quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Escuta. Deixa que te mostre um pouco de mim.
E já agora: Parte-me o coração, mas com doçura.






Deixa-me que te fale dos livros que lia como quem procura uma tempestade, entrando pelos ventos adentro, atirando-me para mares tormentosos, enfrentando chuvas torrenciais, explosões de sóis. Assim que acabava um, logo me embrenhava noutro, Somerset Maugham, Thomas Mann, Henry Miller, Hemingway, Dostoievski, Gorki, Allan Poe, Erich Maria Remarque, Steinbeck, Fernando Namora, Ferreira de Castro, Aquilino, Eça, José Rodrigues Miguéis, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, Agustina. Violette Leduc, D.H. Lawrence. Tantos. Guerras, amores, serranias, lobos, neve, medicina rural, a perdição do jogo, a tuberculose, a vida nos sanatórios, a homossexualidade no feminino, o erotismo sem barreiras, virgens e ciganos, mulheres perdidamente apaixonadas, mistérios, rivalidades, violência, morte. Não sei se era eu que procurava os livros se eram eles que me procuravam. Uma compulsão, como se quisesse ler tudo o que havia para ler, como se cada vez os mergulhos tivessem que ser para mais fundo, eu mais tempo em apneia, suspensa no prazer da descoberta de mundos até aí desconhecidos. Mesmo que não conhecesse alguma palavra seguia, não queria perder tempo com pormenores, a voragem era total. Com Aquilino era difícil, muitas palavras desconhecidas. Mas depois já lá ia pela sonoridade, pela cadência. Mas voltava a Ferreira de Castro, aquela vida difícil nos frios extremos ou na selva, a vida no limite da comunhão com a natureza, a rusticidade verdadeira: era um fascínio. E tantas coisas que não percebia bem, o interdito desconhecido, a imersão em mundos de pecado e rendição, a atracção pelos excessos. E sempre o inexplicável apelo da literatura, absoluto.

Mas deixa que faça um intervalo -- as palavras são como as cerejas, não é? 
Uma vez uma amiga, no liceu, disse que os rapazes deitavam um líquido. Não percebi. Ela ria-se com o efeito da revelação. Tinha uma irmã e um irmão mais velho, sabia sempre mais coisas que nós. Mas não sabia dizer mais do que isso. Eu, que ainda não era menstruada e que já andava a ficar preocupada, já quase todas eram, temi que até mesmo os rapazes, todas e todos menos eu: Menstruação?, perguntei. Ela disse que achava que não mas não sabia. Uns dias depois uma outra que tinha irmãs mais velhas e primos e primas também mais velhos apareceu cheia de novidades: que era verdade, que não era sangue, que era um líquido branco. Perguntei: Mas sai todos os dias ou também tem dias como na menstruação? Eu sabia tudo sobre o assunto menstruação para perceber se era normal ter a menstruação mais tarde do que a maioria mas nunca tinha lido nada sobre os rapazes. Ela disse que isso não sabia. Ficámos todas sem perceber. 
Quando nas festas dançantes, eu dançava agarradinha ao meu namoradinho, volta e meia, a seguir, ele ia à casa de banho. E elas vinham logo todas cochichar, em círculo sobre mim: 'Deve ir mudar as compressas' e eu achava que se calhar ia. 
Então li num dos livros do Fernando Namora, As Sete Partidas do Mundo, creio, que o rapaz tinha acordado com a cama molhada e que, dessa forma, se tinha feito homem. Fiquei espantada com isso. Não percebi mas vi que havia uma relação, fui logo a correr contar-lhes. Mas essa informação também não acrescentou muito. Então passei a estar atenta ao assunto, a ver se, em qualquer livro, havia alguma cena que fosse suficientemente explícita para eu conseguir perceber tamanho mistério. Isto devia eu ter uns treze anos.
Mas deixa que continue. E a poesia? No liceu aprendia uns, pelas livrarias buscava outros, José Gomes Ferreira, José Régio, Jorge de Sena, Eugénio, outros, e depois, já na faculdade, em vez de procurar os livros do curso buscava os outros, a literatura, a poesia, as invisíveis partículas. E descobria os estrangeiros, Éluard, Neruda, esgueirava-me pelas estantes, espreitava linguagens nunca suspeitadas.

Depois tinha um namorado que fazia poemas, poemas muito bons. E que fazia poemas sobre mim, para mim. E que me trazia nomes novos: Fiama, Gastão, Joaquim Manuel Magalhães, Vasco Graça Moura, Sophia. Com que avidez eu entrava nesse mundo novo feito de luz, de maçãs sobre mesas ao sol, muros caiados, caminhos a sul, corpos esgueirando-se. A poesia era, então, música, limpidez, uma subversão que me envolvia.

E ainda hoje, sabes. O meu coração sobressalta-se perante palavras que se enleiem como uma toada, estremece-me o peito quando leio palavras carregadas de afecto ou ausência. A minha pele sobrevoa os céus quando algumas palavras me tomam nos braços. Tu sabes disso.

