sexta-feira, maio 06, 2022

Estou quase contente com a minha aparência

 

Dias muito aloucados, cheios de muito trabalho e preocupações. Como se não bastasse, acordei com uma dorzinha na perna. Tento lembrar-me do que possa ter sido. Muitas idas e vindas com o regador grande? Idas e vindas do supermercado, os sacos pesados demais? Muitas horas de reuniões? Tenho sorte em não ter que fazer quilómetros a pé. Ou estar dias seguidos encolhida debaixo da terra. Tenho sorte.

Ao fim da tarde, fomos até à praia e trouxemos de lá sushi. Não deu para andar muito, estava meio coxa. Só que a minha coxidão melhora à medida que ando. Ainda assim não abusei, estava a melhorar mas não a ficar boa. Mas bem o sei: quando os músculos dão de si, melhor mesmo é não abusar. Mas sei: pior mesmo é estar sentada, horas sentada. Só que não dá para evitar. Só se passar a fazer reuniões de pé.

Já tomei um comprimido a ver se amanhã me aguento toda a manhã a resolver, sentada, os grandes problemas da humanidade.

A seguir ao almoço, fui num bocado espreitar o calor da rua. A pequena fera cabeluda veio comigo. Somos unha com carne. Enquanto eu estou a trabalhar, ele deita-se ao pé de mim. Quando há sossego, ele gosta de dormir. Se vou à rua, ele vem. Se regresso, ele corre para me acompanhar. Tem receio que o deixe na rua. Já o enganei vezes de mais, por isso já não se fia. Compreendo-o.

Agora na casa grande aqui do lado, há dois cães. Um deles é um pastor-alemão gigante, com um vozeirão daqueles. O ursinho peludo, que é todo territorial, fica possuído. Ladra, corre ao longo do muro, põe-se de pé. Do lado de lá, o outro faz o mesmo. Não se vêem mas pressentem-se. O meu felpudinho já anda nas patas de trás. Põe-se de pé e anda em duas patas. Também, várias vezes por dia, põe-se de pé, abraça-me, dá-me beijinhos. Juraria que sorri. Retribuo com carinho e mimo todo esse afecto.

Há dois dias, também fomos os dois até ao jardim. Ele deitou-se na relva. Eu deitei-me ao lado dele. Ele pôs-me uma patinha por cima do meu pescoço. Fiquei a descansar, deitada, ele abraçado a mim, eu abraçada a ele. Quando me soergui, estava um pintor encavalitado no muro do outro lado, do lado dos outros vizinhos. Fiquei atrapalhada e acho que ele também disfarçou.

Gostava de saber se o esquilinho ainda anda in heaven. Gostava que aqui também os houvesse. Um lugar que os animais escolhem para viver é um lugar abençoado. 

Gosto cada vez mais de animais. Gosto da natureza. Venero a natureza. 

E, no entanto, passo grande parte da minha vida fechada entre quatro paredes a resolver problemas e a enfrentar gente que só me traz complicações, mal me deixando respirar.

Há bocado estive a ver as notícias do dia e a ver vídeos. O meu marido queria ouvir qualquer coisa na televisão e disse para eu baixar o som ou me deixar disto, diz que eu devia ver menos coisas sobre a bárbara e inqualificável infâmia que a Rússia não se cansa de levar a cabo na Ucrânia. Muitas vezes durmo mal por causa disto, tenho pesadelos, acordo.

Então fiz-lhe a vontade e pus-me a ver o último episódio das Avós da Razão. São sempre engraçadas. Divertem-se a conversar e a relembrar o passado. E são todas pr'à frentex. Não há ali saudosismos, arrependimentos tal como não há baias nem medos. Entre risotas, não apenas batem bolas como, na maior das alegrias, chutam à baliza. Três mulheres que se alimentam da amizade, do riso e do futuro que têm pela frente.

Ao ouvi-las lembrei-me de no outro dia a minha mãe nos ter perguntado se uma conhecida, uma que até há alguns anos era do mais jetset, com vários editoriais e reportagens em família, ainda era viva. Há algum tempo que não ouvimos dela. A minha filha disse que sim e contou que a tinha ido ir ver ao hospital. Ao chegar, pensou que estava a dormir e disse à acompanhante que voltaria mais tarde. E que, para grande surpresa, da cama, ela exclamou: 'Não 'tou nada a dormir! 'Tou acordada, atão não vê...? Sente-se aqui, querida.' Diz a minha filha que estava tão esticada, tão repuxada, que nem se percebia onde estava a boca, onde acabava o nariz e começavam as bochechas e em que paravam os olhos. Diz que parecia que estava a dormir. Afinal estava era tão repuxada que não se lhe dava por sinais de vida. 

