sexta-feira, dezembro 16, 2016

Habitamos a ausência





É uma da manhã. Não sei nada do que se passou no mundo. Liguei também agora a televisão. Até agora, grandes dramas que já caíram na banalidade ou vulgaridades da pequena política debitadas como se de determinantes verdades se tratassem. E prisões. Por suspeitas de corrupção, por posse de armas, posse de drogas. E, que tenha dado por isso, pouco mais nada. Ninguém se lembra de divulgar fulgurantes descobertas, grandes amores, loucuras nunca antes sonhadas. Os jornalistas deixaram de querer descobrir raridades, contentam-se com as trivialidades que todos papagueiam sem se saber já de onde parte a ideia original. Mas também não interessa porque parece que o culto da originalidade é coisa de uma ínfima e desprotegida minoria (na qual se calhar eu me incluo).

Podia descever o meu dia e, melhor ainda, o meu jantar. Podia escrever um senhor post. Mas não devo. Fica a fermentar e, daqui por uns tempos, misturado com outras coisas, logo conto alguns momentos.

Como já no outro dia contei, há situações subliminares, histórias ocultas, dramas familiares que coexistem com momentos de festa. Mas não posso contar. Pelo menos não em cima do acontecimento.


Conto só que o jantar foi num sítio onde nunca tinha ido. O que me valeu, e mal, foi o gps do carro. De noite, a chover, um trânsito do caneco, as ruas alagadas, eu sem conhecer puto, e a menina do gps a mandar-me encostar-me à direita e carros por todo o lado, incapaz de me encostar ao que quer que fosse. E depois, mais à frente, que virasse já e eu não na faixa de virar mas na de ir em frente e depois só um lago e eu sem saber se aquilo era água superficial ou com um metro de profundidade. E sem poder pensar ou equacionar alternativas, tamanha a fila de carros Finalmente, depois daquela confusão de trânsito, chuva e carros, cheguei ao meu destino. 

Second round. Estacionar.

Zero lugares. No meio do trânsito, sem conhecer nada do lugar, e a afastar-me do restaurante e nem um lugar. Nem um. Já só pensava: que se lixe, vou-me embora. Já passava uma hora da hora combinada.

Até que já afastadíssima, vi uma rua estranha que, no meio daquela confusãp, levava a um bocado de terra batida. E lá uns quantos carros. Pareceu-me uma clareira no meio da floresta. Um milagre. Enfiei para lá o carro sem perceber por que raio de carga de água havia um bocado de terra batida no meio de uma babel de prédios e ruas e carros. Marimbei-me. Larguei o carro e fui a pé. A choviscar, longe para burro, passeios de calçada e eu, de salto bem alto, a calcorrear ruas e ruas de um lugar completamente desconhecido.


Pensei que, às tantas, já iam a meio de jantar. Qual quê. Menos de metade. Tudo a relatar o calvário para lá chegar e, depois, para estacionar. Ao longo da próxima hora foram chegando os restantes, tudo com ar meio desesperado, tudo a dizer que tinha sido apenas por uma unha negra que não tinham desistido..

Mas pronto, isso ficou para trás das costas. Habituados e mais que habituados a estes pincéis estamos nós. Portanto, confraternizámos e conversámos e foi bom. 

Agora à vinda, outra vez. GPS. Mas aquele desconforto de conduzir de noite, a chover, em sítios totalmente desconhecidos. E viadutos novos, vias rápidas novas, os carros a abrirem e eu sem estar a ver a estrada e sem perceber o percurso, a ser guiada pela menina que, quando se cala, me deixa na insegurança. Encoste à esquerda, daqui a trezentos metros vire à esquerda - diz-me a menina. Mas como encostar à esquerda se os carros vêm  toda a brida e não se vê nada?

Enfim. Cheguei sã e salva. Aqui estou. Ouço música, escolho fotografias. Sabe-me bem estar a ver as fotografias de Etha Ngabito, um mundo tão cheio de luz, harmonia e silêncio. Agora vejo que na televisão repetem a Quadratura do Círculo mas estou tão bem a ouvir a Bonnie Raitt e a Norah Jones a interpretarem Tennessee Waltz que não me apetece ouvi-los a falarem de corrupção, de prisões que parecem arbitrárias. de impunidade que ainda bem que já não há, de legislação que já chega.

Não, antes a música arrastada que me embala os sentidos e me transporta para as profundezas da noite.


Com isto de andar a escolher fotografias e músicas, o tempo vai passando. Daqui a nada já são duas da manhã. Começa a dar-me o sono. De vez em quando, fecham-se-me os olhos.

Em vez de acabar de escrever e ir para a cama, ponho-me a protelar, a dar voltas inúteis. Depois interrompo e vou ver os mails.

A seguir, espreito as estatísticas. Esta quinta-feira dentro dos valores habituais: 1.384 visitas. Há dias de mais mas, em média, acho que anda por estes números. Se calhar são sempre as mesmas pessoas e já se cansam de eu não falar de neuras ou tristezas que apelem à solidariedade, de casos exorbitantes e, pelo contrário, passar a vida aqui com uma converseta da treta.

E agora, desde a meia noite, já 280 visitas. Eu aqui a escrever e vocês, meus queridos leitores, aí desse lado, se calhar à minha espera.

E estava eu a pensar nisto quando vejo nas estatísticas que uma das expressões que alguém escreveu num motor de busca e que o encaminhou para aqui foi  "nous habitons l’absence". Fiquei maravilhada. Juro. Como se não pudesse acabar melhor este meu tão preenchido dia.  Que palavras extraordinárias.

Fui eu ao google e escrevi aquilo. Fui conduzida até ao poema Configuration du dernier rivage de Michel Houellebecq. Não fui parar ao UJM mas, se calhar, alguma vez referi aquele verso. Não sei. Ou, então, o algoritmo da Google achou que poderia aventurar-se e ofereceu-me estas palavras que talvez descrevam um pouco o que eu, por vezes, sinto. Habitamos a ausência.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma sexta-feira muito feliz.


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2 comentários:

bea disse...

Olhe JM, gostei muito do beija flor. Traz-me boas recordações esse pássaro. Agora não dá para ouvir a música, fica para outra hora.
Pois ainda bem que o jantar talvez de Natal correu bem e afinal mereceu a insegurança dos espaços sem a voz da garota do gps (a mim já me baralham os 300 metros que, andando de carro, nunca sei o que são).
E vou também fazer uma visitinha de natal. Fique bem com mais as suas visitas mais de mil e não pense que não gostamos de a ler assim esmorecida pelo dia. Gostamos.

Silenciosamente ouvindo... disse...

Venho desejar a si e sua Família um Feliz e
Santo Natal.

Irene Alves