quinta-feira, janeiro 03, 2013

Um chá para Alice. E eu, quase Alice, a ver um coelho do lado de lá do espelho. Safado do coelho.


Poderia chamar-me Alice. Gosto do nome. Alice.




Estava na minha casa de que tanto gosto, uma casa perto do céu. Lá em baixo as casas são pequeninas, as pessoas são pequeninas, parecidas umas com as outras, talvez sejam, até, todas iguais. Mais ao longe, as casas são também tão pequeninas que as pessoas já nem se vêem. Os barquinhos passam devagar no rio, barquinhos brancos, e parecem barquinhos de papel, frágeis, insignificantes. E eu, cá em cima, olho para mim e pareço-me grande quando comparada com as pessoazinhas pequeninas lá em baixo, lá ao longe. 




Da minha casa vejo, pois, a cidade e, para lá do rio, outra cidade. E mais outra. E mais outra, E mais outra. E mais outra. Cidadezinhas feitas de casinhas tão ínfimas, habitadas por pessoas tão microscópicas que ninguém leva a sério. Apenas as próprias se levam a sério. Ou talvez nem isso.




Mais ao longe, as cidades quase desaparecem, fundidas na paisagem. Até a grande serra do sol parece um desenho infantil. Vejam. Está à direita e é apenas um pequeno triângulo que se confunde com o céu.

A janela da minha sala é a abertura para este mundo mágico. Como uma porta, a minha janela dá passagem para a casa das pessoas pequeninas, para a pequena serra, para o grande rio, para o céu imenso.

Saio por ela. Umas vezes vou no dorso de uma gaivota, outras sou eu que abro as asas e vou, e voo.

Hoje fui com a minha amiga gaivota.

Fui ter a um jardim mágico. Meninos e pássaros e patos. Muitos patos. Galanteadores, coloridos.




Andam no meio dos meninos e os meninos dão-lhes pão, riem, gritam e eles gritam também e os meninos imitam os gritos e todos riem, os meninos pequeninos e os patos grandes.

Eis senão quando, no meio dos patos azougados e vistosos, um ser pálido, anémico, ar infeliz, vagueia, ar infeliz, vergado.

Nem quero acreditar. Que pena sinto.




É a minha amiga gaivota. Sem cor, perdida, humilhada, ali anda no meio dos patos. Parece a prima pobre, infeliz, descarnada. Eles ignoram-na, vaidosos, confiantes, pataqui, patacolá, cuá, cuá.

Habituada ao mar e às alturas, aos largos espaços, aqui ela amesquinha-se, perde a sua grandeza. Oh minha amiga gaivota.

Digo-lhe que não demoro, que não se aflija que eu já volto, iremos as duas para a nossa casa. E prossigo.

Até que caio numa toca. A toca de um coelho. Um coelho...? Bahhhh... Essa praga. Coelho, esse pateta malcriado.





Fingiu-se de bonzinho, dizia que era amigo, bem falante, bem parecido, safado do coelho. Eu nunca me deixei enganar, mas se calhar é porque gosto de espreitar do lado de lá do espelho.




Quem sou eu?, pergunto-me e tento ver para além de mim, para além da que me olha. E, às vezes, quando passo para o lado de lá do espelho para ver se me descubro, não apenas encontro a minha alma como encontro outras, as almas perdidas dos coelhos e outros bichos mal afamados. E foi numa dessas vezes que vi que ele, o coelho falsário, dizia uma coisa pela frente e o contrário por trás, quando a sua alma estava do lado de lá do espelho, safado do coelho.

Num outro dia, espreitei. O coelho vestido de homem, todo encasacado, estava à mesa a tomar chá. Cara de palerma, estava com um bicho ao seu lado, um bicho esquisito, talvez um rato, uma ratazana, se calhar era uma ratazana das sargetas, bajuladora, ratazana peganhenta.




À sua frente estava um homem de que não vi a cara. Um homem grande. Se calhar era um representante dos mercados, ou um qualquer funcionário de uma qualquer coisa. Não sei. Um palhaço qualquer. Pelo menos, de trás, a rouparia parecia ser de palhaço. E o coelho ouvia muito atento, muito circunspecto, muito bom aluno. Este coelho safado tem a mania que é um bom aluno, o palerma do coelho.




Eu, que umas vezes sou pequenina e voo às cavalitas de uma gaivota, outras que sou grande e vivo pertinho do céu, estou aqui para vos contar este segredo, que já não é segredo nenhum, eu sei, mas ouçam: o sacana do coelho é um palerma, não sabe nada, não pensa, não faz contas, não sabe escrever, não sabe ler, e é mau, o safado do coelho. Senta-se à mesa dos que se julgam poderosos e depois acha-se também poderoso. Mas não é, não tenham medo dele. Não passa de um coelho balhelho, um vulgar fedelho balhelho.

