quinta-feira, maio 17, 2012

Ana e o carpinteiro na noite de todas as palavras


Música, por favor
Johann Strauss - Valsa de Viena





Na noite do baile, Ana dançou com o altivo carpinteiro (que surpreendeu toda a gente, de tal forma estava outro), dançou com o dono da oficina, com o presidente do município, com o rapaz das tintas e com vários outros pares. Se as mulheres a olhavam de soslaio, enciumadas pelo interesse que ela despertava nos homens, era coisa que não a afectava. Se falavam veladamente sobre algum possível romance com o carpinteiro, era coisa que também não lhe despertava qualquer interesse. Sempre fez o que quis, tendo como únicas preocupações o não magoar ninguém e o agir de acordo com a sua consciência. Se queriam comentar, censurar, especular, era coisa que não a preocupava minimamente. Sempre assim fora, não era agora que ia mudar. Se tivessem alguma coisa de relevante a dizer, que lhe dissessem a ela; se consideravam que era irrelevante e preferiam falar pelas costas, melhor, era da maneira que não a maçavam.

Naquele ambiente de baile e festa, Ana sentia que o carpinteiro estava talvez pouco à vontade mas era um homem orgulhoso, que respirava dignidade e, portanto, disfarçava muito bem a insegurança, ostentando altivez  e indiferença. Ana apreciava muito a atitude, e, por vezes, atravessava o salão de braço dado com ele, mas com naturalidade, deliberadamente mostrando que não tinha nada a esconder.

Mas, sem saber porquê, estava um bocado inquieta. Talvez sentisse que aquela fase da sua vida estava a chegar ao fim, talvez sentisse saudades do que tinha deixado para trás, talvez a visita do outro dia a perturbasse, talvez não quisesse pensar na ideia de deixar a vila, estas pessoas tão afáveis, talvez lamentasse afastar-se do altivo carpinteiro - não sabia, era uma inquietação difusa.

No final do baile, o carpinteiro foi levá-la a casa. Ana convidou-o a entrar. Tenso, sem perceber bem qual o intuito e pensando também que no dia seguinte não se falaria noutra coisa, lá entrou.


Música, de novo, por favor

 Bach, Misha Quint interpreta Air in the G String





Foram para o quintal, Ana escolheu uma música, depois foi pôr-se mais à vontade, arranjou um sumo fresco para cada um. 'Conte-me alguma coisa de si', pediu-lhe.

'Não sou disso, de conversas. Nem tenho nada a contar; mesmo que quisesse, não tenho nada, é tudo muito normal, sem interesse', disse em voz baixa o carpinteiro. Estas intimidades deixavam-no muito pouco à vontade.

'Tem, com certeza que tem, conte-me algumas coisas da sua vida, gosto de ouvir... conte-me...', Ana insistiu, queria mesmo escutar uma conversa mansa, lenta. Conversar sem pressa tranquilizava-a. Apetecia-lhe imenso ouvir a voz do carpinteiro, apetecia-lhe imenso ouvir uma conversa vinda da alma. 'Pode ser uma recordação marcante, memórias de outros tempos, ou então, fale de coisa nenhuma, ou do que pensa quanto está na carpintaria a afagar a madeira, qualquer coisa'.

Então ele começou na sua bela voz profunda, e a fala fluía, densa mas intangível: Aquilo de que me lembro (num presente que me parece também já passado) está cheio não só de estranhezas e improbabilidades mas igualmente de vazios, de hesitações e imprecisões, pois se calhar não me recordo de factos mas da minha recordação deles. Pode por isso suceder que o que recordo não seja o que ouvi; ou que o tenha ouvido a outra pessoa, noutro lugar, noutras circunstâncias; ou mesmo que o tenha eu próprio sonhado ou imaginado. Ouvi e li muitas coisas desde a minha distante primeira viagem ao estrangeiro, onde tudo (pelo menos aquilo de que me lembro) começa. Talvez, quem sabe?, nem essa viagem tenha acontecido, ou eu a tenha lido, ou ouvido contar a alguém. A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, memória. Lembro-me, pois, como quem procura alguma coisa ou alguém, e amparo-me por isso cuidadosamente às minúcias como se caminhasse sobre um chão incerto ou como se receasse perder-me. Porque é talvez a mim mesmo (isto é, à minha memória) a quem, tantos anos depois, falo daquilo que me lembro.

