quinta-feira, dezembro 31, 2020

Na rua

 

Nada pode ser tomado como garantido. Nada, nada, nada.

Amores eternos soçobram ao fim de algum tempo. Paixões que se julga fortificadas por unirem almas que quase parecem gémeas esbatem-se e acabam reduzidas a nada. Empregos maravilhosos acabam sem que as pessoas tenham nisso qualquer responsabilidade. Pessoas saudáveis descobrem que afinal, sem o saberem, estão doentes. Gente que se acha o máximo, tratando os outros com mal disfarçada sobranceria, acaba, de um dia para o outro, por ser alvo de desprezo ou chacota. Qualquer de nós já testemunhou ou viveu situações destas. Por isso, quem se sinta titular perpétuo de privilégios, sejam de que natureza forem, está apenas a candidatar-se a um balde de água fria que o deixe desolado até à quinta casa. Mais vale a gente sentir-se agradecida pelo que tem e, a cada momento, estar mentalizado para a probabilidade de, um dia, ter que voltar à casa de partida e, passo a passo, voltar a conquistar tudo (a casa, o trabalho, o amor, a saúde, o respeito alheio, a dignidade)

Muitas quedas, doenças e desgostos podem quase anular uma pessoa e imagino o brutal esforço que é necessário para que se reergam, refaçam, reinventem. Imagino também que, se isso acontecer sem apoio ou companhia, seja muito mais difícil. Por isso, é importante que estejamos despertos para perceber quem, junto a nós, precisa de ajuda. Contudo sei também que muitas vezes quem o precisa não o pede: para não preocupar os outros, para não assumir a sua própria vulnerabilidade, com receio de inspirar pena ou repulsa. Reconhecer que se tem um problema e que se precisa de ajuda é fundamental e requer, muitas vezes, uma grande coragem.

O vídeo que abaixo partilho mostra-nos Paul, um jornalista desempregado, sem casa. A sua bonomia e a esperança que o anima são comoventes. 

Paul is a journalist.  Since losing his job, he has hitchhiked over 36 000km in 15 months across South Africa, looking for work. In a country described as one of the most dangerous in peacetime and with unemployment of well over 30%, his efforts have been in vain. But his journey has taught him many lessons about the kindness of ordinary people.

"We all have problems, we all have challenges.  But we all have the ability to do some good." - Paul 

Talvez o título 'On the road' devesse ser traduzido não por 'Na rua' mas, talvez, simplesmente, por 'Na estrada' ou 'A caminho', em especial pelo seu incansável caminhar, não menos do que uma média de cerca de oitenta quilómetros por dia ao longo de quinze meses. Comecei por intitular o post por 'sem nada' mas também não é verdade que Paul não tenha nada. Tem. Tem um sorriso cativante, tem força anímica para continuar a tentar ter uma vida mais segura, tem ainda o gosto pela leitura e pelos outros, tem esperança. Por isso, talvez tenha o que é necessário para continuar a procurar uma vida melhor. Fica, pois, simplesmente, 'na rua' 


E entrei naquela fase de despedidas do ano que me leva a expressar desejos para o ano que vem.

Por exemplo, gostava de dizer que penso que deveremos sentir compaixão pelos que, sem que alguma vez lhes tenhamos feito algum mal, nos insultam, nos tratam desrespeitosamente. Mas só até ao ponto em que o que nos fazem de mal não nos afecte. A partir daí, há que ter a coragem de lhes dar um claro 'chega para lá', em especial quando o mal já roça a violência, mesmo que apenas psicológica. Em contrapartida, é bom que demonstremos a nossa estima pelos que nos querem bem. O afecto é um dos motores da estabilidade emocional e a sua demonstração, mesmo que não efusiva, é a base na qual assenta a harmonia entre as pessoas. Claro que há muitas pessoas que vivem sozinhas, sem contacto com família ou com amigos, e estão bem assim. Talvez alguns deles tenham amigos virtuais e, de vez em quando, descarreguem as suas frustrações insultando 'conhecidos' por quem alimentam ódios de estimação. Para esses também deveremos, creio eu, reservar alguma compreensão. A vida é curta. Saborearemos melhor o privilégio que nos é dado por vivermos se o fizermos em paz, connosco e com os outros.


As fotografias são da autoria de Steve McCurry
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Que de 2020, ainda assim, vos fiquem bons momentos.
Que o 2021 venha por bem.

2 comentários:

luisa disse...

2020 é daqueles anos que dizemos querer esquecer mas que sabemos que vai ficar na nossa memória. As razões não serão as melhores e também por isso é bom que façamos esse exercício de tentar fixar alguns dos seus bons momentos. E que venha 2021 preparado para não nos desiludir. :)
Bom Ano Novo, UJM!

Um Jeito Manso disse...

Olá Luísa,

Muito obrigada.

Este ano foi-me pesado. Aconteceu-me o que se vinha anunciando há muito tempo mas que sempre ia sendo evitado. Por fim, já me assustava de cada vez que o telefone tocava fora de horas ou de cada vez que ligava para saber como estavam as coisas. Algumas outras pessoas das minhas relações próximas também se foram. E o confinamento e o medo e a desconfiança e a alteração de hábitos -- tudo coisas desagradáveis. Mas também houve momentos muito bons e alguns hábitos, ao mudarem, talvez tenham vindo para ficar e isso também será bom.

Para 2021 o que desejo é que seja o início de um tempo bom. E a si, Luísa, desejo-lhe saúde, continuação dessa sua capacidade para se deslumbrar com a natureza e com cada detalhe, e que a sua ironia e sentido de humor se mantenham vivos. E boa sorte e alegria. Tudo de bom para si, Luísa.