E a música. Não canto bem. Volta e meia, se dá para cantar alto, toda a gente ao mesmo tempo, aí alinho, gosto. Mas eu cantar a solo, não. Mas gosto tanto de música. Preciso de música. É a minha companhia permanente quando conduzo. Geralmente vou na Antena 2. Por vezes também na Smooth. Ou ouço CDs. Hoje, sabes, ia a ouvir Mozart e só queria que o tempo parasse naquele momento para que aquela música para sempre ficasse a flutuar sobre mim. Mas não sei nada, não memorizo nada. Se, de repente, me pedirem que diga uma música maravilhosa acho que vou ficar com os pés no ar, perdida entre mil músicas que me transportam para longe, longe, incapaz de dizer apenas uma, ou uma que seja.


Agora, para estar aqui connosco enquanto estas palavras te tiverem perto de mim, pensei em ter justamente Mozart, um piano. Mas, antes de começar a escrever, tinha-me lembrado de te trazer John Moreland com o seu tocante ‘Break my heart sweetly’e, sabes, não sou mulher de mudar assim tão facilmente de ideias. (Não rias.)
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Nem sei porque estou para aqui com isto, juro que não. Acho que é apenas porque me apetece falar contigo e, uma vez que tu aí não dizes nada, vou eu monologando, jogando conversa fora.
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Continuo. Falo-te agora da pintura. Se leio os blogs de gente que se acha, andam todos muito à volta dos antigos, pintura escura ou santos e santinhas, nuvens e anjinhos, ou, vá lá, Goya ou Bosch. Claro que há também quem se aventure pelo Turner. E eu nem por isso. Quero eu dizer, por aí sim, e tanto que eu fico parada em frente aos mares envoltos nos céus em fogo ou névoa, mas o que mais me puxa são os inexplicáveis. Mostrem-me manchas, traços, restos de vida, rasgões, sombras e logo eu entro, hipnotizada, por esses indecifráveis mundos. Ou as mulheres pesadas de Paula Rego, as histórias pérfidas de que tanta gente não gosta, tanto que a mim me agradam. Ou, sabes, sabes bem, a cor envolvente de Rothko e tanta gente que diz que uma criança faz aquilo e eu que sim, que façam, que crescerão com as cabeças iluminadas (e faço de conta que não sei que as cores escureceram dentro dele, que esse vazio de chumbo o sugou). Ou Chagall, apaixonado, voando pelos céus com a sua bem amada presa pelos lábios, ou Picasso, desmedido, ou Balthus e as suas inconfessáveis inspirações, ou Matisse ou Gauguin ou Van Gogh. Ou a pulsão irreprimível de Pollack, essa loucura. Tantos. Não devia falar sobre isto. Deixo de fora tantos que me são caros. Esqueço-me, esqueço-me de tentar lembrar-me.

E ainda me apetecia contar-te sobre outras coisas: fotografia, por exemplo. Não faço ideia do número de fotografias que já fiz em toda a minha vida. Muitos milhares, isso sei. Parece que a minha visão só fica nítida se eu tiver uma máquina fotográfica para captar o que vejo. É uma necessidade que não sei explicar. Mas na fotografia não gosto apenas de fotografar: pelo contrário, gosto de ver fotografia. Tenho muitos livros de fotografia. Mas não de fotografia técnica, isso não me interessa. Nem nunca leio os manuais das máquinas. Não quero saber. O que gosto de ver são fotografias. Por isso, os livros são da obra de fotógrafos. Fascinam-me.

Também não me importo de ser fotografada mas isso tem dias, tenho que ter disposição para me despir.


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Afinal sempre vou ouvir Mozart. Queres ficar aqui comigo a escutar, também?


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As fotografias são da autoria de Christian Coigny.

Aqui acima, o adagio de Mozart é interpretado por Mitsuko Uchida

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E, se ainda aí estiverem e se quiserem ouvir-me a falar de rosas e de vestidos com rosas e de perfumes, desçam, por favor, um pouco mais. Sofia Loren está lá para vos receber.

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1 comentário:

Anónimo disse...

Às vezes, enquanto leio, aqui e acolá, paro. Paro num livro, num texto ou apenas em algumas palavras. E sinto-me nesse momento tão próxima de quem as escreve que me apetece tocar essa pessoa e dizer algo como "eu também". Depois penso "que estupidez", eu que nunca risquei um livro, que nunca sublinhei uma frase, vou estragar o texto porquê? Quando fecho um livro, não o comento com o autor nem lhe faço um "gosto"! Então ponho-me a rir e a imaginar se se teriam escrito os mesmos livros se os escritores vivessem na era dos "like". E muito de vez em quando, depois de parar de rir comento "gostei muito deste texto, também eu me sinto assim, deve ser por sermos todos mais parecidos do que nos julgamos". Obrigado. Rita