A seguir, já a tarde caía, fui preparar um chá para mim e para a minha amiga gaivota. Fui à árvore dos bules e escolhi um.




Ah que bom deve estar esse chá, rescende que é um encanto, disse a minha amiga gaivota, agora já menos triste. Vou pôr a mesa, disse ela, toda feliz e prendada. 




Mas oh minha maluca, para que é tanta louça se somos só nós duas?, perguntei-lhe. Então ela piscou-me o olho. É que temos convidados, não tenho é cadeiras.

Então, apareceram dois rapazinhos a correr e um deles, o mais pequenino, num ápice, pegou nas pedrinhas que estavam no vaso da árvore dos bules e atirou-as ao chão. E ficou-se a rir, o terrível menino, perante a atrapalhação dos crescidos que deviam tomar conta dele.

A gaivota atirou-se para trás a rir, ah, este ex-bebé é um maroto sem igual. E então, com o seu bico, toda maternal, com medo que o segurança pregasse um raspanete no menino e na família do menino, apanhou as pedrinhas, uma por uma. 

Depois, para nos acalmarmos, bebemos todos o tal cházinho: eu, que me podia chamar Alice, o meu namorado, a minha filha que é muito bonita, os meus netos que são muito divertidos e a gaivota que sabe todos os meus segredos.

Ao nosso lado a televisão passava o canal parlamento.




Quando reparou nisso a minha amiga gaivota desatou a rir, a rir, soltava estridentes gargalhadas, chorava de tanto rir. Olha-me aquele porco! E o macacão... E o tubarão, olha-m'ele, de olho guloso...! E olha'me aquele, a fingir que é doutor, a vender banha da cobra. Quem é? Quem é? Adivinhem... Andou calado por uns tempos, escondido como um rato, uma ratazana, e agora apareceu todo impante e aí anda, o espertalhaço, sorrisinho de soberba. E olhem a macacada e os porcos, vejam como o veneram. E aquela, meia verde, que o ouve toda babada, olhem a carinha de parva que tem...

Os meninos deliraram com aquela bicharada toda. Perguntaram: Quem são? Quem são? Fazem o quê, aqueles?

E a gaivota disse: Desculpem, mas não consigo responder, já me dói a barriga de tanto rir. 


*

As fotografias foram feitas estas quarta feira. Umas são parte do que avisto da minha janela. Outras são imagens que podem ser vistas na exposição Um chá para Alice na Fundação Gulbenkian e, ainda, imagens de patos e de uma gaivota lá nos Jardins. Nas imagens relativas à exposição, as bolinhas brancas são o reflexo dos projectores - ou então, são bolinhas mágicas, não sei.

*

Se me permitem, gostava ainda de vos convidar: muito gostaria de vos receber no meu Ginjal e Lisboa. As minhas palavras hoje apresentam armas após leitura de um poema de Hélia Correia. A música não tem nada a ver, é apenas um momento feliz. Carminho e Chico Buarque cantam Carolina. Bom de ver e, melhor, de ouvir.

*

E, por hoje, vou regressar à minha toca. Tenham, vocês, meus Caros Leitores, uma bela e feliz quinta-feira.

12 comentários:

Anónimo disse...

Cara UJM:
Quanta imaginação!
Ficção e realidade tão bem intrusadas que me deixa baralhada...
Serão figuras de papel ou figurões de verdade?
Que a fantasia e a brincadeira continuem a animar a sua vida, e a estimular as nossas leituras.
E tenha dias sempre felizes!
Abraço amigo da
Leanor

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

Gostei..e muito do seu voo sobre a cidade para ir aterrar no País das Maravilhas da Alice na espectacular exposição da Gulbenkian!
Belo voo e uma luminosa imaginação em mais um belíssimo texto!

Os meus parabéns!

Mar Arável disse...

Belíssima viagem

Uma ternura

jrd disse...

Também eu gosto muito de gaivotas e, sobretudo, do seu simbolismo.
Tanto, que um dia destes adormeci com uma Gaivota no peito, tive sonhos de mar e espanto, só dei por mim quando um leve bater de asas me acordou. Ela tinha partido (já não mora aqui...) e eu nunca mais volto a adormecer com a janela do quarto aberta.

Quanto ao coelho, ainda por cima antropomórfico, é melhor esquecer...

Um abraço

Anónimo disse...

Olá jeitinho,
adorei esta Alice, é que à outra Alice não lhe acho muita graça. Já me fez rir com o coelho aldrabão
( palavras minhas).
E.... adorei o novo visual, é refrescante parece verão.
Beijinhos Ana

Maria Eduardo disse...

