Muito perto da casa de uma das minhas avós, morava uma senhora que era modista. Era uma senhora com um timbre de voz diferente, que eu achava distinto. E todo o seu porte me parecia distinto.
Era uma senhora forte, de alguma imponência, apesar de agora achar que não deveria ser muito alta; tinha algum problema nas pernas de tipo artrítico porque me recordo que parecia deslocar-se com alguma lentidão, o que na altura ainda me parecia mais majestático; e tinha o cabelo muito preto, certamente pintado, porque já não era nova, mas não me lembro de reparar que às vezes tivesse raízes brancas. O marido, em contrapartida, era alto e magro, pessoa discreta mas mais faladora. Ela não, ela era muito reservada, impunha algum respeito.
Na parte de trás da casa havia um anexo muito grande, com uma das paredes toda em janelas. No lado de fora, abaixo das janelas, havia vasos sempre floridos e, do lado de dentro, também abaixo das janelas havia uns bancos compridos também com vasos de flores. A entrada era pela parede de topo e ao lado da porta havia também janelas. Lá dentro havia sol, flores e alegria e como tinha toda uma grande superfície de janelas, estava sempre quentinho, agradável, lembro-me que o ambiente era particularmente acolhedor.

A vizinha modista tinha a seu cargo várias costureiras. Eram mulheres bem dispostas, risonhas, ouviam rádio, às vezes cantavam quando tocava alguma canção da moda. Lembro-me de haver um cheiro muito feminino, a mulheres, a tecidos, a flores. E conversas às vezes cúmplices, outras vezes brejeiras. Eu não percebia o que diziam mas percebia pelos risos, pelas vozes ciciadas, pelos olhares, que havia ali qualquer coisa de vagamente interdito e que hoje reconheço como um ambiente tipicamente feminino. Que me lembre nunca o marido da vizinha modista ali entrou.
Regularmente ia lá o carteiro entregar pacotes que continham revistas de moda, revistas estrangeiras, com moldes ou figurinos.
Tento recordar-me do nome mas não estou certa (entre elas estaria a Vogue? Tenho essa ideia mas, a ser, era de maiores dimensões do que é hoje).
Ao meio do atelier havia uma mesa muito grande, onde se encontravam frequentemente os figurinos, que tinham contornos distintos consoante a medida. Estava sempre lá, também, um metro de madeira, fitas métricas, paus de giz, uma grande tesoura preta e outras mais pequenas, uma que cortava o tecido aos biquinhos (penso que para não se desfiar), almofadas com alfinetes. Era aí que a vizinha modista talhava as peças de vestuário.
As costureiras estavam sentadas ao longo da parede do fundo, umas à máquina, outra em banquinhos mais baixos, com cestas ao lado; e, no canto oposto à porta, separado por uma armação onde tenho ideia que havia também vasos com flores, havia o recanto para as provas, com cabides de pé e dois grandes espelhos.
A vizinha modista era tratada pelas outras mulheres com alguma solenidade e tolerava com condescendência e indiferença o seu bulício. Não me lembro de a ver participar nas alegres conversas delas mas também não me lembro de a ouvir alguma vez falar mais rispidamente com alguma.
À casa da vizinha modista vinham senhoras distintas da cidade e vinham, sobretudo, a dona da fábrica, as suas filhas e as suas netas, e uma senhora condessa e família, e todas estas vinham nos seus grandes carros pretos com motorista.
Eram também os motoristas que transportavam as peças de tecido, as boas fazendas, as cashemiras, os feltros, as sedas, as popelinas, a mousse de seda, a organza, o chiffon, a mousseline, os veludos.
Depois era já ela que, face aos tecidos e aos trabalhos em concreto, com umas amostrinhas que cortava da ponta dos tecidos, ia às lojas e comprava o tafetá, a entretela, galões, fechos, colchetes e demais acessórios e, depois de validar com as clientes, mandava forrar os botões.
Depois das aulas na escola infantil e na primária, eu ia muitas vezes para casa desta avó e, nas férias, muitas vezes também. Gostava essencialmente de andar na rua, a correr, a brincar pelos campos da redondeza mas, muitas vezes, antes de regressar a casa da minha avó, ou nas férias, de manhã e a seguir ao almoço, antes de me juntar aos meus amigos para a vadiagem, eu gostava de ir à casa, ou melhor, ao atelier da vizinha modista. A minha avó não queria, dizia que a vizinha modista não gostava de ser perturbada, que as senhoras não queriam lá crianças quando estavam nas provas mas eu nunca notei nada disso, eram todas muito simpáticas e eu acho que me portava bem. Adorava estar ali. Era o perfeito gineceu.
E eu gostava de ajudar e elas, percebendo isso, punham-me a apanhar os alfinetes, a fazer rolinhos com as fitas métricas, a regar as flores, a encher o borrifador, a separar os botões por cores, a organizar os carrinhos de linhas e eu sentia-me ali perfeitamente integrada.
Quando iam levar os tecidos, as senhoras sentavam-se com ela a debater os modelos, viam revistas, às vezes traziam elas próprias revistas, olhavam pensativas para os tecidos, depois para os modelos, hesitavam, a vizinha modista fazia esboços, propunha algumas alterações, as bandas maiores, o decote mais subido, um encaixe, pregas em vez de machos. Depois, quando chegavam a um consenso, a vizinha tirava-lhes as medidas, na cintura, na anca, no peito, abaixo do peito, aos ombros, depois esticava-se para tirar do ombro até à orla da bainha e as senhoras quase não respiravam não fosse o peito inflado distorcer as medições. E a vizinha tinha um caderninho para cada uma, e de cada vez que fazia uma nova peça, confirmava as medidas.