Ana ouvia-o abismada, imóvel e em silêncio, não fosse a magia do momento perder-se. Ele falava baixo, era uma toada, e as palavras soavam a Ana como uma estranha música em que finalmente tudo parecia fazer sentido. A memória, o sonho, a interiorização, a matéria das emoções, a beleza das palavras puras, o assombro.

Ana sentia que as lágrimas estavam prestes a saltar-lhe tal a emoção que sentia. Não conseguia falar.

E o carpinteiro continuou falando assim e Ana sentia-se embalada, num colo, num berço macio.

Depois, já muito tarde, já toda a inquietação tinha saído do seu corpo, estava já ela tapada com uma manta e o carpinteiro ainda dizia, falando, então, da solidão na sua carpintaria:

                                O dia sobe sobre os surdos ruídos da casa
                                sobre os calendários que ninguém teve tempo de
                                tirar das paredes e agora prolongam nos nossos olhos
                                paisagens de rios e açudes que nunca
                                existiram em lado nenhum a não ser
                                na saudade que alguém há-de ter deles
                                pelo meio de uma infância de aldeias
                                morrendo ao sol


                                e abrimos os livros que tínhamos deixado
                                nas estantes cobertas de silêncio


                                e agora escorre a noite pelas paredes
                                desta casa que a tua ausência torna
                                subitamente    enorme

mas, então, já Ana tinha adormecido, já não ouviu a última parte. E vendo-a assim, aninhada e adormecida, o carpinteiro pegou nela com muito cuidado e levou-a ao colo para o quarto. Depois tapou-a com carinho. Quando ia a sair, voltou atrás e deu-lhe um beijo na testa, chegando-lhe o cabelo para o lado.

****

O texto em prosa em itálico é um excerto do livro 'Os papéis de K.' de Manuel António Pina e o texto em itálico mas em poesia é um excerto de um poema de Alice Vieira pertencente ao livro 'O que dói às aves'.

E, já agora: hoje, lá no meu Ginjal e Lisboa as minhas palavras são confessionais e voam em volta do meu amor e de um poema de Maria do Rosário Pedreira. A música é de Donizetti.

Desculpem que me repita: caso tenham aterrado agora aqui e queiram ler a história de Ana desde o princípio, poderão procurar 'Ana muda de vida' nas etiquetas aí ao lado, mais para baixo.

****

E, já sabem, desejo-vos, meus Caros Leitores, uma belíssima quinta feira. 

Aproveitem bem cada pequeno instante da vossa vida. E, claro, divirtam-se, está bem?
                            

14 comentários:

A Matéria dos Livros disse...

Mas que carpinteiro tão sedutor! chamar-lhe-ia "um carpinteiro sublimado", um homem que não é dali, será de algures, talvez de um romance de Ana Teresa Pereira - um desses estranhos anjos...
Ana, um exemplo de charme e segrança; de onde vem, onde quer chegar? (Já pareço uma intrigada mulher da aldeia...)

Um beijinho

Isabel disse...

E a seguir?!...
Estou curiosa com a continuação da história.

Anónimo disse...

Bela prosa! E que mulher interessante, esta Ana! E boa música, as well!
P.Rufino
PS: com a partida do nosso rapaz (ontem, ao fim de 10 dias e meio, contados ao segundo!- felizmente chega, para breve, o outro, para nos animar) voltei aos meus antigos bons hábitos regulares, como por exemplo, de ler este seu excelente Blogue.

Maria disse...

Amiga:
Hoje andei a dar volta à casa, mudei colchas, cortinas, mudei algumas coisas de lugar, para ver se não me lembro tanto.
Amanhã, se o meu marido estiver bem das costas, vamos arejar. Pela primeira vez, sinto-me mal, em casa. Preciso de sair. Sábado, também tenho uma coisa marcada. No Domingo, vou ler a "Ana" e comentar. Hoje li um bocadinho e, agradou-me o que li.
Depois digo.
Está a custar muito a passar.
Às vezes, olhamos um para o outro, com as lágrimas nos olhos.
Temos de continuar a viver, mas quando a idade pesa, é pior.
Beijinhos, Amiga
Mary

Anónimo disse...

