segunda-feira, novembro 18, 2019

Num domingo assim, tão chuvoso e tão frio, consegui ter o coração quente






De manhã fomos passear para a beira-rio. Estava frio e soube-me muito bem caminhar rente ao Tejo, sentir a frialdade húmida, ver as aves andando descansadamente nos lodos ou esvoaçando, deslizando pelos ares no maior vagar. Ao contrário de quando está bom tempo, hoje os turistas e caminhantes tinham-se retirado. Menos pessoas. Levei a máquina fotográfica mas, porque são as pessoas que mais me atraem, hoje senti que faltavam os motivos que, geralmente, me fazem sentir aquela adrenalina de as apanhar à socapa, de as apanhar no ângulo em que não podem ser reconhecidas ou, melhor ainda, de antecipar os gestos que vão fazer no instante seguinte, aquele em que vou estar a postos para os 'apanhar'.

Mas não fez mal. Fotografei as belas árvores pintadas com as mais intensas cores outonais, fotografei as esculturas de rua, fotografei os rastos que se desenham nos lodos, fotografei as águas mansas, longe dos azuis exuberantes, que quase se confundiam com o céu também em cores quase neutras.


Depois fomos almoçar. Já era tarde. O meu marido ainda tinha que ir à empresa buscar o computador e eu, chegando a casa, ainda tinha sopa para fazer, comida para o jantar de hoje já a contar com o de amanhã, pôr a máquina a lavar, etc. De manhã, tinha-me levantado com um pouco de dor de cabeça pelo que tinha pensado que, depois da labuta concluída, haveria de deitar-me no sofá, a ler e, tentativamente, dormiria um pouco a ver se aquela moinha nas têmporas desaparecia.

Mas, então, estando nós no início do almoço (e isto já depois das duas da tarde), eis que recebo uma sms da minha filha a dizer que o mais velho gostava que fossemos assistir aos seus jogos de futebol. Com o programa de festas que tínhamos pela frente, não era nada que desse jeito. O meu marido abanou a cabeça, encolheu-se todo. Que não dava tempo, que não dava jeito. Tinha um trabalho para fazer e não lhe dava jeito interrompê-lo para ir ver o jogo, às seis e tal da tarde.


Mas há uma coisa: eu não consigo dizer que não, não consigo desiludir os meninos. Se ele gostava que fossemos e se a minha filha também gostava que fossemos, então iríamos. O outro menino tinha também um jogo, mais cedo, noutro lugar, e aí era o pai a ir com ele. Mas, se acabasse a horas, iriam lá ter. 

Fomos. Chovia a potes. Mau tempo, frio, vento, chuva. Ainda pensámos que não haveria jogo. A minha filha até nos ligou, estávamos nós a meio caminho, que, se ainda estivéssemos perto de casa, se calhar não valia a pena irmos, que com o tempo daquela maneira era pouco provável que houvesse jogo. Mas houve. Um gelo. O meu menino lindo encharcado, enregelado, ali debaixo de chuva. Só visto.

Mas um valentão. Jogou muito bem. Tem muito jeito. Está um rapazinho. Vibrei imenso. Enregelada também eu, embora encasacada, mas feliz da vida. O meu marido também gostou de ver o neto a jogar bem. Três jogos, hora e meia a jogar à bola, coitado, ao vento e ao frio, debaixo de água.


Chegámos a casa às oito e tal, ele ainda com trabalho para fazer e eu com coisas para arrumar e tratar. E vínhamos com um frio entranhado no corpo. Diz ele: 'Arranjas-me com cada uma...'. Como se tivesse sido por mim e não pelo neto e pela filha. Mas, se calhar, se não tivesse sido eu a dizer que tínhamos que ir, ele, com o que tinha planeado de trabalho, diria que não. Ou talvez não. No fundo, apesar de não parecer tão 'agarrado' como eu, também não gosta de desiludir as crianças pequenas (nem as grandes).

Sempre assim fomos. Mesmo quando os nossos filhos eram pequenos, mesmo que tivéssemos muito que fazer, nada nos fazia desviar um milímetro quando o que estava em causa era estarmos junto deles. Muita ginástica para conseguirmos conciliar as obrigações com as devoções, muitas corridas para chegarmos a horas, muito stress por vermos o tempo a passar, o trânsito parado sabendo nós que eles estavam à nossa espera.


