Eu sinto-me muito em dívida para com todos aqueles que me ensinaram seja o que for, os que me têm iluminado o caminho.
E penso que a influência dos outros é tanto mais marcante no nosso processo formativo, quanto mais cedo ela teve lugar.
Uma das pessoas de que me lembro muitas vezes é o Ti Luís, um senhor que exercia o mister de sapateiro. Vivia numa casa térrea no início da rua que dava acesso à casa de uma das minhas avós. A casa dele tinha uma parte com entrada independente que estava aberta para a rua. Nessa divisão caiada, de chão de cimento, ele tinha a sua oficina. Para entrar havia um degrau que ainda guardo na memória como um degrau muito alto embora tenha a percepção de que, à medida que fui crescendo, o degrau foi perdendo envergadura. Ele, com um grande avental (tenho ideia que seria de pele), sentava-se ao fundo, numa cadeira baixa, de frente para a porta e à sua volta, grande, tinha a banca de trabalho com muitos compartimentos. Em cada compartimento tinha sua coisa, nuns estavam ferramentas, inúmeras, que me fascinavam pela forma e pela diferente utilização que ele dava a cada uma, tesouras, agulhas, noutros tinha pregos, tachas, linhas, cordéis. Atrás dele, na parede, tinha penduradas peles, solas já cortadas. Numa parede de lado, ao fundo, tinha moldes. Em frente, na parede do outro lado, tinha prateleiras, umas com calçado que estava para arranjar e outras com calçado já arranjado e engraxado.
(Infelizmente não tenho numa fotografia do Ti Luís; esta é uma fotografia de Alfredo Marsia, sapateiro de Castelo Branco)
Eu conversava sobre tudo, tentava perceber como fazia ele o diagnóstico do problema do sapato, como se decidia pelo tratamento, porque usava isto e não aquilo, queria saber o nome a função de cada coisa, ajudava-o a fazer a cola (farinha com vinagre, seria?), punha-a ao sol, ia vigiando para ver quando estava pronta, por fim já me encontrava relativamente entendida e, quando ele iniciava a cirurgia, já eu estava ali com os instrumentos em punho para lhos passar, ele já nem tinha que dizer o nome. E, inclusivamente, já o questionava depois, porque não fazia antes de outra maneira? E ele, sempre com infinita paciência e bondade, a tudo respondia com boa cara, explicava, exemplificava.
E quando ele atendia os clientes, eu bebia ávida cada palavra, tentando logo adivinhar o que ele ia dizer, a data em que a pessoa podia passar a buscar (punha-me, de cabeça, a tentar planificar o trabalho que ele tinha em carteira), ou via com atenção o pagamento, o troco, a justificação do preço. Tudo assuntos complexos que me fascinavam.
E depois, quando os clientes saíam e ele ficava de novo sozinho comigo, eu comentava e questionava tudo, o que tinham dito, porque é que aquilo era mais caro do que o outro arranjo, como é que ele fazia as contas.
Devo ter começado a ir para lá pouco depois de ter 2 anos; era uma das minhas grandes ocupações até aos 4 e depois, dos 4 e até aos 6, em que estava já na infantil, continuei, embora já em part-time.
Recordo-me do Ti Luís como um dos meus grandes formadores. Trabalhador, honesto, responsável, generoso, paciente, de uma enorme dignidade. Eu perguntava-lhe sobre o ofício mas também sobre tudo o que me ocorria e a tudo ele me respondia, sempre com muita calma, sempre com os olhos postos nos sapatos que consertava, mas sempre disponível para me atender, para satisfazer a minha curiosidade.
A minha avó ia lá buscar-me e desculpava-se por mim, por eu não o largar e lhe fazer perguntas durante horas todos os dias e ele dizia sempre que não fazia mal nenhum, que eu lhe fazia muita companhia, que até gostava muito, que eu frequentemente o punha a pensar. E até isso eu recordo com ternura: o facto de eu perceber que ele, homem já de alguma idade e sempre muito ocupado, apreciava a minha companhia. Fazia-me sentir importante.
Hoje, quando vejo um sapato de homem, com sola de pele, com aqueles pontos visíveis, lembro-me sempre dele. E tantas outras vezes.
Um dos meus primeiros mestres, Ti Luís, cirurgião e cavalheiro.
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