sexta-feira, junho 10, 2022

O carteiro que queria para si as cartas dos outros

 



Quando acontece um qualquer crime, os polícias e os jornalistas vão interrogar vizinhos e conhecidos. E, salvo raras excepções, verifica-se que foram todos colhidos de surpresa. O suspeito é quase sempre uma pessoa reservada, tida como boa pessoa, nunca se soube de problemas, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, por vezes até acontece que ia tomar um café e cumprimentava toda a gente, alguém dirá que era amigo de seu amigo. 

Todos põem em perspectiva os tempos anteriores em que nada o faria prever e dirão que não compreendem, que parecia uma pessoa normal, uma pessoa de bem, que nunca arranjou problemas com vizinhos, que se metia em casa lá com as coisas dele. Ninguém saberá dizer ao certo que coisas eram essas, era pessoa de poucas falas. Mas sempre muito correcto. 

Alguém lembrará que um dia em que chovia e ventava com força, o viram a ajudar a Dona Adelina que, coitada, já velhinha, quase ia levada pelos ventos, a chuva batendo-lhe em todas as direcções. E, ao ouvir lembrar esse gesto delicado, outro se lembrará que, noutra vez em que ardeu um bocado de mato nas traseiras do Vizinho Manuel Coelho, ele foi dos primeiros a aparecer com um balde e uma pá para ajudar no que fosse preciso. Prestável mas acanhado, concluirão.

Mais tarde as televisões mostrá-lo-ão a sair do carro da polícia à entrada no tribunal. Irá de cara baixa, tentando encobrir-se do olhar dos outros, talvez vá envergonhado, talvez arrependido. Ou talvez apenas não queira sentir a rejeição que os seus actos provocaram.

Geralmente é assim.

Neste caso não sei pois, do que averiguei, pouco se sabe. Mas não me admiraria.

O nome não foi divulgado. Sabe-se apenas que tem 62 anos.

Vivia sozinho em Biar, um lugar no sopé das montanhas de Alicante. Pouco mais se sabia dele. Era normal. Reservado.

Um dia vendeu a casa. E não a esvaziou. Deixou a casa cheia de sacos cheios de coisas. Em todas as divisões deixou ficar aqueles sacos cheios. 

Teve que ser a equipa contratada pelos novos donos para renovar a casa a remover o lixo. E foi então que descobriram o que continham os sacos: cerca de vinte mil cartas, muitas ainda seladas, incluindo facturas, documentos oficiais. 

Ao que parece, o carteiro acidental ia aos Correios buscar a correspondência e, em vez de distribui-la pelos destinatários, guardava-a em casa. Durante um ano aconteceu isto até que, por irregularidades mal explicadas, foi demitido.

Ainda pouco mais se sabe. Será que lia as cartas? Será que construía histórias a partir do que lia? Será que as palavras dos outros lhe faziam companhia? Ou será que não sabia ler e não sabia a quem deveria entregar as cartas?

Um dia saber-se-á. Para já está preso. 

Talvez um dia as cartas venham a chegar aos seus destinatários. Ou talvez já não façam qualquer sentido, talvez a vida das pessoas tenha seguido por outro caminho.

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Já agora, um outro carteiro que sempre me enternece: o Carteiro de Pablo Neruda

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Fotografias de Nick Knight na companhia de La Petite Fille De La Mer (Vangelis)

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Desejo-vos um bom dia

Poesia. Beleza. Tolerância. Generosidade. Afecto. Paz.

4 comentários:

Janita disse...

Olá, UJM!

Vi o filme qe nos dá como exemplo acerca da notícia insólita que ainda se encontra sob investigação. A bem da verdade, não lhe encontro semelhanças.

Agora, com o livro que fui buscar ali, a uma outra estante, que não esta que tenho perto, já tem tudo a ver. Eu explico:
N'A Vida Peculiar de um Carteiro Solitário", escrito por Denis Thériault e que já me serviu para um Desafio de Literatura, conta a história também ela insólita, porém, deliciosa, de um carteiro tão, mas tão solitário, que vive a sua vida através dos outros, lendo-lhes a correspondência antes de a entregar aos destinatários. (Este era honesto)
Curiosamente, estes seus actos ilícitos, trouxeram-lhe uma enorme felicidade...até aprendeu a escrever Haikus, imagine.:)

Deixo-lhe um com muito gosto:

"Carpa amada
Sopra bolhas na água
Move a cauda"

Saúde e bom feriado.
Um abraço.

Arménio Pereira disse...

To flee l'ennui - that's the name of the game
We do it - the Universe does it
You can elaborate - there's no need to complicate
The Everlasting Dissatisfaction keep things in motion
That's all there is to it - it's all we ever need to know.

(to be forgotten is to be forgiven)

Um Jeito Manso disse...

Olá Janita,

Sim, o Carteiro de Pablo Neruda não tem nada a ver com esta história, apenas me lembrei por ser um filme enternecedor que tem aquele carteiro especial.

Não conheço o autor de que fala e fiquei curiosa com esse livro. Muito obrigada pelo haiku tão fresco nesta noite quente.

Um bom sábado, Janita.

Um Jeito Manso disse...

Olá K,

Concordo. Não compliquemos. Eu não complico. Eu não gosto de coisas complicadas. Só o que é simples é bom.

Mas não estou permanentemente insatisfeita. Pelo contrário, estou eternamente agradecida. Curiosa, sim, mas agradecida, satisfeita.

Olhe, gostei muito do presente Quiet steam, até o usei no post de hoje.

Desejo-lhe um sábado tranquilo, feliz.