava de queijo fresco e que não percebia como se podia gostar do sabor intenso do Serra nem queria saber dos queijos em geral, agora gosto de quase tudo e gosto de experimentar alguns de que nunca tinha ouvido falar. Os mais intensos posso atenuar comendo ao mesmo tempo maçã ou mel. Mas é um petisco e tanto. Mas, na volta, ando a abusar...

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

O que diz, que não conheço, não me admira por aí além. Imagino a impreparação quer técnica, quer de liderança. Quando vejo na televisão alguns dos responsáveis de lares penso que não devem fazer ideia do que deveria ser a forma correcta de gerir uma instituição destas, ainda por cima num período destes.

Ainda há quem pense que liderar equipas é sinónimo de 'não ser meiguinho' e, portanto, tratam os outros à bruta. Essa da intriga, do amiguismo, é típica nessas situações. E, na verdade, pessoal mal remunerado, mal preparado, mal orientado, deve ser uma porta aberta para a entrada do vírus. E, uma vez o vírus entrado, sem arejamento regular (mesmo não sendo recirculado) está o 'caldinho' armado para que o contágio se dê, às dúzias.

Se há área em que a sociedade deveria reflectir e investir a sério deveria ser em residências assistidas para idosos (com espaço ao ar livre (jardim, horta), com ginásio, com espaço para terapia ocupacional ou actividades de lazer) e em creches gratuitas.

Claro que há que sopesar o financiamento disto mas, sendo uma realidade incontornável, não há como fugir a esta análise. A bazuca poderia dar uma ajuda grande a nível de investimento mas depois há exploração corrente. Claro que os utentes devem pagar conforme as suas posses mas há que prever que, quer a nível de idosos quer a nível de jovens casais, há muitos que pouco poderão pagar.

Tem que haver uma inversão rápida na demografia, trazer imigrantes, fomentar a natalidade. No fundo, há que repensar tudo isto...

Temas muito interessantes para as suas áreas de estudo, não...?

Abraço, Paulo, e um feliz, feliz, feliz 2021!

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Pois é... Cada vez percebo melhor isso. A sabedoria acumulada conjugada com a intuição fazem da opinião das mães conselhos a levar muito a sério. No caso da minha mãe, acresce que tem muitos livros de medicina natural (que o meu pai adquiria) e também livros de divulgação médica geral. Como ela gosta, de vez em quando também lhe ofereço alguns que acho que ela vai apreciar. E ela lê aquilo tudo e fica a saber como funciona o organismo, o que provoca doenças ou mal-estar, o que se deve fazer, exercícios ou alimentação a seguir. E quando algum de nós tem alguma maleita, ela vai pesquisar e, cruzando aquela informação toda, lá faz os seus diagnósticos e diz o que lhe parece.

Quanto aos queijos, quando há tempo fui a uma nutricionista, de facto ela mandou cortar os produtos lácteos como forma de evitar estas inflamações que, volta e meia, tenho. Mas, quando uma pessoa está bem, nem se lembra de que pode deixar de estar. Eu, pelo menos, como nunca levo nada muito a sério, esqueço-me completamente dos cuidados que deveria ter. Ultimamente, então, tem sido uma overdose de queijos... Tenho que cortar (pelo menos durante uns tempos...)

Um abraço, querida Sol Nascente.