Olá UJM,
Gostei tanto e que imaginação!... Parabéns por este seu dom de sonhar e encantar os outros. Foi um misto de realidade e ficção, uma viagem mágica que fiz, na companhia da "quase Alice", desde a janela de sua casa, nas asas da sua gaivota, até à belíssima exposição da Gulbenkian, e aí tomámos um cházinho na companhia das crianças e dos animais. Um conto muito imaginativo, para as crianças e para os seus Leitores, porque todos temos dentro de nós, um pouco da criança que já fomos.
O Ano Novo promete!...
Obrigada UJM, uma maravilha.
maria eduardo

Um Jeito Manso disse...

Olá Leanor,

Não é muita imaginação, não. Uma grande parte do que escrevi não anda longe da realidade. A gaivota anémica andava mesmo ali, infeliz, perante o desprezo absoluto dos patos. A exposição da Alice está lá, é uma graça, e fui visitá-la esta quarta feira. A cena das pedrinhas passou-se mesmo com o ex-bebé a fazer das dele. Rápido como uma flecha. Põe-se a olhar com ar apreciador e nós encantados com a atenção e o apreço que ele demonstra e, depois, numa ínfima fracção de segundo, arranca e faz uma daquelas. Nem queira saber a nossa atrapalhação. Parte da obra de arte espalhada pelo chão. Todos à pressa a apanhar pedrinhas. Que horror.

Quanto ao coelho, ao rato, à animalada na tribuna, etc, também não é imaginação minha...

Mas há uma coisa que é verdadeira: adoro brincar e divertir-me. Aliás já sabe disso. tenho uma certa dificuldade em portar-me bem.

Um abraço, Leanor e dias felizes também para si!

Um Jeito Manso disse...

Olá Joaquim!

Sabe que esta quarta feira me lembrei de si. Antes de ter ido ver a exposição da Alice (onde fomos em bando) fui eu sozinha ver a exposição 'As idades do mar', uma exposição maravilhosa. Os outros não foram com medo de que os miúdos se portassem mal num sítio mais sério. Por isso, fui eu, com calma, sem ninguém a puxar por mim, ou a chamar por mim, ou eu ter que andar de olho neles (em vez de me poder concentrar na exposição).

Mas logo havia de falhar uma coisa... Não era possível tirar fotografias... Ainda tentei negociar ('sem flash...') mas a negativa manteve-se. E a marcação era cerrada, montes de seguranças. Por isso, nem sei se vou aqui escrever sobre ela. Talvez. Terei que ver se consigo arranjar imagens das obras expostas.

Mas já viu o disparate? Uma exposição até parece que não é exposição se a gente não a puder fotografar, não é?

Um abraço!

Um Jeito Manso disse...

Olá Eufrázio Filipe,

Muito obrigada.

Quando estava a escrever lembrei-me do que às vezes escreve e, assim, com as suas palavras em mente, escrevi: " abro as asas e vou, e voo". Por isso também, muito obrigada.

Um abraço!

Um Jeito Manso disse...

jrd,

Que palavras as suas. Já as li várias vezes. Uma maravilha. Gostava de ter sido eu a escrevê-las pois parecem palavras que vivem dentro de mim.

Gostei muito, muito.

(Lendo-as, já nem sei de que coelho me está a falar, já perdeu qualquer relevo - se é que alguma vez o teve)

Um abraço, jrd.

Um Jeito Manso disse...

Olá Ana,

Ufff... então esta moça merece a sua aprovação... eu agora já não as quero com ar pérfido. Escolhi esta porque tem um toque de mistério e isso agrada-me. E tem sombras mas são umas sombras coloridas o que torna aquela geometria muito pouco sombria. Ou seja não é cinzentona, tem cor, e, espero, apele a tempos agradáveis.

Quanto a esta minha Alice deu-me um certo prazer de escrever. Um dia destes ainda começo a escrever historinhas para crianças (mas que têm mais graça se forem lidas por adultos).

:)

Um beijinho, Ana, e muito obrigada pelas suas palavras!

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria Eduardo,

Ao ler o que aqui escreveu já fico com um certo rebate de consciência por ter escrito o que há bocado escrevi. Estava fula com esta gente que para aqui anda, uns ignorantes, outros cobardes. O país a definhar e a empobrecer para nada, com as contas cada vez piores. Parece que estão a governar para os mercados e não para as pessoas. Que gente mais estúpida.

E já estou eu outra vez furiosa... Já viu? Esta gente tira-me do sério. Irritam-me.

Eu prefiro ser mansinha, brincalhona. Mas estas coisas metem-se-me pelos olhos dentro, não posso fazer de conta que não as vejo, não é?

A ver se ainda consigo inspirar-me para escrever alguma coisa agradável...

Um beijinho, Maria Eduardo, e muito, muito obrigada pela simpatia e generosidade das suas palavras.