sábado, agosto 01, 2015

Da fragilidade da vida








Tantas vezes aqui escrevo que a vida é breve e que tantas são as coisas boas que as devemos viver até à última pinga de sumo, que já temo que me achem uma maçadora. Mas cada vez mais penso isso. Tanto que penso isso, tanto.

Breve é a vida. Quero lá saber de pequenas arrelias, quero lá saber de preconceitos, de inibições, de medos sem motivo, quero é viver a vida o melhor possível e não aborrecer os outros, e estar contente e ver contentes os que estão ao pé de mim. Quero lá saber que achem que sou isto, aquilo ou o outro, quero é não desperdiçar o dom de estar viva e de viver rodeada de beleza, de gente boa, de oportunidades para aproveitar, de coisas boas para descobrir, para aprender.
Zango-me, claro, perante mentiras infames, arruaças desavergonhadas, canso-me de desaforos de que, enganado os incautos, se aproveitam do poder que lhes foi conferido para anularem o desenvolvimento do país, para o venderem ao desbarato, para atentarem contra a dignidade da sua população. Mas isso não são coisas menores. Com coisas graves levadas a cabo por demagogos e oportunistas eu fico mesmo furiosa. Zango-me com  os vendilhões do país, zango-me com os papagaios que operam a soldo dos que manipulam e manobram os centros de decisão, zango-me com os incultos que ignoram o conhecimento e negligenciam o ensino e a cultura, e a saúde e a justiça, e a economia e a qualidade de vida e o futuro.
Mas, no que se refere a questiúnculas, ignoro-as. Nunca me envolvo em intrigas, em guerrinhas absurdas, em jogadas vis. Nunca. A vida para mim é uma coisa boa. Respeito-a sabendo que é efémera, uma flor que um dia perde as pétalas, morre. Por isso, enquanto sinto que as pétalas brilham ao sol, eu quero é falar de beleza, de luz, de alegrias.

É que sei bem que pode haver um dia em que nós, julgando que está tudo bem e que respiramos saúde e energia e alegria, afinal estejamos mal, com um bicho descontrolado a crescer dentro de nós. E então ficamos sem chão. E se sabemos o que serão os próximos tempos -- porque já vimos entre os nossos mais próximos e mais queridos que pode acontecer (quando se descobriu tarde demais ou porque o bicho é dos ferozes) que, num instante, quem antes estava forte e feliz se torne num instrumento da sua fúria, sendo consumido num ápice, perante os olhos de quem nada pode fazer para o impedir -- então percebemos que a vida grande e feliz que julgávamos ter pela frente afinal entrou num beco escuro, cheio de tormentos e medos.

Não aconteceu comigo mas está a acontecer com uma das pessoas que me são mais próximas e queridas. E o que se sente, perante o inesperado de uma notícia tão absurda e cruel, é que a força do bicho é tal que as suas garras tomam também conta de nós e apertam o nosso coração, o nosso peito, o nosso corpo todo. É um medo quase paralisante, uma angústia sem remissão. Tentamos ter coragem, superar o terror que nos tira o sono e a alegria, mas aquela garra medonha está sempre dentro do nosso corpo.

E começa-se, então, o caminho dos exames médicos e há o medo em cada exame, medo que ainda seja pior, um pavor opressivo de que já não haja nada a fazer, medo do que dizer aos que nos são tão queridos, medo do que aí vem, medo, medo.

E depois os exames mostram que afinal é só ali, que do mal o menos, e a gente fica feliz, quase esquecendo a ferocidade do bicho, e vem a esperança de que se tire um bocado do corpo e que nesse bocado vá o bicho e que o mal morra para sempre. E, então, voltamos a ter esperança e a ter vontade de procurar de novo o rio e os veleiros e as gaivotas, as ondas do mar, e as árvores, e a música, e os livros e as conversas boas e as palavras amigas e tudo de novo como se a vida estivesse aí para continuar. Afinal o que é um bocado de corpo? Tira-se e o resto do corpo aprende a viver sem o bocado que se vai tirar e pronto, daqui a nada já passou, já vai ficar tudo bom de novo e voltamos a pensar que a vida não vai já acabar, que ainda haverá muitas mil oportunidades para rirmos juntos, para tudo, para tudo.

