segunda-feira, janeiro 04, 2021

Essas palavras rolam humildemente pelo chão

 


Acabou-se este período de descanso. Noutros tempos teria sido bem aproveitado. E, noutros tempos, para mim, aproveitar bem era ir passear ou, pelo menos, ir para o campo. Desta vez, covid, recolher obrigatório e, sobretudo, estado de empenanço agudo, foram dias de desconforto. Hoje estava um pouco melhor das costas, quase sem dor da nuca mas com um torcicolo dos bons. É assim comigo: quando tenho destas, a coisa gosta de brincar comigo. Muda de sítio. Se falo nisto a quem quer que seja, ninguém leva muito a sério. São crises inflamatórias que parece que vão percorrendo os sítios mais frágeis a nível muscular. Ontem a minha filha também se lembrou: 'E tens feito tiro ao arco...'. Exacto. Gosto e gosto de atirar de longe, forço o arco ao máximo para a flecha sair com uma força danada para que, se acertar no alvo, faça aquele som compensador. Se vai à mouche, então, é um prazer. Mas também badminton. Não tanto como o arco mas também. E isto já para não falar em saltar à corda. A minha filha falou que tinha saltado à corda e já não tinha aquela elevação que antes lhe era tão espontânea. E foi exemplificar. A minha nora também foi saltar. E eu, que quando era miúda, passava horas a saltar, para a frente, para trás, cruzado, sozinha, a pares, sei lá..., fui também saltar. Por acaso, à posteriori, ao querer atribuir culpas a alguma coisa em concreto, lembro-me que, na altura, pensei: 'A ver se tanto exercício não dá cabo de mim'. Mas isto é complicado porque gosto imenso de fazer estas coisas e porque o faço sem esforço. Portanto, na altura não me sinto limitada nem me dói nada. Mas o que, pelos vistos, acontece é que, quando tudo se conjuga, alguns músculos estarem mais frágeis porque sujeitos a um esforço adicional, e alguma coisa no meu organismo, talvez o sangue, transportar alguma substância que faz com que seja como veneno sobre os músculos mais frágeis, dá buraco. Portanto, diria eu que o segredo está em descobrir o que é que, de vez em quando, aparece no meu sangue.

E aqui entra o que a minha mãe diz: cortisol (do stress?), ácido úrico por comer queijo a mais? comi carne demais? Não faço ideia.

Das vezes anteriores em que estive assim, se calhou fazer análises a seguir, aparece evidente que o indicador das inflamações ainda está muito acima do valor mas, para além disso, nada de mais. Até o cortisol me aparece normal. Mas isto quando faço análises que, em geral, nunca é nos dias em que estou mal pois é preciso preparação e mais não sei o quê e, além disso, quando estou com dores não tenho qualquer disposição para ir para o médico. Ele diz-me: se não passasse era pior, como passa, menos mal. Pronto. Arruma o assunto. É um prático, o meu médico, não tem qualquer veia de investigador.

Mas, resumindo: ao levantar-me percebi que isto não ia lá só com ben-u-rons e repouso. Portanto, comecei com brufen e hoje já tomei ao almoço e ao jantar e, assim sendo, espero que agora comece a melhorar. 

Espera-me uma nova semana das valentes. Não sei o que me passou pela cabeça achar que devia pegar o ano novo pelos cornos, reservando a primeira manhã de trabalho do ano com as três reuniões que mais preferia não fazer, de tal maneira que nem consigo pensar nelas. Não preparei nem vou preparar, vai ser na base do que me ocorrer. E não faço ideia do que vou ter pela frente. Se fosse nos tempos em que saíamos à rua para trabalhar, admito que talvez me passassem com o carro por cima. De tarde, não vai ser tão violento mas vai ser complexo e exigente. E, pior, de seguida. Três de seguida. Reuniões, bem entendido. Estes agendamentos foram quando não me doía nada e na base de o que tem que ser feito, deve ser feito o mais rapidamente possível. Mas, estar a começar o ano com tal programa de festas e o corpo a pedir tréguas, não é das melhores combinações. A ver como chego ao fim do dia.

E é isto, cá estou outra vez a falar das minhas maleitas. Só espero amanhã já nem me lembrar de tal coisa e já ter outro assunto.

Bem. Tinha dito que a ver se hoje, pelo menos, agarrava num livro. E agarrei. E estive a ler. Deitei-me no sofá. Durante o dia nunca consigo deitar-me na cama. No sofá, reclinada entre almofadas, com uma manta de veludo, tigresa, por cima, pus-me a ler 'Acidentes' de Hélia Correia. Na vez anterior que lhe tinha pegado não me convenceu especialmente. Desta vez, encontrei outro sentido, outra toada. Os livros também somos nós, leitores, que os acrescentamos (ou anulamos). Depois adormeci, um daqueles sonos que me tiram do sério. Não percebo de onde vem tanto sono. Em suma: terei que voltar ao livro com idêntica predisposição, passando adiante quando me parece que falta a toada ou quando encontrar alguma palavra que me parece indevida. Penso que este é o segredo quando não gostamos de alguma coisa (ou de alguma pessoa): em vez de persistirmos a tentar compreender e aceitar, não, é de fazer é o oposto: saltar por cima, deixar para trás. A gente às vezes parece que gosta de complicar. Perdemos tempo a tentar salvar o que não tem salvação possível. Mais vale isto: seguir em frente e ignorar o que não nos agrada.

Fiz isso hoje e só me detive naquilo que me soou bem. E, portanto, fiquei mais contente com o que li.

Por exemplo, gostei deste bocado de poema:

Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema


Fala de palavras, ela. E eu, que tanto gosto de palavras, esses misteriosos acasos que se acasalam, gosto de pensar que tudo o que fale de palavras encerra em si parte do mistério e, portanto, leio com atenção a ver se percebo porque gosto tanto delas. Mas não. Aquilo de que a gente gosta mesmo está acima da nossa capacidade de compreensão. Gosta-se por mil motivos, porque é aquilo mesmo de que se gosta mas, sobretudo, gosta-se porque se gosta. 


Por exemplo, gosto de ler isto:
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo fome.

mas seria incapaz de explicar porque gosto tal como me parece fútil e inútil querer encontrar explicação para o próprio poema. Não sei como é que se dá aulas de Poesia. Penso que a única maneira razoável é ler. Ler, ouvir ler, deixar que a toada nos invada o corpo. Atribuir significados ou querer enquadrar burocraticamente na gramática normal é abafar a poesia quando o que a poesia precisa é de oxigénio, ar puro. Mas isto, claro, sou eu, leiga, leiga, a falar. 


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E, por falar em palavras e em poesia, uma vez mais o Faz uma chave de Eugénio de Andrade, num vídeo muito bonito do Cine Povero

Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.
 
Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.
 
Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
 
Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.


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Pinturas de Laurits Andersen Ring na companhia de Jessye Norman - A Portrait - When I Am Laid In Earth (Purcell).
O título do post provém de um poema de Hélia Correia neste seu último livro, Acidentes

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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

2 comentários:

João Lisboa disse...

"Três de seguida. Reuniões, bem entendido"

:-)))

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

Pois saiba que me excedi: não é que consegui ir à quarta...? Foi obra.

:)))