quarta-feira, dezembro 30, 2020

Para que serve a poesia?

 


Não tem havido poesia nos meus últimos dias. Não que tenham sido desagradáveis. Muito pelo contrário. As reuniões acabam com o ecrã repleto de rostos sorridentes. Alguns, em separado, em reuniões distintas, formulam votos dizendo 'que daqui por um ano estejamos aqui a festejar o sucesso que tivemos'. Outros dizem: 'ninguém esperava tamanha revolução' e eu, por dentro, sinto aquele arrepio que tão bem conheço, o mesmo que sentia quando, em pânico numa montanha russa, pensava 'mas porque é que me meti nisto?', sabendo que já ser tarde demais para voltar atrás. Um disse: ''uma revolução preparada cientificamente, as pessoas não esperavam uma coisa assim, estão surpreendidas e agradadas'. E eu sinto, de novo, aquele arrepio. Um mortal encarpado -- e temos que cair de pé, continuar a andar, a saltar, a ir em frente. Mas como, se não houve treino?

Olho para trás e vejo que, sem antes saberem ao que iam, os passos que davam agora lhes parecem estranhamente coerentes, como se tudo milimetricamente planeado. Um disse: 'tiro-lhe o chapéu, na altura não sabíamos porque nos tinha escolhido, agora está tudo claro, agora tudo faz sentido' e eu e aquele arrepio. É verdade. Agora tudo faz sentido. 

Por isso não penso, não planeio, nunca penso, nunca planeio. As coisas, sem eu saber como, parece que batem certo. A posteriori parece que estava a dar passos de um plano bem pensado. Mas sei que, ao dá-los e ao levar outros comigo, eu não sabia para onde estava a conduzi-los. 

E, ao contrário dos que me dão os parabéns, eu sei que só saberei se esta aventura bateu certo daqui por um ano. E o que penso é que, se me perguntarem o que vou fazer durante este ano, não saberei dizer. Mas confio que não devo pensar, deve é deixar-me ir. É um bocado assustador, sobretudo para mim.

O meu marido que assiste a esta minha caminhada, a trabalhar de manhã à noite, diz que não precisava de ser assim, tão intenso, ninguém pede, ninguém espera, que eu é que sou assim, excessiva. Mas só ele sabe que é excessivo porque os outros -- como cada um só vê uma parte, a parte em que cada um intervém -- creio que nem avaliam as horas que levo a construir com eles as peças deste puzzle que é construído sem guião e que, no fim, parece perfeito. 

É um processo. Convencer uns, conduzir outros, refrear outros, entusiasmar outros. No fim dizem: 'e quando podemos começar?'. Sorriem. Estão entusiasmados, por vontade deles começavam de imediato nesta nova vida. 

Um disse: 'Só tem que me dizer o que quer que eu faça' e eu, 'não faço ideia, não me pergunte, isso tem que você a descobrir' e ele, apanhado de surpresa, a rir: 'Ai é...?! Então, está bem'. 

Ouço-me e penso: 'É impossível que não percebam que não sou boa da cabeça'. Mas, se o pensam, não o demonstram. As ideias aparecem-me não sei como e eu só desejo é que não me faltem e que vão batendo certo. Enquanto os outros vêem estudo, preparação aturada, análise exaustiva de hipóteses, eu tenho sempre aquela sensação que é tudo aleatório, espontâneo, ao calhas. E que, assim sendo, pode esgotar-se ou pode começar tudo a sair tudo trocado. É a mesma sensação de, quando era chamada ao quadro e testada com matérias difíceis e as respostas me saíam automática e imediatamente, todas certas, e toda a gente me achava o máximo, eu me sentir incrédula com o que tinha acontecido pois não fazia ideia de como tinha respondido aquilo e acertado sempre. Achava que poderia acontecer que um dia ali chegasse e só dissesse disparates, coisas igualmente saídas da boca para fora.

Por isso, têm sido dias de alguma adrenalina e, por vezes, quase exaustão. Não de poesia. Estou na mesinha encostada à janela, de frente para as flores, mas nem tenho tempo de olhar para elas.