Depois das senhoras saírem, ela sentava-se e pensava, estudava, passava a limpo o desenho final, anotava no desenho as medidas que tinha tirado, via-se que continuava a pensar, via a largura do tecido, ensaiava.
Só então dava início à fase seguinte.
E eu, por ali, acompanhando tudo, sempre expectante por ver o que se ia seguir. Adorava, então, ver o modo profissional com que ela abria as peças de tecido, como ela olhava à transparência para ver o efeito, como deixava cair o tecido para ver como caía, como o agitava ao de leve para ver o movimento, como ela olhava cuidadosamente para ver qual o direito e qual o avesso nos casos em que mal se distinguia. Adorava ver como marcava as medidas no tecido, passando depois o giz com mão firme, depois o barulho da tesoura a roçar na mesa de madeira enquanto cortava. Algumas vezes havia trabalhos que ela fazia com muita atenção, estudando bem antes de cortar: uma saia em viés, uma de godés, por exemplo.
Muitas vezes ensaiava sobre um manequim de madeira, olhava, ajeitava, via de longe. Parecia que estava quase pronto mas não, era apenas um ensaio.
Depois, então, armava as peças e dava-lhes a primeira forma antes de as passar às costureiras.
A obra a tomar forma. E eu, menina pequena entre mulheres, por ali cirandando e tudo observando, fascinada coma perícia, com a competência, com a disciplina.
Eram cerca de seis ou sete mulheres, não me lembro bem, mas havia ali uma hierarquia. Havia as que estavam à máquina e faziam os trabalhos mais complicados; destas, uma era especialista em plissar, a Senhora (como elas lhe chamavam) dava-lhe as peças para plissar, para uma gola, para uma saia, trabalhos de grande perfeição e tecnicismo.
Outras tratavam de chulear, fazer bainhas, casas dos botões, ou seja, trabalhos manuais; depois havia uma ou duas, não me lembro, que penso que seriam as ajudantes, que tiravam alinhavos, coziam botões, abriam as costuras, passavam a ferro, por vezes engomavam mesmo (um caldo de goma, segundo me lembro), penso que era quando queriam enrijar as entretelas, limpavam o chão, recolhiam as peças de umas para outras, penduravam nos cabides, tudo muito perfeito e profissional.
E gostava de ver quando as clientes vinham e a Senhora fazia as provas, tarefa da qual exclusivamente ela se ocupava, e havia um cerimonial, e uma intimidade, a peça a ajustar-se ao corpo: fazer uma pinças, realçar os seios, fazer pinças da cintura para cima - duas nas costas, duas à frente - acertar o decote e por vezes cortava o tecido rente ao pescoço (e eu ficava atenta, não fosse resvalar-lhe a mão, parecia-me aquilo muito arriscado).
Ia pondo alfinetes ou alinhavava directamente no corpo, e depois, única excepção, chamava uma ‘rapariga’ para marcar a bainha porque custava-lhe dobrar-se, era aquele problema talvez dos joelhos (mas agora que estou a escrever tenho ideia que, às vezes, andava também aflita de uma anca, chegava a coxear, mas também pouco falava disso).
Enquanto as clientes lá estavam nas provas não havia música, nem conversetas, nem risotas. Era apenas o som do pedal e da roda das máquinas, o som suave dos tecidos, um banco que se arrastava ao de leve no soalho e a voz timbrada dela conversando com as senhoras.
Mas, mal as clientes saíam, as raparigas descomprimiam e era uma conversa pegada, falavam alto, riam, diziam piadas. Comentavam o que elas tinham dito, o que traziam vestido, calçado, uma excitação. A Senhora não. Deixava-as falar mas não se metia na conversa.
Sentava-se á grande mesa e analisava as alterações, as marcações, tomava notas no caderninho, ajeitava, ajustava, aferia, tirava alfinetes, fazia novos alinhavos e volta a dar o trabalho às ‘raparigas’.
Finalmente, quando as peças ficavam concluídas, eram sacudidas não fossem ter ficado algumas linhas e, finalmente, cuidadosamente engomadas. Depois eram colocadas num cabide que era suspenso num varão, e eram cobertas. Na altura eu pensava que eram cobertas com lençóis mas se calhar eram apenas panos que estavam sempre muito lavados e engomados.
Nessa altura a vizinha modista sentava-se, juntava uns papelinhos e fazia as contas. Depois passava os números para o caderninho da cliente e fazia outro papelinho com tudo muito explicado que lho entregava, explicando verbalmente as contas.
Por vezes vinham as senhoras buscar o trabalho e faziam a prova final só para confirmarem que o trabalho estava impecável, e pagar. Outras vezes, naquelas que tinham motoristas, eram eles que vinham buscar as peças que iam nos cabides, cobertas com os panos. Se eram camisas, blusas, saias, então iam cuidadosamente dobradas e embrulhadas nos panos. Quando vinham de novo, para novos trabalhos, traziam os cabides e os panos. Quando as senhoras ou os motoristas pagavam, depois de saírem, ela ia ao caderninho e anotava.
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Passado tanto tempo, quando penso nas pessoas que contribuíram para a minha formação, para além dos meus pais (claro!), avós, família chegada, professores, é na Vizinha Modista, no
Ti Luís que era sapateiro, pessoas assim - íntegras, boas, organizadas, trabalhadoras, dignas – que me lembro.
Muito do que sou devo-lhes a eles.