Lembro-de uma vez em que uma viagem a Itália coincidiu com os anos do meu filho, teria ele uns cinco anos. Fiz de tudo para mudar mas foi impossível. Íamos três e íamos ter reuniões com pessoas de duas outras empresas; e conciliar agendas foi uma complicação, acabando por convergir, desgraçadamente, naqueles dias. Fui com o coração partido. os meus pais vieram para ajudar o meu marido que, naquela altura, tinha trabalhos fora de Lisboa ou reuniões com pessoas que vinham de fora e que queriam optimizar o seu tempo cá, puxando os horários. E havia a festinha de anos com os meninos da escola. Todos disseram que eu fosse descansada, que o menino era pequeno, que nem ia perceber, que eles tratariam de tudo. Mas eu não consegui aceitar o que tinha feito e, ao segundo dia à noite, tomei uma decisão. Arrumei a mala e no dia seguinte de manhã, ao pequeno almoço, apresentei-me junto dos meus colegas dizendo que ia regressar a Lisboa. Ficaram perplexos, sem palavra. Mas eu disse que nem valia a pena dizerem nada. Quase sentia a voz estrangulada na garganta tanto me doía ter estado ausente no dia de anos do meu filho Não me lembro de como fiz para mudar o voo de regresso. Naqueles tempos, sem telemóveis nem internet, não sei como se resolviam coisas destas. Mas eu tê-las-ia resolvido mesmo que estivesse no meio do deserto. Lembro-me de andar meio assustada naquele aeroporto de Milão que é enorme, pejado de gente, eu com pouco tempo, com medo de não dar com a porta de embarque, enervada, angustiada comigo mesmo, desejando chegar a casa mas, ali sozinha, incontactável, com medo de não conseguir embarcar. Mas consegui. Quando, a seguir ao almoço, toquei à porta do apartamento dos meus pais, a minha mãe ficou ainda mais perplexa. Mas o meu alívio por estar de volta, por poder abraçar os meus filhos, por regressar a casa, não tinha tamanho. E tenho para mim que os meus colegas e o meu chefe da altura passaram a respeitar-me mais por ter mostrado tanta determinação e tanto amor pelos meus filhos.


Outra vez foi com a minha filha. Estava numa reunião de um grupo de trabalho do qual fazia parte, estávamos a preparar uma apresentação para o dia seguinte. Naquela altura as apresentações eram feitas em acetatos que se projectavam com auxílio do que hoje será obra de museu e que creio que dava pelo nome de retroprojector. Uma trabalheira. E tínhamos que acabar cálculos para passarmos as conclusões para os acetatos. E nisto ligam-me da creche a dizer que a minha filha tinha estado com um pouco de falta de ar e que, por precaução, a tinham levado ao hospital mas que parecia não ser nada de muito grave. Foi como se me tivessem tirado o chão, como se me tivessem tirado também a mim o ar, como se o céu estivesse prestes a cair-me sobre a cabeça. Fiquei aterrorizada, impotente. Na altura, andava de transportes públicos e chegar ao hospital parecia-me uma eternidade. Em tal estado de aflição me devem ter visto, certamente quase sem conseguir falar, que o meu chefe da altura me disse apenas: vai buscar as tuas coisas que eu levo-te lá. E foi a abrir, num ápice, eu em lágrimas, numa ansiedade -- como se o recado tivesse sido o oposto. Para mim era como se ela estivesse em risco de vida. Não encontro explicação para a irracionalidade que se apodera de mim em situações assim. Quando lá chegámos, ele disse que ficava à espera mas eu quis que ele se fosse embora pois sentia que era responsabilidade minha, que não podia dividir com ninguém. Voei dentro do hospital até dar com ela. Estava sentada, bem. Tinham-lhe feito um aerossol ligeiro e tinha ficado bem. Levei-a para casa mas num tal estado de medo que me lembro que passei o resto do dia a encostar o ouvido às costas dela a tentar detectar alguma pieira ou sinal de alarme. Quando penso nisto, ocorre-me que, na altura, ainda nem trinta anos tinha. Ontem ela e a sobrinha estiveram a ver fotografias e eu era tão novinha. Nesse dia, eu tinha vinte e tal anos e, para mim, apesar de ser muito responsável no trabalho, não havia acetatos, apresentações ou o que fosse que me prendessem perante a perspectiva de a minha filha não estar bem e eu não estar junto a ela.


