Faz de conta que é a crónica de mais um dia nesta absurda situação
Não vou gastar muito tempo a falar desta coisa que me atacou, direi apenas que pior não estou mas muito melhor ainda não. O dia foi passado, de novo, na indolência a que, se eu quiser ser menos crua, poderia chamar repouso. Calhou à tarde dar o filme da Gaga com o Bradley que a minha filha andava há tempo a dizer que visse. Gostei, boas interpretações. Tínhamos acabado de ver, não sei em que canal lá mais para a frente, o drama dos opiáceos e do álcool entre as figuras do rock americano. Uma decadência a que assusta assistir. Não conhecia a história do filme, imaginava que teria um happy end e, à medida que a trama ia evoluindo, fui percebendo que era muito improvável que o fim feliz fosse possível. Dramas infelizmente reais naquele meio. Naquele meio e se calhar em vários outros meios e, por acaso, até sei de alguns.
Para além disso, toda a tarde me debati com sono, sentindo as pálpebras pesadas; contudo, não sei porquê não consegui dormir. À hora de almoço fui fazer a minha caminhada, mas tal como nos dias anteriores, em versão light, caminhada para quase entrevadas. E a meio da tarde fui para o jardim mas senti que o frio, cortante, não iria ser de grande ajuda. Por isso, apanhei uma laranja, comi-a, sumarenta, doce e gelada, e pouco mais. A minha filha mandou-me receitas de doces com tangerinas e ando com vontade de experimentar. Mas custa-me estar de pé, sem andar, e também não sei se é boa ideia pensar em doces, depois do exagero do Natal.
No inverno, por aqui, impera o silêncio. De vez em quando ouvem-se alguns cães a ladrar: é quando passa algum desconhecido junto à separação entre as casas. Ou ouve-se o grasnido de grandes gralhas negras. Não sei se são gralhas nem se se a sua voz é grasnido ou gralhar mas penso que é capaz de não andar longe. As rolas andam mais desaparecidas e silenciosas. Há passarinhos pequeninos que andam em grupos a debicar a terra sob a relva, para apanhar pequenas minhocas ou, então, sementes invisíveis. Quando passei ao pé da cameleira, que está cheia de camélias, aproximei-me para as cheirar e, para meu espanto, preguei um susto aos pássaros que lá estavam abrigados. Saíram, num sobressalto, as asas a bater na folhagem, voando desconcentradamente.
Mas, portanto, foi isto. Assisti durante um bocado à entrevista do João Adelino Faria à ministra da Justiça e, confesso, gabo a paciência de quem se sujeita a um interrogatório acusatório daqueles, pesporrente, sem querer ouvir as respostas nem perceber o que se passou, apenas julgar, condenar, empolando e dramatizando uma coisa que, sopesando os factos e colocando-os em perspectiva, podem ser desagradáveis mas, do que percebi, não maculam o todo. Mas o João Adelino Faria, encarnando o implacável e embrutecido agente inquisidor, não estava ali para ouvir Francisca Van Dunem. Juro que, se fosse comigo, lhe diria que, se era para apenas se ouvir a si próprio e tirar conclusões dos seus próprios raciocínios, então a minha presença era escusada pelo que iria levantar-me e dar a entrevista por acabada. Claro que, por estas e por outras, é que eu nunca aceitaria um cargo público. Falta-me a paciência para exibicionistas, ainda por cima com comprovado défice cognitivo.
Entretanto estou a ver, na Sic Caras, um programa que mostra a vida a bordo de um veleiro. Eram 6 clientes e uma tripulação para aí de oito ou mais. Conheço umas pessoas que, até há algum tempo, mais propriamente enquanto o pai era vivo, todos os anos iam num grande iate passar férias no Mediterrâneo, o avô, a família toda. Não sei quantas pessoas estariam a bordo como convidados, imagino que umas boas dezenas. Nem imagino o que seria a tripulação para uma coisa destas. Mas agora que digo isto, acho que estou a fazer confusão, acho que era apenas o avô e os netos. Portanto seria muito menos gente. Quando uma vez me disseram o valor da brincadeira pensei que não podia ser. 'Ai pode, pode...', asseguraram-me. Lembro-me que, na altura, perguntei: 'Mas não lhe ficaria mais barato que o barco fosse dele em vez de estar a alugá-lo?' e perguntaram-me: 'mas quem é que disse que não é?'. Outros números, outras escalas, outras vidas, outros tempos.
Claro que nunca me vi metida numa destas. O mais aproximado, e de aproximado não tem nada, foi um barco fretado para passear no Tejo, com almoço, música e bebidas até ao sunset. Uma coisa exclusiva para convidados, onde estava la toute Lisbonne. Hoje estas coisas seriam impensáveis. Um notável advogado, muito mediático e namoradeiro, espalhava charme às descaradas. Um empresário e um ex-ministro segredavam. Muita malta bebia como se o romantismo da cidade visto do rio pedisse um espírito etilizado. Alguns queriam dançar e era divertido vê-los a tentar controlar o balanço do barco e a sua mal disfarçada euforia. Ainda devo ter para aí um polo de excelente qualidade que nos ofereceram de recordação. E acho que mais qualquer coisa, não me lembro. Lá está: outros tempos. Por fim, já estava era deserta que aquilo acabasse mas não dava para sair antecipadamente, saídas à francesa num passeio de barco não são muito convenientes. Tive que aguentar.
Bem. O resultado de dias de repouso forçado dão nisto: zero de que falar. A ver se amanhã consigo energia e motivação para ao menos pegar num livro. Detesto ter tempo livre e, ao mesmo tempo, falta de vontade para o usar de uma forma minimamente razoável.
Deixo-vos, uma vez mais, com um dos vídeos que o algoritmo do youtube anda a recomendar-me que vejo sempre de gosto. Cada vez mais, tenho para mim que não é preciso procurar muito a felicidade. Temos é que saber de que é que gostamos. E, sabendo, focar-nos nisso, não nos metermos por caminhos que nos afastam do que verdadeiramente gostamos. Se, por exemplo, a minha cara Leitora gosta é de altos e espadaúdos que a peguem ao colo e tenham a vida de entrosamento e empatia com que sempre sonhou, seria de bom senso meter-se com um zé cueca que mais não é do que uma mala sem alça? Não, não é? Ou, se gosta de uma vida animada e que inclua passeios e encontros de amigos, não vai acomodar-se a uma vida que não inclua nada disso, não é? Ou se gosta de viver na montanha, conduzir tractores e andar com memés ao colo, vai arranjar um emprego das nove às cinco onde não veja nem nesga se terra? Ou, se gosta de descobrir e estudar literatura, vai estudar marketing? Ou se gosta de jardinar, escolhe viver num lugar onde não consegue nem ter um vaso na varanda? A vida é uma só e é apenas o que fazemos dela. Os vídeos da Green Renaissance são muito nesta onda, de sermos fiéis àquilo de que gostamos. É esta também a minha onda.
Uma vida plena
Maggie Fourie, uma mulher imparável
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Pinturas de He Sen ao som das Ghostly Kisses a interpretarem The City Holds My Heart
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