Andava para ir dar um jeito no cabelo há que tempos. Como a vida tem estado por conta própria sem que eu consiga fazer o que quero ou preciso e, ultimamente, sempre, a levar-me, arrastada pelas circunstâncias, não dava. O cabelo desordenado e eu sem conseguir um tempo para cuidar dele. Sem problema. Fui fazendo o que sempre faço: da mesma forma que corto o cabelo que resta ao meu marido, corto também o meu. Volta e meia, chegava a casa e, num acto de exorcismo, ia buscar a tesoura grande da costura e, em frente do espelho, lá vai disto. Como o cabelo é basto e como gosto de me ver com ele a atirar para o despenteado, a perfeição é desnecessária.
Mas já estava a ficar um bocado fora de controlo, nem curto nem comprido, nem a direito nem escadeado. No outro dia, afoitei-me e marquei hora para um tempo depois. Mas, depois de ter marcado, o meu marido chamou-me a atenção: era a pior hora e o pior dia possível. De facto. Parece que até fico com dificuldade em organizar capazmente os meus tempos supostamente livres. Então, no sábado passado, havendo vaga já para o fim da tarde e a precisar mesmo de tirar um valente peso de cima, lá fui.
Na estação de serviço tinha comprado o Expresso para ler o artigo sobre a Agustina e, portanto, ao contrário das outras vezes, não me atirei logo às Caras, Nova Gentes ou VIP's.
No entanto, frequentando tão raramente estes microcosmos, é sempre com grande admiração que ouço as conversas que me cercam pelo que atenção, atenção ao artigo, só o dediquei mesmo nessa noite. Ali, discretamente, fui assistindo ao que se ia passando.
A cabeleireira, a irmã que a ajuda (e que também se ocupa de estética) e mais a bela jovem que se ocupa das nails são a tripulação deste pequeno salão de bairro. Conhecem as clientes todas e, do que percebo, têm relação de amizade com grande parte delas. Terão uns trinta e tal ou quarenta e poucos anos, elas duas, e dá ideia que todas as colegas de escola ou vizinhas ali vão. Tratam-se quase todas por tu e referem maridos, filhos e amigos pelo nome e constato que a familiaridade parece ser grande. De vez em quando, a mãe delas entra e, silenciosamente, vai buscar vassoura e pá e varre o chão do pequeno espaço. Outras vezes, leva pão para a filha-cabeleireira que trabalha de pé horas a fio. Depois senta-se numa qualquer cadeira que esteja vazia e fica em silêncio ouvindo as conversas que por ali giram. Ouvi uma das clientes a conversar baixinho com as duas irmãs sobre o tempo que leva a processar o subsídio e que, mesmo não sendo muito, sempre é uma ajuda; e que ia informar-se sobre a data em que iam pagar. As irmãs agradeceram. No meio da conversa, pareceu-me ouvir falar em funeral e ocorreu-me que talvez o pai tenha morrido e que a silenciosa senhora esteja viúva. Mas pode não ser nada disso, não consegui apanhar a conversa toda.
Mas o que aqui me traz é outra coisa.
Na véspera à noite eu tinha aqui escrito sobre o facebook, sobre os riscos para a democracia e para a saúde política dos países por haver uma tão potente plataforma tecnológica completamente desregulada ao dispor de milhões e milhões de pessoas incautas, mal informadas, desprotegidas.
Na véspera à noite eu tinha aqui escrito sobre o facebook, sobre os riscos para a democracia e para a saúde política dos países por haver uma tão potente plataforma tecnológica completamente desregulada ao dispor de milhões e milhões de pessoas incautas, mal informadas, desprotegidas.
Pois bem. Durante todo o tempo que ali estive o facebook veio inúmeras vezes à baila. Completamente alheadas de todas as polémicas em torno dos escândalos que começam a vir a lume (a ponta do iceberg), elas falavam descontraidamente da utilização que fazem do facebook. Uma cliente mostrava imagens de outras no facebook. A cabeleireira dizia que estava a perceber qual o corte que ela queria mas que aquelas das fotografias tinham muito menos cabelo que ela. Ela então mostrava uma fotografia sua numa festa qualquer, para mostrar um penteado que tinha feito para a ocasião e que lhe tinha ficado muito bem. As outras pasmavam: 'Mas és tu?'. Ela, orgulhosa, que sim, que também tinha uma maquilhagem diferente. E mostrava outras fotografias suas. O telemóvel passava de mão em mão, todas pasmadas com a beldade que ali se mostrava. Eu, que não vi as fotografias e apenas a ela, ao vivo, não consegui imaginar qual a transformação que estava a deixar a assistência tão rendida.
Depois foi a vez da irmã esteticista: confirmou as maravilhas da maquilhagem também mostrando fotografias suas no fim do ano. E as clientes igualmente se espantavam. E ela, sentindo-se uma estrela, mostrava o vestido, o cabelo, o colar, a maquilhagem. Provavelmente selfies. E facebook para aqui, facebook para acolá. E todas sorriam, sentindo-se socialites, vampes, vip's.
Entretanto, a menina das nails, que estava desmaquilhada, dizia que no facebook nunca se punha assim como era, 'deslavada'. E mostrava. As outras já conheciam mas riam, diziam que ninguém diria que eram a mesma pessoa. Ela confirmava: só se punha nas fotografias do facebook com grandes e espessas pestanas e lábios pintados. E facebook e mais facebook e sorrisos e mais sorrisos. A sua cliente, para escolher a decoração das unhas, também consultava fotografias no facebook e hesitava: corte quadrado, corte em bico, corte bailarina. E todas iguais e apenas a do anelar diferente ou todas em bicolor ou com desenhos ou com purpurinas? O telemóvel circulava entre algumas e cada uma opinava, rindo-se de algumas decorações como se fossem pirosas.
Nessa altura, escondi as minhas -- curtas, básicas, apenas com um brilho transparente -- por entre as folhas do Expresso. Dir-se-ia que eu, naqueles preparos, as unhas nuas, tinha saído de um outro tempo.
Pensei: se eu agora abrisse a boca e dissesse que o facebook é uma treta, que os algoritmos manipulam as pessoas, que os seus dados podem ser usados para lhes conhecerem os gostos a ponto de as conseguir levar a votar num inimigo do país, iriam olhar-me como se eu fosse uma maluca fugida do manicómio.
Por vezes, o banho de realidade tira as peneiras a quem se acha bem informado e se julga capaz de ver ao longe. Mas de que serve ver ao longe quando não se vê ao perto?
Por vezes, o banho de realidade tira as peneiras a quem se acha bem informado e se julga capaz de ver ao longe. Mas de que serve ver ao longe quando não se vê ao perto?
Qual o valor da liberdade se não se puder mostrar a selfie embonecada às amigas...? De que serve uma democracia esclarecida e transparente se não existir a montra que permite todos os deslumbramentos?Não é?
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[Foi aqui que a civilização nos trouxe? Como foi que isto aconteceu?]
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Sobre as quatro primeiras fotografias (que vi no Bored Panda):
One of those magical objects that caught Ylinampa‘s eye was a lovely Kotisaari island in Rovaniemi, that used to be a traditional stronghold of the Lumberjacks in Kemijoki. Floating in the scenic Kemi river, it became just the right place to fulfil photographer’s wish to capture the changing beauty of nature. He documented the island from a drone through all four seasons, which resulted in four really different but mesmerizing pictures of this wonderful piece of land
A última mostra Christina Aguilera que, para uma sessão fotográfica para a Paper Magazine, se mostrou sem maquilhagem, ficando irreconhecível.
Lá em cima Marlon Williams interpreta 'Arahura'
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