quarta-feira, junho 18, 2014

Há não sei quantos mil anos procuro apenas uma palavra, quase todo eu matéria-prima, este pequeno poema, a sombra dos elementos por cima [Herberto Helder, Bertil Nilsson e Arvo Pärt - les beaux esprits se rencontrent]






há não sei quantos mil anos um canavial estremeceu na Assíria
e um douto poeta inscreveu esse tremor num curto poema lírico
lido agora por mim junto a um canavial nos subúrbios de Lisboa
e eu penso que os dois canaviais estremeceram igualmente
a tantos tempos e lugares de distância
e só se extinguirão devorados pelo fogo
quando o fogo devorar a terra inteira







folhas soltas, cadernos, livros, montões inexplicáveis, e cada
vez que lhes toco fica tudo mais caótico e não
descubro nada,
às vezes procuro apenas uma palavra que algures na 
desordem estava certa,
nos âmagos e umbigos da alma:
brilhava,






uma vez encontrei um relâmpago, e quase morri de assombro,
quase via alguma coisas nos jardins de outro mundo,
quase via o fogo que nascia,
quase irrompeu um poema quase sem uma palavra errada,
quase me tocaram,
quase nasci ali mesmo nesse ápice da terra inteira,
quase que a mão esquerda se moveu dentro da desordem,
quase tinha pegado fogo mas já estava fora,
quase todo eu era matéria-prima,






mas de repente não,
de repente as coisas colocadas regressavam
e entre elas, dentro, sentado, eu apenas escrevia isto,
caótico como antes era:
livros, folhas soltas, cadernos, etc.,
este pequeno poema que deixava tudo revôlto como dantes era,
e eu não tocava em nada e nada me tocara,
e nada se tocara entre si,
e eu morria aos poucos como era costume na época






que nenhum outro pensamento me doesse, nenhuma 
imagem profunda:
noite erguida até à derradeira estrela
cravada entre os meus olhos cegos







a sombra dos elementos por cima


________________


O poema, quase aterradoramente belo, é de Herberto helder e faz parte do seu último livro, A Morte sem Mestre, que tem trechos desconcertantes e outros assim, belíssimos, arrancados às entranhas da terra. 

O primeiro que aqui se lê e que dividi em quatro trechos, no livro começa na página 54 e acaba na página 56. O penúltimo está na página 40. O último verso (a sombra dos elementos por cima) é a parte final do poema da página 30.

O filme lá em cima, intitulado Another Me, é da autoria de Bertil Nilsson, um sueco muito talentoso que vive no Reino Unido, e foi filmado em Portugal com o bailarino Miguel Esteves. As fotografias são também de sua autoria.


A música do último vídeo é Spiegel im Spiegel de Arvo Pärt


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6 comentários:

A Matéria dos Livros disse...

Lindo!

Também gostei muito da nova configuração do blogue. Como consegue colocar uma fotografia inteira no fundo? Tenho tentado,mas não consigo.

Um abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora,

À hora a que me dá na cabeça mudar o aspecto do blogue não tenho tempo para coisas complicadas: vou ao 'modelo', depois 'personalizar', depois no 'fundo' escolho um dos fundos que lá estão. Desta vez, como tinha escolhido uma imagem para pôr junto ao título (e essa coloco no 'esquema') em tons azuis e amarelo esverdeado, queria um fundo que estivesse no tom mas que fizesse o contraponto ao aspecto algo futurista da imagem. Por isso escolhi este da maçã.

Se há coisa que gosto de fazer é mudar o look do blogue. Se tivesse tempo mudava-o todas as semanas. Mas, como depois sou toda de mariquices e mudo as cores todas daquilo (a cor do título, a do título da mensagem, a das hiperligações, etc) para ficar tudo coerente e ao meu gosto, gasto um tempo desgraçado e acabo por me deitar sempre às quinhentas.

Se não conseguir, diga-me que eu tentarei dar os passos mais pormenorizados.

Um abraço!

Fernando Ribeiro disse...

O primeiro vídeo, o do Bertil Nilsson, foi feito no Portinho da Arrábida. Reconheci-o logo e fiquei cheio de desejos de ir já, já a correr para lá... Há um par de anos que não ponho lá os pés. Aquela serra enche-me as medidas.

Um Jeito Manso disse...

Olá Fernando Ribeiro,

Será? Tantas vezes que lá fui... Os meus pais adoravam aquilo e iam para lá quando eu era pequena. A estrada é estreita e muitas vezes não havia lugar para deixar o carro e, então, o meu pai tinha que voltar a subir mas de marcha atrás, entre carros, a subir. Eu odiava aquilo. Depois o carro ficava longe, muitas vezes ficava na estrada por cima, em Alportuche (ou Alpertuche, não me lembro) e tínhamos que descer por caminhos de mato. Eu gostava muito da praia mas o calvário para lá chegar não me parecia compensar.

Ainda agora tenho esse trauma...

Mas, olhando para as imagens não é, para mim, claro que não seja uma praia no Algarve, daquelas ali na zona de Lagos, Vila do Bispo/Sagres que têm também rocha a envolver.

Voltando à Serra da Arrábida, por ser também lugar de paixão dos meus pais fui lá imenso em miúda e jovem. Os meus tios que morreram recentemente também adoravam a Serra e, por isso, é lá que estão agora as suas cinzas.

tenho que lá voltar.

Um abraço, Fernando.

Fernando Ribeiro disse...

É no Portinho, é, amiga UJM. O vídeo foi feito no outro extremo da praia, relativamente ao pequeno forte e ao acesso de que fala. Agora, deste outro lado, há também um acesso direto à praia, com algumas (poucas) dezenas de lugares de estacionamento.

Fernando Ribeiro disse...

Pedindo imensa desculpa pela insistência, venho partilhar consigo um link, que recebi há poucos dias por email, sobre a Serra da Arrábida: https://www.youtube.com/watch?v=D27lePTINcA. Os lugares que consegui identificar são os seguintes:

0:00 - Galapos
1:12 - Convento Velho dos Capuchos
1:40 - Convento (Novo) dos Capuchos, sede da Fundação Oriente
1:47 - Galapos, a minúscula Praia dos Coelhos e Portinho da Arrábida
1:53 - Portinho da Arrábida
2:45 - Calhariz ou Casais da Serra?
3:15 - Fojo?
3:40 - Alto do Formosinho
3:56 - Vista a partir das imediações de Aldeia de Irmãos?
4:12 - Vale de Picheleiros visto a partir das imediações de Vila Nogueira de Azeitão
4:30 - Vista a partir das imediações de Aldeia da Piedade?
4:54 - Vista a partir da Serra da Arrábida para a Costa de Troia, Comporta e Costa da Galé
5:03 - Portinho da Arrábida
5:15 - Galapos, a minúscula Praia dos Coelhos e Portinho da Arrábida
5:25 - Galapos e Praia dos Coelhos
5:34 - Portinho da Arrábida
5:40 - Crista da Serra da Arrábida
5:58 - Mata do Solitário
6:03 - Convento dos Capuchos
6:11 - Vista a partir das imediações do Convento dos Capuchos?
6:16 - Fojo
6:29 - Pedra da Anixa
6:37 - Lapa de Santa Margarida
6:50 - Mata do Solitário
7:13 - Vista a partir do Alto do Formosinho, o ponto mais elevado da Serra da Arrábida
7:20 - Vista a partir das imediações do Convento dos Capuchos