Foi como noutra vez, já aqui o contei, um amigo ao mostrar-me a reportagem fotográfica de um evento a que tinha ido e ambos, na fofoca, comentando este e aquele. Até que ele disse: 'Olhe, a sua amiga'. E eu, a olhar para um grupo em que estavam dois casais a conversar e sem conhecer as mulheres. Os homens eu conhecia, e bem, mas não as mulheres. 'A minha amiga...?', eu, sem ver qualquer amiga. E ele: 'Olhe bem. Atão não 'tá a conhecer?'. E eu, vista apurada: 'Não...'. Até que ele disse o nome dela. E eu: 'Nãããooooo...'. Por mais que olhasse não me parecia nada ela. E ele: 'Atão não vê...? Repuxou-se outra vez. Ela e a mãe estão quase iguais.'. Nem uma ruga, nem uma pelezinha mais flácida. Tudo em cima. Irreconhecíveis face ao que eram antes. Viciadas em plásticas.

Mas é lá com elas, claro.

O que me espanta é que não têm medo de anestesias nem do desconforto pós-operatório. Há quem faça preenchimentos e choques vitamínicos na pele e raspagens na pele e sei lá que mais. Mas há quem vá mesmo à faca e opte por retirar vários anos de cima. O pior é que, no acto, perde-se a expressão. 

Mas, se calhar, é preconceito meu. Se calhar, se houvesse uma maneira fácil, indolor, caseira e eficaz de eliminar rugas ou de eliminar os vestígios da idade, se calhar eu até tentava. Mas tinha que ser coisa pouca, ao de leve, que não me descaracterizasse. Uma coisa como fazer depilação em casa. 

Mas, enfim, passemos ao que interessa: a conversa aqui das minina. Não há tabus, não há nada disso: só espontaneidade e graça.

VALE TUDO PARA SE SENTIR JOVEM | Avós 182


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Fotografias de Cho Gi-Seok na companhia de Sarah Vaughan que interpreta Tenderly

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Desejo-vos uma happy friday
Alegria. Saúde. Paz.

2 comentários:

Arménio Pereira disse...

(eussemia)

O planeta Terra é uma pedreira alagada à qual Deus atira pedras (com os humanos entre elas).
Um dia destes o acumular de pedras - ou ingente moledro - vai pôr de pernas p'ró ar o estaminé.
Técnicas de sobrevivência não vão salvar ninguém - orar talvez.

[Orar não é implorar (por misericórdia, ou pelo que quer que seja.) Orar é encontrar respostas (um mantra, se preferir) adequadas para aplacar o "eu".
Pessoas diferentes, diferentes mantras. Há sempre tempo para encontrar o seu.]


Todos fazemos gestão de activos: Deus concedeu-nos a cada um uma carteira de títulos, nós fazemos o que podemos para aumentar os ganhos e atenuar as perdas; alguns desenvencilham-se melhor que outros; alguns são mais hábeis a respaldar as apostas que fazem.
De qualquer forma, não importa (respire): ninguém permanece palhaço pobre (nem bufão rico) para sempre; perdedores e vencedores trocam de posto a cada instante. A longo prazo, a paciência(fé concreta) supera/eclipsa o ouro.

(Mais religioso do que isto e alguém terá que me emprestar a sotaina - ou taqiyah.)

Na consciência humana, a religião(fé) situa-se a montante da ciência, por isso será sempre mais pura, mais próxima da alma do homem.

Um Jeito Manso disse...

Olá.

Acho que preferia quando se assinava como K. pois eu sabia que era um nome que usava de empréstimo. Agora não sei se é real ou não mas, se o tratava por K. na boa, agora não me dá jeito tratá-lo por Arménio.

Mas, enfim, isso não interessa.

O que interessa é que é sempre com enorme gosto que leio o que escreve. Deixa-me intrigada, detenho-me a pensar no que diz, fico com vontade de memorizar algumas coisas.

(E tive que ir consultar o dicionário para saber o significado de 'moledro')

Fico sempre com vontade que escreva mais vezes, que escreva mais longamente.

E, portanto, só posso agradecer as suas palavras. E saiba que é sempre uma alegria quando vejo que chegou uma missiva sua.

Uma noite descansada, K.