E, mais recentemente -- embora já há uns sete ou oito anos --, o meu genro ligou-me um dia a dizer que o mais velho estava com um bocado de falta de ar e que tinham ido ao hospital e que, por prudência, lá ia ficar. Foi como se tivesse sido atingida por uma bala. Parece que, em momentos assim, se me esvaem as forças, parece que me fica a doer o peito, o ventre, tudo. Voei para o hospital. Uma preocupação imensa por ele, por imaginar o susto da minha filha, por tudo.

E podia dar mais exemplos. Apesar de achar que uma pessoa, em situações normais, não deve abdicar da sua profissão ou da sua ambição por fazer aquilo de que gosta por causa dos filhos, devendo, antes, esforçar-se por conciliar os dois mundos -- até porque os filhos crescem e a nossa disponibilidade passa a ser outra (e até porque não devemos nunca dar motivo para que os filhos fiquem a achar que nos devem alguma coisa, nomeadamente por nos termos sacrificado por eles) -- a verdade é que, para mim, sempre esteve muito claro que os filhos e a família vêm em inquestionável primeiro lugar.


Por isso, hoje, apesar de um certo transtorno e desconforto, foi com o coração quentinho que estive a ver o meu menino crescido, tão lindo, tão querido, a dar pontapés na bola tão fortes, tão certeiros, e tão contente por nos ter lá.

E claro que levei um lanchinho. Quando me despedi dele, no carro, ele, molhado e enregelado, coitado, disse-me: 'Obrigado pelo apoio... e pelo lanche...' e eu só me apeteceu enchê-lo de abraços e beijinhos.

E pronto, uma vez mais não ouvi notícias, não sei do que se passa no mundo a não ser alguns temas que não me dão muita vontade de falar neles -- como, por exemplo, que Bill Gates já ultrapassou o Bezos e que já é outra vez o homem mais rico do mundo mas os números são de tal ordem que me parece haver qualquer coisa de muito indecoroso em tudo isto; ou que Veneza está desgraçadamente submersa há tempo demais, de uma forma quase catastrófica, mas acho tudo tão assustador que mal consigo falar nisso -- e, tirando isso ou coisas pouco inspiradoras relacionadas com o Trump ou com o Boris, não tenho muito assunto. Só mesmo isto. Enquanto, na maior paz, ouço os sons do silêncio e escrevo isto que estão a ler.


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As fotografias foram feitas este domingo rente ao Tejo

Lá em cima, são Simon & Garfunkel a interpretarem The Sound of Silence
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A todos desejo uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

4 comentários:

El Mucho Bad disse...

Desde há muito, a única revolução real é a que vier para resgatar o direito ao Silêncio.


(Se filosofia puder ser a possibilidade de sugerir a outrem que se permita pensar o impensável, então talvez)

(partilhemos da emoção desperta pelo ctónico no quotidiano e, sobretudo, o nojo da monotonia.)

Paulo B. disse...

El Mucho Bad & UJM, não só pensar [o impensável] mas pratica-lo, sempre, com sentido de humor, para fugir à monotonia - Olé!

Um Jeito Manso disse...

El Mucho Bad,

Habitua-me mal. E isso às vezes torna-se uma responsabilidade. Veja lá, reconsidere. Não é apenas o que diz, é também a forma como diz e os presentes que se escondem por detrás das palavras. E sabe que acho graça aos seus nomes, aos seus disfarces, às suas surpresas, não sabe?

Por isso, veja lá. Pense bem...

E muchas gracias, El.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Que sortuda sou, já viu? Que Leitores especiais eu tenho... Como agradecer tudo o que recebo, como dizer do sorriso que me invade quando vejo comentários assim?

thanks a lot, Paulo.