Ao fim do dia, noite já, fomos comprar sacos-cama. Agora já podem dormir cá, à vontade, sem que isso implique vários pares de lençóis para lavar, secar, dobrar, arrumar. Não é solução que me fosse simpática. O meu filho dizia sempre: nós levamos sacos-cama. Nunca achei isso uma boa ideia. Achava que, a dormirem em nossa casa, deveria ser em camas a preceito, lençóis lavados, edredons e mantinhas quentinhas. Mas, de facto, não é prático, por uma noite, haver tanto lençol para lavar. Rendi-me. A seguir, para me dar tréguas, fomos comprar um frango assado, na grelha de carvão. E, claro está, nada disto tem pingo de poesia. Prosa, prosa, prosa.

Agora, já bem tarde, circulei pelos jornais. Nada despertou o meu interesse. Penso que há já alguns dias que não pego num livro. Hoje também não apanhei nenhuma laranja da árvore para comer logo ali. O que valeu a pena foi o episódio do Master Chef Australia, Que arte, que técnica, que perícia. E isso, sim, talvez tenha alguma poesia. 

E estou a ser injusta: alguns posts que li também têm alguma poesia. Anjos, abrigo, efeitos colaterais. São pequenos apontamentos que trazem um pouco de luz a quem lhes passa por perto e isso, para mim, é oxigénio, é espaço largo, é doce toada.

_________________________________________________________

Angélica Argüelles Kubli, Min Jeong-gi, Jason Pawley, Olaf Hajek pintaram as paredes

 ao som de Never Goodbye, Max Richter

___________________________________________

E, porque preciso mesmo de terminar o dia com poesia, com vossa licença,

The Tyger – William Blake (lido por Tom O'Bedlam)


____________________________

Uma quarta-feira feliz

4 comentários:

João Lisboa disse...

"eu tenho sempre aquela sensação que é tudo aleatório, espontâneo, ao calhas"

É. Sempre. Mesmo quando parece o contrário.

Bom ano!

atalhos disse...

Deixo-lhe aqui uma*Explicação de Poesia Sem Ninguém Pedir*:
*Um trem de ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.*
Adélia Prado / Bagagem

Gosto de descer aqui, mesmo com prosa.
A sensação que dá é que há sempre alguém à nossa espera.

Feliz 2021.

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

Concordo. Mesmo quando parece haver grande planeamento, tudo pode ser virado do avesso por uma sucessão de acasos, grande parte dos quais nos passam despercebidos. Talvez seja por isso que não tenho paciência para grandes planeamentos. De todas as vezes que trabalhei com alemães fui ao limite da minha paciência: planeiam ao detalhe cada pormenor como se o facto de pensarem que não deixam nada ao acaso impedisse o acaso de se manifestar. Para se fazer uma coisa que leva um mês a fazer, andam três meses a planear. E ainda hoje não percebi se isso é bom. A julgar pela produtividade deles, é capaz de ser. Mas, a julgar pelo que se observa, é um atraso de vida.

Enfim.

Um bom ano para si também, João. E que a gente se vá encontrando por aqui. Que a saúde, a boa sorte e a boa disposição não nos faltem.

Um Jeito Manso disse...

Olá 'Atalhos',

Sei qual o seu nome, por ter lido já não me lembro onde, talvez até no seu Atalhos mas, como agora não o encontro lá, receio que não o queira usado em vão. Como o nosso nome é uma coisa muito nossa, muito íntima, não quero correr o risco de o usar indevidamente e, por isso, uso o Atalhos.

Gosto imenso do que escreve, das suas fotografias e das suas escolhas, nomeadamente as musicais. Há qualquer coisa de enigmático, de reservado e, ao mesmo tempo, subtil e elegante nos posts que compõe.

Fiquei surpreendida e muito agradada com o que aqui escreveu. Sensibiliza-me.

Espero que se sinta sempre bem recebida mesmo naqueles dias em que a escrita me sai esparvoada.

Desejo-lhe também um feliz 2021. Saúde, ânimo, paz, e que a beleza sempre a rodeie.