Ninguém é eterno, a idade vai fazendo os seus estragos, um dia vai acabar, é a lei da vida - dirão quando nos formos. Mas que não acabe enquanto há vitalidade e alegria e tanto gosto em viver - é o que queremos (...como se o nosso querer tivesse força de lei).

Tenho andado aborrecida nos últimos dias. Há separações em que a gente não quer nem pensar, há dores e sofrimentos que a gente não quer ver naqueles que nos são tão queridos. Sentava-me aqui e não tinha vontade de nada, nada me interessava, aquela angústia terrível estava alojada dentro de mim. Forcei-me a escrever, a escolher músicas, fotografias, a falar como se nada fosse, mas uma ansiedade terrível estava alojada no meu peito.

Mas hoje estou mais tranquila. Haverá dentro em pouco uma cirurgia, haverá depois a recuperação, tudo correrá bem e a vida será o que sempre foi, uma sucessão de efémeros e bons momentos. Dos pequenos contratempos não nos lembraremos porque não valem um caracol furado. 

Não queria falar disto porque não gosto de falar do que me preocupa. Lembro-me que, na véspera de ser internada para ser sujeita a uma cirurgia dupla (aos dois joelhos), estive aqui à noite a escrever como se não se passasse nada. Aliás, durante todo o período que antecedeu a cirurgia, eu tinha andado aflita, com inflamações que não passavam, um dos joelhos inchadíssimo, cheio de líquido que tinha que ser extraído tal o estado em que estava, e eu por vezes incapaz de andar, cheia, cheia de dores. Mas nunca fui capaz de falar disso aqui, quanto pior estou mais faço por me abstrair, para não deixar transparecer, para que ninguém se condoa, porque não gosto de maçar os outros.

Mas hoje, contente porque um dos exames mostrou que podia ser pior, apeteceu-me festejar aqui a céu aberto. Não é só porque estou contente: é também porque sei que alguns dos meus Leitores já passaram, eles próprios, por situações destas e encontraram forças e coragem e aí estão, vitoriosos, lutadores, esperançados, e outros tiveram familiares que passaram por este terror e acompanharam-nos e ajudaram-nos e sabem bem o que isto é. E, no fundo, acho que é falando e partilhando medos e dores e tristezas mas também pequenas alegrias e laivos de esperança que nos apoiamos uns aos outros e nos ajudamos mutuamente a aprender a viver melhor a nossa vida.

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As fotografias são da autoria da AirPano e obtive-as no Bored PandaRussian Photographers Show How Birds See Our World And It’ll Leave You Breathless. 
Os lugares que se podem ver são, respectivamente, Barcelona, Paris, Amsterdão, Quedas de Água Churun-meru na Venezuela e, nas duas últimas, flamingos no Lago Bogoria no Quénia.
Escolhi-as porque acho que esta é uma boa maneira de vermos a vida, de cima, vermos a beleza que é o mundo que nos calhou em sorte, deleitarmo-nos com o bom que é viver a vida enquanto a temos - e ignorar as pequenas e passageiras partículas de imperfeição.

A música é de Wolfgang Amadeus Mozart (Clarinet concerto in A major, K. 622 - Adagio) e faz parte da banda sonora de África Minha (filme que festejava, entre outras coisas, a maravilha da natureza e no qual o casal de amantes, enquanto voava, se deleitava vendo a beleza da terra).

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado muito feliz. 
Era escusado repetir-me mas não levem a mal que o faça: 
desejo-vos, de todo o coração, que vivam a vida com alegria, com esperança, não desvalorizando nenhum momento, por breve e insignificante que vos pareça.

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5 comentários:

Rosa Pinto disse...

Abraço. Estou aqui.

Anónimo disse...

Tudo de bom para si e para os que mais ama.
Gosto muito da sua escrita.

Anónimo disse...

Excelente Post! UJM no seu melhor!
P.Rufino

Humberto disse...

Caríssima UJM
O melhor para si e para os que lhe são queridos
Um beijinho cheio de ternura e amizade
E é claro que estou e estarei sempre aqui
HB

Um Jeito Manso disse...

A Todos,

O meu sentido agradecimento pelas vossas palavras.

Vai correr bem, estou confiante. Depois de uns dias de medo, ao saber que o mal parece estar confinado deu-me para me sentir cheia de esperança.

Muito obrigada. Quando este sufoco tiver passado, darei notícias.

Um abraço a todos.