quinta-feira, novembro 12, 2020

As muitas sombras de cinzento

 


Trabalhei até tarde mas, felizmente, depois de almoço tive tempo para fazer o jantar. Por isso, ao fim do dia foi só fazer o acompanhamento. Fiz coxas de frango de tomatada acompanhadas de tagliateli temperado com azeite e orégãos. Já nem sei o que fazer para variar. De vez em quando apetecem-me chamuças, empadas, croquetes, tagine, ceviche, pãezinhos com rabo de boi estufado -- petisquinhos que volta e meia ia comer. Não é o estilo de coisa que faça em casa, parece-me sempre que é coisa boa para petiscar fora. Se calhar amanhã faço bacalhau cozido com todos. Uma seca, comer sempre em casa.

De manhã tinha tido uma reunião que também tinha acabado tarde. Fiz a minha caminhada mas não foi das mais longas. Falo com a minha mãe enquanto ando e agora os telefonema são longos e cheios de enigmas, mistérios, stresses. Nem a caminhada me sabe a caminhada nem consigo ir a observar as casas, de tal forma vou a puxar pela cabeça. Não consigo perceber o que me diz, tudo lhe desaparece, ora está tudo preto, ora está tudo branco, não consegue descrever onde está, não consegue andar para trás, enerva-se, diz que vai desistir, que isto anda a deixá-la nervosa. A meio da tarde ligou-me de novo, que os mails tinham desaparecido todos, que o ecrã não tinha nada e que lhe aparecia uma boneca a perguntar se queria ajuda. Não percebo, não faço ideia de por onda anda. Puxo pela cabeça até a cabeça não dar mais. No fim, depois de várias tentativas e insondáveis peripécias acaba sempre por conseguir. Já frequentou três aulas, já assistiu a uma conferência e já participou num encontro informal entre alunos e professores. Já lhe deram os parabéns por, com a idade que tem, estar nestas lides. E ela ficou contente. Mas de cada vez é uma aventura, um sobressalto, uma crise.

Quando agora aqui cheguei, já bem tarde, pensei aquilo que uma colega dizia: quarta-feira passada, semana dobrada. Nessa altura eu ficava contente. Ansiava pelo fim da semana, pelos dias de convívio. Tínhamos sempre programas com amigos, primos, cunhados, miúdos, sobrinhos. Os meus filhos, mal acordavam, perguntavam: quem é que vem cá hoje? ou: onde é que hoje vamos? Tinha tempo para tudo: para os miúdos, para a casa, para o trabalho, para a família, para os amigos, para o cinema, para ir dançar à noite ao fim de semana, para passear. Agora, ao constatar que a semana está dobrada, assusto-me. O tempo corre sem eu dar por ele. Era verão há tão pouco tempo. Agora anoitece a seguir às cinco da tarde e daqui a nada estamos no fim do ano. O tempo avança, avança. Daqui a nada passaram seis meses desde que, no verão, mudei de empresa. Já seis meses. O tempo foge. Hoje voltei a insistir na linha vermelha e, uma vez mais, não a compreendem, não querem aceitá-la. 

Uma luta. 

No domingo, quando fui ao centro comercial, fomos à livraria. O meu marido comprou um para ele, eu um para mim. Eu, o da Mónica Baldaque sobre a mãe. Folheei e pensei: é daqueles que se lê em duas penadas. Pois ainda nem consegui pegar nele. No sábado comprei o Expresso, coisa rara. Quis ler a entrevista do MEC. Para além disso, só ainda consegui ler umas duas ou três coisas na Revista. O meu marido pôs o livro sobre a Agustina na estante junto à pequena secretária onde trabalho. Poderia pegar nele e ir lendo. Mas, estupidamente, não consigo. Estou em casa, não tenho quem me entre no gabinete e, mesmo assim, não consigo. Isto deixa-me intrigada. Tenho um problema? Como é possível que tenha sempre este défice de tempo. Talvez não seja de tempo mas de défice liberdade. O pior é que sou eu que giro o meu tempo, a minha agenda, o meu trabalho. 

Mas, enfim, não falo mais disto senão já sei que aparece alguém a refilar.

Digo apenas que gostei muito de estar a arrumar os meus discos e cd's. Já não me lembrava de alguns. Mas estou um bocado aborrecida pois, no rescaldo da arrumação, há embalagens sem conteúdo e alguns cd´s sem embalagem, quase impossíveis de capazmente arrumar. Onde foi parar o que me falta? Na volta tem a ver com o carro. Levava os cd's para ouvir no carro. Depois se o carro ia para arranjar ou se trocava, tirava tudo para um saco. E depois esquecia-me do saco durante tempos nem sei onde. As coisas tresmalham-se. Mas, no fim, quando menos se espera, aparecem. Mas algumas, afinal, desaparecem. 
Ute Lemper, por exemplo. Onde está? Apesar de andar esquecida, agora que a sei desaparecida, sinto-lhe a f. alta. O Half the perfect world da Madeleine Peyroux apareceu e eu fiquei contente como se tivesse encontrado, de repente, a minha prima que vive longe.

E encontrei o cd com o David Mourão-Ferreira a dizer os seus poemas. Que voz. Que maravilha. Fiquei tão feliz. Que presente tão bom que foi para mim.

E é isto. Não tenho mais a acrescentar. Dias breves, pouco coloridos, basicamente a preto e branco, passando pelas diferentes gradações do cinzento.

Esta quinta-feira já aí está e o meu jardim está todo florido como se fosse verão e isso é uma alegria. Quando consigo ir até lá percebo que, afinal, o mundo é colorido. 

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As fotografias são da autoria de Ferdinando Scianna e vêm ao som de River segundo Madeleine Peyroux

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E a todos desejo um dia bem vivido

1 comentário:

Anónimo disse...

Cá em casa comemos pão com azeitonas e 2 copos de tinto e "tá" tudo almoçado !!