Cara UJM:
Que segredo encerra a alma superior do simples carpinteiro?
Um artista que talha e transfigura a madeira, mas também um artista da palavra.
E Ana? Por certo, não ficou indiferente àquela harmoniosa orquestra de palavras e ao acertado devaneio do pensamento do carpinteiro.
Que abalos trará o raiar da madrugada!

E tenha dias felizes e criativos
Abraço amigo da
Leanor formosa e segura

Pôr do Sol disse...

Pois é, Ana, faltava qualquer coisa!

Partiu liberta, para a construção um mundo novo diferente do passado, à sua medida. Depois de o pôr a rodar, o Sol era pouco quente, sem brilho.Compreende-se.

Mas e amanhã? Depois do baile? Vão pensar: Não lhe bastava ter chegado, visto e vencido? Não lhe bastava ter ido tão longe? Como se elas não existissem?

Viram-no sair lá de casa tarde, viram a luz do quarto acesa...

Ana, Ana, que tempestade virá aí?
Aguardemos curiosos.

Um Jeito Manso disse...

Meus Queridos leitores, todos,

Uma vez mais vou ficar em falta perante vós. No post que acabei de publicar explico porque não consigo ter tempo para vos responder individualmente a cada um de vós.

As minhas desculpas.

Uma boa sexta feira a todos!

Um Jeito Manso disse...

Leitora de A Matéria dos Livros,

Gostei de imaginar o carpinteiro como um anjo saído da imaginação de Ana Teresa Pereira. Este homem está a ser para mim uma agradável descoberta.

Geralmente começo pelas mulheres mas acaba por me sair um homem interessante no caminho.

Essa sua expressão, 'carpinteiro sublimado' é bem interessante e já sabe que a mim as ideias interessantes dão-me sempre ideias...

Um Jeito Manso disse...

Isabel,

Respondo com 1 dia de atraso pelo que já viu o que aconteceu... ou melhor, o que começou a acontecer... Porque as revelações ainda estão para vir...

Um beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Veja lá que pensava que o seu filho já se tinha ido embora (ou os 10 dias renderam bem - e para vocês oh se devem ter rendido, ou então quando me disse que ele vinha eu comecei logo a contar...).

Ainda bem que o outro está quase a vir. Claro que se adaptaram já a esta situação mas não deve ser fácil. Eu como tenho os meus por perto (e todos os dias abençoo a sorte que tenho tido e desejo muito que assim nos mantenhamos todos, junto uns dos outros) costuma-me imenso imaginar o que é ter os filhos longe. Mas, enfim, infelizmente é a situação mais frequente nos dias que correm.

Obrigada pelo regresso e pelas suas palavras!

Um Jeito Manso disse...

Mary, olá!

Já falei consigo por outra via mas volto aqui só para ralhar com a menina: nada de falar da idade. Não pesa nada, ora essa. Ponha os olhos no Manuel de Oliveira, veja lá os projectos que aquele jovem ainda tem...

Mudar coisas em casa é uma ideia muito boa e mudar coisas em casa é uma coisa que dá boa disposição.

Um beijinho, menina Maryzinha.

Um Jeito Manso disse...

Pois é, Leanor, formosa, segura e curiosa,

Que segredos...? Eu ainda não tinha pensado muito nisso, que ele deve esconder segredos mas agora com essa sua e com a da Leitora da Matéria dos Livros, já estou curiosa com isso, vou ter que desvendar mais da alma do 'carpinteiro sublimado'...

Um abraço, Leanor.

Um Jeito Manso disse...

Pôr do Sol,

Já há grande falatório na vila, claro que sim. Mas Ana passa pelas pessoas, olha-as nos olhos, sorri, cumprimenta e deixa-as desarmadas.

Mas, mesmo já tendo escrito um texto depois deste, acho que ainda não houve nada entre eles, acho que, da parte de Ana, é sobretudo empatia, simpatia, uma estranha afinidade (pela via do gosto pelas palavras, talvez).

Vamos ver... Mas estou a gostar do carpinteiro, lá isso estou.

Obrigada pelo estímulo e um beijinho Sol Nascente.

Um Jeito Manso disse...

A todos,

Estava a sentir-me uma ingrata por não falar com cada um e, por isso, ainda que atrasada, voltei cá.

Obrigada pela vossa compreensão!